|
Processo n.º 811/10
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 376 destes autos foi proferida a Decisão Sumaria n.º 512/2010, com o seguinte teor:
Nos termos do n.º 1 do artigo 78.º-A da Lei do Tribunal Constitucional, decide-se:
1. A. e B. recorrem para o Tribunal Constitucional da sentença proferida em 7 de Dezembro de 2009 no Tribunal Judicial da Póvoa de Varzim que os condenou a reconhecerem a extinção da servidão, que onerava o prédio dos autores da acção, e de que os recorrentes beneficiavam, «por manifesto abuso de direito». Pretendem, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), impugnar o artigo 264º n.º 2 do Código de Processo Civil «uma vez que a sentença fundamenta a decisão em factos que não foram alegados e provados»; e o artigo 334º do Código Civil, por violação do artigo 62º n.º 1 da Constituição, porque «não se pode operar a extinção de uma servidão constituída por destinação de pai de família [...] com alegação de abuso de direito». Alegam ainda que a questão não foi atempadamente arguida «porque a interpretação das normas supra indicadas [...] é de tal forma insólita e imprevisível que seria e será de 'todo desrazoável o dever de as partes contarem também com ela' [...] ».
2. Acontece que o recurso previsto na aludida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC tem carácter normativo, razão pela qual se deve aceitar que o seu objecto deve obrigatoriamente ser preenchido por normas jurídicas. A 'questão de inconstitucionalidade' que, em matéria de fiscalização concreta, pode ser trazida ao conhecimento do Tribunal Constitucional, no âmbito de tal recurso, deve consubstanciar-se em normas jurídicas aplicadas como razão de decidir na decisão recorrida, não podendo ser sindicada a matéria relacionada com a própria decisão, ou seja, com os raciocínios e ponderações que tipicamente preenchem a actividade jurisdicional, designadamente a aplicação concreta e casuística do direito ao caso em apreço.
Ora, ao pretenderem sindicar a aplicação concreta e casuística do direito ao seu caso, os recorrentes visam, na verdade, impugnar a concreta decisão proferida e não as normas eventualmente usadas como ratio decidendi dessa decisão.
3. A inidoneidade do objecto proposto no presente recurso conduz a que o Tribunal não possa dele conhecer. Decide-se, por isso, não conhecer do recurso.
2. Inconformados, os recorrentes reclamam para a conferência nos termos que se transcrevem:
A. e B., recorrentes nos autos à margem referenciados, notificados da Decisão Sumária nº 512/2010, nos termos do nº 1 do art. 78-A da LTC, vêm nos termos e para os efeitos do art. 78-A, nº 3 da LTC deduzir
reclamação, com e pelos seguintes fundamentos:
Por decisão sumária de 6 de Dezembro, entendeu o Ex.mo Relator não conhecer do recurso interposto, porque, “os recorrentes visam, na verdade, impugnar a concreta decisão proferida e não as normas eventualmente usadas como ratio decidendi dessa decisão.”
Salvo o devido respeito, o plasmado na decisão sumária não aprecia o requerido pelos recorrentes, além do que, fundamenta a decisão sumária em frases transcritas propositada e convenientemente fora do contexto.
Ora, e mais uma vez, os recorrentes põe em causa a interpretação que a douta sentença faz dos preceitos legais aplicados, nomeadamente os art. 264.º, nº 2 do CPC e art. 334.º do Código Civil, concluindo que a interpretação dessas normas é inconstitucional, porque viola os princípios constitucionais consagrados nos arts. 20.º, n.ºs 1 (acesso ao direito) e 62.º, nºs 1 (direito à propriedade privada) da CPR.
Acresce ainda, que a presente decisão sumária é proferida ao arrepio da jurisprudência deste Venerando Tribunal, que por diversas vezes tem afirmado que “o controlo normativo também compreende o que simplesmente se reporte a certa dimensão ou interpretação da norma questionada.” E mais uma vez se reitera que foi o solicitado pelos recorrentes no seu requerimento de interposição de recurso: ou seja, questionar a interpretação dada pelo tribunal de primeira instância às normas contidas no art. 264, nº 2 do CPC e art. 334 do CC, as quais foram usadas “como ratio decidendi dessa decisão.”
Os recorrentes, no seu requerimento de interposição de recurso para este Venerando Tribunal, identificaram as normas infraconstitucionais, cuja interpretação dada pela sentença recorrida violam as normas constitucionais contidas nos arts. 20.º e 62.º da CRP. Acresce ainda, que os recorrentes especificaram e demonstraram a efectiva e estrita coincidência ou identidade normativa entre a interpretação da norma (arts. 264, nº 2 do CPC e 334 do CC) e a interpretação que o tribunal, ao julgar o caso fez de tal norma, aplicando-a como fundamento do direito da decisão. Por outro lado, importa referir que a aplicação da norma tanto pode ser expressa (no caso sub iudice temos o caso do art. 334.º do CC) como implícita (no caso sub iudice, temos o exemplo do art. 264, nº 2).
O art. 20.º da CRP consagra o direito de acesso aos tribunais, o qual se consubstancia no direito “ a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões, de facto e de direito, oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras.” (Acórdão 444/91).
Neste direito fundamental de acesso aos tribunais vai implicado o direito de as decisões judiciais se fundamentarem nos factos alegados e provados pelas partes, em juízo. Quod non est in actis non est in mundo – velha máxima que espelha este principio, ou seja, que as decisões judiciais devem basear-se apenas e tão só nos elementos constantes dos autos, devendo excluir qualquer conhecimento ou lembranças pessoais do julgador, obtidas de outra forma que não seja através dos autos. Como excepção temos a alegação de factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral, pelo que não sendo necessários a sua alegação ou prova, contudo podem ser utilizados na decisão judicial proferida. O objectivo deste direito é obstar à existência de decisões-surpresa, o que constituiria uma violação das garantias de imparcialidade e independência em que consubstancia o próprio direito de acesso aos tribunais.
Ora, no caso sub iudice, o tribunal a quo, ao elaborar a sentença, considerou sem mais que existia abuso de direito, porque os recorrentes recusavam, sem explicação, a possibilidade de terem água na sua propriedade, porque recusavam a construção de um poço!! Contudo, constitui um facto notório, que um poço só se constrói se existir provas que no subsolo existe água. Da análise dos autos constata-se que não existe qualquer prova, ou mesmo alegação, que no subsolo dos recorrentes existe água, que pelo menos, justifique a construção de um poço, sendo certo que o ónus desta prova competia unicamente aos recorridos, uma vez que foram estes que interpuseram a acção judicial onde pediam a extinção da servidão. Por outro lado, não se esgrima o argumento de que está provado a oferta dos recorridos para fazer o poço e a correspondente recusa dos recorrentes. Com efeito, a oferta só por si de fazer o poço, não estando provado a existência de água no subsolo (prova essa, que repete-se, competia aos recorridos), é por si, vazia de conteúdo e capciosa. Ora, e repete-se, sendo facto notório, que os poços fazem-se onde existe água, e não estando provado a existência de água no subsolo, nunca a sentença agora recorrida, poderia dar como provado sem mais, a existência de água no subsolo que justificasse a construção de um poço, para em seguida concluir pela existência de abuso de direito.
E, assim, inconstitucional, a norma do art. 264, nº 2 no Código de Processo Civil, na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida, ou seja, ao dar como provado factos que não foram nem alegados nem provados pelas partes, nomeadamente pelos recorridos, a quem cabia o ónus dessa prova, por violação do art. 20.º, nº 1 da CRP e das garantias de imparcialidade e independência aí contidas.
Como também é inconstitucional a interpretação da norma do art. 334.º do Código Civil, na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida, por violação do art. 62.º, nº 1 da CRP, pois institui mais uma causa de extinção do direito de servidão constituído por destinação de pai de família.
Antes de mais, importa frisar, que os Recorrentes tinham direito a captar água do prédio dos recorridos, onde se inclui todas as faculdades ou poderes instrumentais acessórios ou complementares, os quais representam os meios adequados ao pleno aproveitamento da servidão, correntemente chamados adminicula servitutis, e que não constituem uma servidão autónoma, ainda que acessória e diferente da que se designaria por principal. Ou seja, os recorrentes para acederem à água existente no prédio dos recorridos, necessariamente tinham de entrar no prédio destes, colocar um motor no poço, além do que, não estando especificado as horas a que o podiam fazer, era notório que o podiam fazer a qualquer hora nos dias marcados, aliás só assim se entende que a servidão constitua vantagem. Por este motivo, alegar que estes comportamentos constituem atitudes abusivas, nomeadamente negação de interesses dos AA, aqui recorridos, constitui no mínimo um tremendo disparate, pois são meios necessários ao inerente aproveitamento da servidão. E como tal, não podem constituir fundamento para justificar o abuso de direito nem outrossim justificar a extinção da servidão.
Por outro lado, a captação da água pelos recorrentes corresponde ao aproveitamento da servidão de que beneficia o seu prédio, algo que já acontece há mais de cinquenta anos, e facto que era do conhecimento dos recorridos quando adquiriam posteriormente o seu prédio. Também aqui falece o argumento de que a captação da água pelos recorrentes constitui abuso de direito, pois resulta evidente que a captação da água faz-se nos moldes habituais e é empregue unicamente na rega da horta e outras produções agrícolas que existem no seu prédio. Em suma, a água é utilizada para os fins pensados e destinados por ocasião da constituição da servidão, ou seja, uso doméstico e rega das produções agrícolas.
Nesta perspectiva, não se compreende a alegação do abuso de direito, uma vez que os recorrentes apenas praticaram os actos necessários ao aproveitamento da servidão e dentro dos dias que lhe são concedidos. Os recorridos quando adquiriram o prédio onerado com a servidão sabiam que tinham de permitir a entrada dos recorrentes no seu prédio, além de, permitir a colocação do motor nos dias que lhe eram destinados. Em suma, não se compreende que esta actuação dos recorrentes constitua negação dos interesses dos recorridos, nem outrossim, que os recorridos estejam lesados pelo exercício do direito dos recorrentes, sendo certo que estes o exercem nos termos prescritos na constituição do direito e para o fim a que se destina.
O art. 62, nº 1 da Constituição reconhece a todos o direito à propriedade privada, e nos termos em que o mesmo é reconhecido no direito infraconstitucional. Ora resulta evidente que, nos termos da lei, não se pode operar a extinção de uma servidão constituída por destinação de pai de família por desnecessidade, nem outrossim com alegação do abuso de direito, quando os factos alegados correspondem sem mais ao exercício dos meios adequados ao aproveitamento da servidão e para os fins a que ela se destina, ou seja, uso doméstico. Acresce ainda, que este entendimento do art. 334.º do CC dado pela sentença a quo, constitui mais uma causa de extinção do direito de servidão constituído por destinação de pai de família, o que não está contemplado no direito infraconstitucional. Também importa referir que a sanção pelo abuso do direito não pode implicar extinção desse direito, mas deve haver um apelo às regras gerais e mesmo à equidade, o que aqui não aconteceu. De facto, sendo certo que os recorrentes utilizam a água para rega da sua horta, de onde retiram o seu sustento, hoje com a extinção do seu direito, vêem a sua subsistência posta em causa, o que constitui um atropelo à equidade, pois os recorridos apenas não querem os recorrentes dentro do seu prédio.
Assim, é inconstitucional a norma do art. 334.º do CC, por violação do art. 62.º, n.ºs 1 da CPR, na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida, uma vez que, extingue um direito real.
Termos em que e nos mais de direito, deve a presente Reclamação ser julgada procedente, com as demais consequências legais.
3. Os reclamados responderam opondo-se ao deferimento da reclamação.
4. Tal como se afirmou na decisão sumária ora em causa, os recorrentes interpõem o presente recurso de inconstitucionalidade ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro). Isto significa, sem dúvida, que no âmbito do recurso apenas se pode discutir a conformidade constitucional da norma aplicada como ratio decidendi da decisão recorrida, estando, por isso, afastada a possibilidade de apreciar os juízos ponderativos nela contidos, que, por serem típicos da tarefa jurisdicional dos tribunais, estão fora da sindicância do Tribunal Constitucional. É, assim, possível concluir, e com directa relevância para o caso, que «a 'questão de inconstitucionalidade' que, em matéria de fiscalização concreta, pode ser trazida ao conhecimento do Tribunal Constitucional, no âmbito de tal recurso, deve consubstanciar-se em normas jurídicas aplicadas como razão de decidir na decisão recorrida, não podendo ser sindicada a matéria relacionada com a própria decisão, ou seja, com os raciocínios e ponderações que tipicamente preenchem a actividade jurisdicional, designadamente a aplicação concreta e casuística do direito ao caso em apreço.»
É certo que o Tribunal tem conhecido das normas aplicadas nas decisões sob recurso quer elas resultem da simples aplicação literal do preceito normativo, quer elas apresentem uma feição própria que de algum modo as particularizam no universo dos diversos sentidos que é possível extrair do preceito aplicado. Todavia, este particular sentido deve continuar a ter natureza normativa, isto é, deve representar um critério abstracto radicado numa disposição jurídica real e concreta que, aplicado ao caso, condicionou decisivamente a solução encontrada. Ou seja, continua a não ser possível sindicar a decisão recorrida, ou as ponderações jurisdicionais nela contidas, ainda que tais ponderações surjam artificialmente enunciadas como normas jurídicas. E é o que se passa no caso em presença.
Os reclamantes pretendem questionar duas normas: em seu entender, é inconstitucional, a norma do artigo 264º, n.º 2 do Código de Processo Civil, «na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida, ou seja, ao dar como provado factos que não foram nem alegados nem provados pelas partes»; e também seria inconstitucional a norma do artigo 334.º do Código Civil, «na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida (...) pois institui mais uma causa de extinção do direito de servidão constituído por destinação de pai de família».
Comecemos por esta última. O preceito do Código Civil tem esta redacção:
ARTIGO 334.º
(Abuso do direito)
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Da sua simples leitura resulta manifesto que não é possível atribuir a esta disposição legal o sentido que os recorrentes dela retiram, segundo o qual «institui mais uma causa de extinção do direito de servidão constituído por destinação de pai de família». O que se passa é que, ao pretenderem sindicar a norma do artigo 334.º do Código Civil «na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida», os recorrentes estão, na verdade, a visar a decisão recorrida que enquadrou a conduta dos reclamantes na previsão do preceito. E a longa exposição que a presente reclamação contém bem demonstra que os reclamantes se insurgem contra a sentença por ter qualificado a sua conduta como abuso de direito. Não é efectivamente a norma legal que é questionada, mas a sua aplicação ao caso, cujo resultado os recorrentes têm por desconforme com a Constituição; a inconstitucionalidade não provém da norma, mas do julgamento do tribunal recorrido. É, assim, manifesto que não cabe ao Tribunal Constitucional conhecer desta matéria, tal como se afirmou na decisão sumária.
Ainda mais impressiva é a segunda questão. No entender dos reclamantes, é inconstitucional a norma do artigo 264º, n.º 2 do Código de Processo Civil, «na interpretação que lhe foi dada pela sentença recorrida, ou seja, ao dar como provado factos que não foram nem alegados nem provados pelas partes». O n.º 2 do dito artigo 264º do Código de Processo Civil diz o seguinte:
2. O juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo do disposto nos artigos 514.º e 665.º e da consideração, mesmo oficiosa, dos factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa.
No entender dos recorrentes, o tribunal deu como provados factos que não foram nem alegados nem provados, o que, sempre em seu entender, não poderia ter feito. Por isso, atacam directamente a sentença recorrida por, ao contrário da regra imposta no preceito legal, ter dado como provados «factos que não foram nem alegados nem provados pelas partes». Dito desta maneira, ou seja, configurada a norma nos moldes expostos, resulta que os reclamantes pretendem atacar a decisão recorrida por ter errado na selecção dos factos processualmente adquiridos, dando por provada matéria não alegada. Mas uma leitura atenta da sentença revela que o tribunal recorrido nunca pretendeu usar, implícito que fosse, um tal critério normativo. Deve, por isso, concluir-se que os reclamantes visam, neste recurso, a própria sentença e não as normas que nela se aplicaram, o que leva a concluir, conforme se afirmara na decisão sumária reclamada, que, ao pretenderem sindicar a aplicação concreta e casuística do direito ao seu caso, os recorrentes visam, na verdade, impugnar a concreta decisão proferida e não as normas eventualmente usadas como ratio decidendi dessa decisão.
Por tal motivo, o Tribunal não pode conhecer do recurso.
5. Nestes termos, decide-se indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2011.- Carlos Pamplona de Oliveira – Maria João Antunes – Gil Galvão.
|