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Processo n.º 757/10
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A., reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do seguinte despacho:
“Fls.734 – Vem o arguido A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão de fls.722 dos autos, desta Relação, que desatendeu a arguida nulidade «por violação do dever de fundamentação» do Acórdão desta Relação de fls.549 dos autos, que negou provimento ao recurso da decisão que lhe fixou as medidas de coacção.
Oportunamente, o mesmo arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do referido acórdão de fls.549 que negou provimento ao identificado recurso, recurso aquele que, não sendo admitido por despacho de fls.717 verso, se encontra pendente de reclamação dirigida ao Senhor Conselheiro Presidente do Tribunal Constitucional.
Como proficientemente cogita o Ministério Público na vista dos autos, embora o arguido diga que o presente recurso para o Tribunal Constitucional incide sobre o acórdão de fls.722, que desatendeu a arguida nulidade, a verdade é que o que ele pretende é atacar, mais uma vez, o acórdão que manteve as medidas de coacção que lhe foram aplicadas (fls.549 e seguintes), vindo agora alegar que o mesmo padece de falta de fundamentação, já que fez errada interpretação do artº 97º nº 5 do CPP, ao “fundamentá-lo através de remissão para outras peças processuais, ou de excertos das mesmas, quando nelas não são analisados os fundamentos de facto e de direito aduzidos pelo arguido em sua defesa”.
Como acima se referiu, o arguido já anteriormente interpôs recurso desse acórdão para o Tribunal Constitucional, a fls.709 e seguintes, o qual não foi admitido e deu lugar à sua reclamação para a Conferência.
Tendo como objecto do recurso ora interposto para o Tribunal Constitucional, a apreciação da constitucionalidade daquela disposição legal, no sentido em que, no entender do arguido foi aplicada nesta Relação, só pode versar sobre o Acórdão proferido em 5/05/2010, na mesma data notificado ao seu mandatário e não sobre o acórdão proferido a fls.722, pelo que o presente recurso configura, na prática e pese embora o respeito por opinião contrária, uma hábil ultrapassagem da verificada não admissão do recurso interposto anteriormente do acórdão que manteve as medidas de coacção e ainda objecto de reclamação para a conferência.
Em gíria de guerrilha militar, dir-se-ia uma verdadeira «volta da pacaça»!
Na realidade, a haver violação constitucional do dever de fundamentação, como pretende o recorrente, a mesma ocorre no acórdão que manteve as medidas de coacção, de fls.549 e segs., datado de 5/05/2010, que não no acórdão de fls.722, que desatendeu a arguida nulidade e que não enferma, “a se” da violação de tal dever, embora possa discordar-se da sua fundamentação.
Como tal, sendo extemporâneo e por aplicação conjugada dos artºs 75º, 75º-A e 76 nº 2 da Lei nº 28/82 de 15/11, na redacção introduzida pela Lei 13-A/98, de 26/02, não admito o presente recurso para o Tribunal Constitucional.”
O reclamante sustenta, em síntese, que o recurso deve ser admitido porque foi interposto dentro do prazo de 10 dias a contar da notificação do acórdão que pretendeu atacar. Foi nesse acórdão, que recaiu sobre arguição de nulidade do acórdão que julgou o recurso, que o Tribunal da Relação fez aplicação do sentido normativo cuja constitucionalidade se quer ver apreciada. Na arguição de nulidade o reclamante suscitou a questão da inconstitucionalidade do n.º 5 do artigo 97.º do Código de Processo Penal (CPP), não lhe sendo exigível que o tivesse feito em momento anterior por não dever representar que iria ser adoptada uma interpretação inconstitucional do alcance do dever de fundamentação das decisões judiciais em tal matéria.
2. O Ministério Público pronunciou-se no sentido do indeferimento da reclamação, em síntese, nos termos seguintes:
Se a questão de constitucionalidade que o arguido quer sujeitar à apreciação do Tribunal tem a ver com a fundamentação do acórdão da Relação que negou provimento ao recurso, foi esse acórdão que aplicou a norma que o arguido identificou no requerimento de interposição do recurso. O acórdão de que o arguido recorre limitou-se a indeferir a arguição de nulidade. Assim, o arguido, ao interpor recurso para o Tribunal Constitucional, devia fazê-lo do acórdão de 05 de Março de 2010 – o que negou provimento ao recurso –, eventualmente complementado pelo que indeferiu a arguição de nulidade, mas não exclusivamente deste, como fez.
A interpretação do nº 5 do artigo 97.º do CPP que o arguido questiona sub specie constitucionis, não foi a acolhido pela Relação. A Relação após reconhecer que perfilhou, na íntegra, a fundamentação da decisão recorrida por a considerar suficiente e legalmente fundada, acrescentou: “sendo que no Acórdão em referência se explicitam as razões pelas quais se validou a conclusão fáctica e jurídica da decisão recorrida, como se sorve de fls. 93 e segs. do mesmo acórdão” (fls.142). Este importante elemento está ausente da dimensão normativa questionada pelo arguido. Assim, não coincidindo a dimensão normativa efectivamente aplicada, com aquela que o recorrente pretende ver apreciada, falta um requisito de admissibilidade ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
O reclamante foi ouvido sobre a resposta do Ministério Público, nada dizendo.
3. Para decisão da reclamação, relevam os factos e ocorrências processuais seguintes:
a) Por acórdão de 5 de Maio de 2010 (fls. 21 a 138), o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento a recurso interposto pelo ora reclamante do despacho que lhe aplicou medidas de coacção, no âmbito de um processo de inquérito em que é co-arguido, a correr termos na comarca do Baixo-Vouga.
b) O reclamante
b1) arguiu a nulidade desse acórdão por falta de fundamentação;
b2) recorreu dele para o Tribunal Constitucional.
c) Por acórdão de 7 de Julho de 2010, a Relação indeferiu a arguição de nulidade;
d) Em 20 de Julho de 2010, o reclamante interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC;
e) O recurso não foi admitido pelo despacho reclamado, acima transcrito.
f) O recurso referido em b1) tinha por objecto questão diversa daquela que se pretende discutir no recurso a que a presente reclamação respeita;
g) E também não foi admitido, vindo a reclamação do despacho que assim decidiu a ser julgada improcedente pelo acórdão n.º 448/10.
4. Não pode confirmar-se o fundamento adoptado pelo despacho reclamado para não admitir o recurso. O requerimento de interposição do recurso foi apresentado no tribunal que proferiu a decisão recorrida dentro do prazo de 10 dias a contar do momento em que esta se considera notificada ao recorrente (cfr. artigo 75.º da LTC). É quanto basta, sendo estranhas a este requisito do recurso de constitucionalidade (observância do prazo de interposição) quaisquer outras considerações.
Todavia, o facto de o reclamante ter inteira razão nesta parte não implica, por si só, a procedência da reclamação, uma vez que o Tribunal deve decidir definitivamente se o recurso é admissível (n.º 4 do artigo 76.º da LTC), o que impõe que aprecie outras eventuais causas obstativas do conhecimento do objecto do recurso interposto.
5. O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos da admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa – como objecto de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo [artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC].
O Ministério Público suscita objecções relativamente a dois deles: não ter sido a decisão recorrida que efectivamente aplicou a norma do n.º 5 do artigo 97.º do CPP, mas o acórdão que julgou o recurso, e não haver coincidência entre o sentido normativo que a Relação extraiu do preceito legal e aquele que o recorrente quer submeter a apreciação pelo Tribunal Constitucional. Sendo estes requisitos cumulativos, basta a não verificação de um deles para que o recurso não deva prosseguir. Começaremos por esta última questão.
6. O recorrente pretende ver apreciada a dimensão normativa extraída do n.º 5 do artigo 97.º do CPP, interpretada no sentido de “o dever de fundamentação dos actos decisórios ser cumprido através da remissão para outras peças processuais ou da transcrição de outras peças processuais, ou de excertos das mesmas, designadamente quando nelas não são analisados os fundamentos de facto e de direito aduzidos pelo arguido em sua defesa”.
É elemento nuclear desta alegada dimensão normativa – aliás, é o que, com seriedade, poderia colocar a questão no plano da relevância constitucional –, que do preceito se tenha extraído o sentido segundo o qual é válida uma fundamentação por remissão em que, nas passagens de outras peças processuais que a decisão judicial em causa transcreva ou para que remeta, se não analisem os fundamentos aduzidos pelo recorrente em sua defesa.
Sucede que não foi isso que o acórdão recorrido afirmou. O acórdão recorrido considera que a fundamentação da decisão que confirma o despacho que aplica medidas de coacção exige que o tribunal de recurso, ainda que por remissão, indique as razões pelas quais valida a conclusão fáctica e jurídica adoptada pela decisão que confirma. Mas entende que, diversamente da pretensão do recorrente, o acórdão que julgou o recurso satisfaz essa exigência.
É certo que pode questionar-se se, efectivamente, a fundamentação concreta adoptada corresponde ao padrão constitucional de suficiência da fundamentação das decisões judiciais neste domínio. E, em boa verdade, embora não desconhecendo que a questão só pode ser colocada ao Tribunal num plano normativo, é isto que o recorrente tem em vista quando acaba por ter de fazer a especificação contida na parte final do enunciado do objecto do recurso. Mas isso – que não é aceite pela decisão recorrida, sendo que tal afirmação do acórdão não é flagrantemente contrária à evidência dos autos – redundaria necessariamente numa apreciação dessa decisão e não do critério normativo de que a Relação assumiu ter sido feita aplicação, matéria que está excluída da competência do Tribunal em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade.
Em resumo, ou se considera que não há coincidência entre a norma aplicada e a norma (sentido normativo) submetida a fiscalização, ou se entende que visada é a suficiência do concreto discurso fundamentador e não o respectivo critério normativo. Numa ou noutra perspectiva, o recurso não pode prosseguir.
Consequentemente, embora por fundamento diverso daquele que foi adoptado pelo despacho reclamado, o recurso interposto não deve ser admitido.
7. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa e justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 1 de Fevereiro de 2011.- Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.
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