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Processo n.º 529/10
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos vindos do Tribunal da Comarca de Castro Daire, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido A., foi interposto recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal de 8 de Março de 2010.
2. O Tribunal da Comarca de Castro Daire decidiu absolver o recorrido da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido nos artigos 292º, nº 1, e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal, com a seguinte fundamentação:
«Factos provados
1. No dia 7 de Julho de 2009, cerca das 23 horas e 15 minutos, na Avenida …, no concelho de Castro Daire, o arguido conduzia o veículo com a matrícula ..-..-.., tendo sido interveniente num acidente de viação, local ao qual foi chamada e se dirigiu a autoridade policial.
2. Na sequência do mencionado embate, o arguido foi conduzido ao Centro de Saúde de Castro Daire e depois transferido para o Hospital de S. Teotónio, em Viseu.
3. No identificado Centro de Saúde, o agente da autoridade constatou que, não obstante se encontrar sempre consciente, o estado de saúde do arguido não lhe permitia ser submetido a exame de pesquisa de álcool através do ar expirado.
4. Em face do mencionado em 3), no hospital para onde foi transferido, foi efectuada colheita de sangue ao arguido, a qual foi depois submetida a análise laboratorial na Delegação do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal.
(…)
Factos não provados
A análise laboratorial efectuada ao arguido acima mencionada acusou uma taxa de álcool no sangue de 1,56 gramas/litro.
Nas circunstâncias de tempo e de lugar acima mencionadas, o arguido tinha ingerido bebidas alcoólicas e sabia que não estava em condições de conduzir.
Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
O arguido foi informado quanto à finalidade da colheita do sangue e foi-lhe solicitado o seu consentimento.
(…)
Resta-nos, agora, explicar as razões que estiveram na base da nossa decisão quanto à factualidade que se considerou não provada.
Essa explicação passa, antes de mais, por uma apreciação (breve mas necessária) do regime legal actualmente vigente sobre a determinação do álcool nos condutores, em duas situações: no caso do condutor não ser interveniente em acidente de viação e no caso de o ser.
(…)
No caso do arguido/condutor ter sido interveniente em acidente de viação, o procedimento para pesquisa de álcool encontra-se prescrito no art. 156.º, do Código da Estrada.
Assim, se o estado de saúde do condutor o permitir, realiza-se o exame através do ar expirado, com o respectivo aparelho, tal como dispõe o artigo 153.º - n.º 1, daquele preceito.
Mas se, em consequência do acidente, não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado através de aparelho – alcoolímetro – (como acontece nos presentes autos), entra-se na previsão do n.º 2, do artigo 156.º, do CE:
- o médico do estabelecimento oficial de saúde a que o interveniente no acidente seja conduzido, deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influencia pelo álcool.
E se, ainda por qualquer outro motivo, esta pesquisa de álcool no sangue não puder ser feita, então procede-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool – n.º 3, do artigo 156.º [regulando o art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, situações em que tal poderá ocorrer].
Ora, é precisamente esta situação do n.º 2, do art. 156.º, do Código da Estrada que ocorreu nestes autos e a qual tem suscitado algumas questões pertinentes, nomeadamente a colocada pelo arguido, em requerimento formulado durante a audiência de discussão e julgamento [que não mereceu resposta pela Digna Representante do Ministério Público], suscitando, em primeiro lugar, a inconstitucionalidade orgânica das normas constantes dos arts. 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, todos do Código da Estrada (na redacção dada pelo decreto-lei n.º 44/2005, de 2/02), e depois, a não valoração da prova pericial junta aos autos, por corresponder a prova absolutamente nula, nos termos previstos no art. 125.º, do Código de Processo Penal.
Em face do requerimento do arguido e tendo em consideração a absoluta essencialidade do relatório do exame pericial constante de fls. 5 destes autos, para a prova da influência do álcool na condução efectuada pelo arguido, bem como da exacta taxa de alcoolemia por este evidenciada (…) há que apreciar, antes de mais, se o regime de detecção de álcool no sangue a que o arguido foi submetido, apesar de legalmente previsto, padece de qualquer inconstitucionalidade, como o próprio alega.
Sem prejuízo de uma análise mais geral e abstracta da questão, dever-se-á ter em conta a concreta situação dos autos:
Recolha de amostra de sangue para análise, a condutor sinistrado, transportado a um estabelecimento de saúde, ao qual foi diagnosticada a impossibilidade de realizar teste de pesquisa de álcool no ar expirado, que se encontrava consciente, mas que não é informado do fim da colheita nem lhe é solicitado qualquer consentimento para a sua recolha.
Sob o ponto de vista da justiça material e do direito a constituir, perfilhamos e seguimos de perto a posição manifestada no douto acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto de 9 de Dezembro de 2009 [v. proc. 1421/08.6PTPRT.P1, in www.dgsi.pt], no qual se escreve o seguinte: “Em termos de lei a constituir, aceita-se que possa vir a ser adoptada em termos legislativos, sem qualquer vício de inconstitucionalidade [que actualmente se verifica e da qual se irá falar de seguida], uma posição em que o condutor possa ser sujeito a uma recolha obrigatória de amostra de sangue, nos mesmos termos em que agora já o é para o exame de pesquisa do álcool no ar expirado. (…)
Sob o ponto de vista material, a lei que temos consagra exactamente a solução acima mencionada. O problema é que, tal como se defende naquele acórdão, posição com a qual concordamos integralmente, o actual regime dos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, sofre de inconstitucionalidade orgânica, já que foram alterados/aprovados por Decreto-Lei emanado do Governo, sem a necessária autorização legislativa do órgão competente, a Assembleia da República.
Vejamos.
O teor dos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8 e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, é o seguinte:
(…)
A actual redacção dos citados artigos, em especial, do n.º 8, do art. 153.º, resultou da entrada em vigor do Decreto-lei n.º 22/2005, de 23/02, e o n.º 2, do artigo 156.º, resultou do Decreto-lei n.º 265-A/2001, de 28/09.
Quanto à evolução legislativa destes preceitos, mostra-se particularmente útil reproduzir as conclusões preliminares a que se chegou no douto acórdão do Tribunal Constitucional n.º 275/2009 (proc. 647/08):
(…)
Certo é, portanto, que a norma ora colocada em crise não beneficia de qualquer autorização legislativa concedida pela Assembleia da República ao Governo.
Porém, por si só, esta não será razão suficiente para optar pela inconstitucionalidade orgânica da norma. Para que essa intromissão formal em domínios de reserva relativa de competência parlamentar seja irrelevante, é necessário que se possa concluir pelo carácter não inovatório da normação suspeita. Não bastará a mera verificação da identidade textual dos dispositivos legais em sucessão, tendo também de ponderar-se os demais elementos de interpretação da lei, pois o mesmo texto, reproduzido em novo contexto, pode adquirir diverso conteúdo normativo.
Quanto à natureza inovatória das normas em questão, refere aquele acórdão [posição com a qual concordamos] que: (…)
Conclui-se, assim, pela inconstitucionalidade orgânica da norma do art. 153.º, n.º 8, do Código da Estrada, na redacção dada pelo decreto-lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Tendo em consideração os mesmos fundamentos, à mesma conclusão de inconstitucionalidade orgânica chegamos quanto ao regime de colheita da amostra de sangue com vista à realização da análise, em situação de acidente de viação, ou seja, o regime previsto no art. 156.º, n.º 2, do Código da Estrada.
Porém, quanto a esta norma (cuja redacção resulta do Decreto-lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, igualmente não precedido de autorização legislativa), cabe acrescentar que foi este diploma (e não o Decreto-lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro) que trouxe uma alteração inovatória, agravando a situação do condutor interveniente em acidente de viação. A mesma inovação e agravação que passou a existir para qualquer condutor, ainda que não interveniente em acidente, com o regime actual.
Face ao exposto, devemos concluir que, também o art. 156.º, n.º 2, do Código da Estrada (na redacção introduzida pelo Decreto-lei 265-A/2001, de 28 de Setembro e depois mantida pelo Decreto-lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro) está igualmente ferida de inconstitucionalidade orgânica.
Em face ao exposto, consideramos organicamente inconstitucionais as normas constantes dos artigos 153.º, n.º 6 e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, razão pela qual não aplicamos tais normas ao caso em apreço.
Sendo esta, em termos gerais e abstractos, a nossa posição, passemos agora à subsunção dos factos provados.
(…)
Assim, resulta dos presentes autos que, apesar da verificada impossibilidade de o arguido proceder ao exame de pesquisa do álcool no ar expirado, o mesmo apresentava-se consciente.
O que significa que o arguido tinha, na altura, capacidade volitiva para recusar ou consentir na colheita de sangue para efeitos de análise ao álcool.
Nas conclusões supra, já se deixou consignado que, a retirada do direito de o arguido poder recusar a recolha de sangue, padece de inconstitucionalidade orgânica. E, sendo assim, o arguido poderia ter recusado expressamente a colheita do sangue, sem que o mesmo praticasse qualquer crime de desobediência.
Mas para que o arguido, no caso concreto, pudesse recusar a colheita de sangue ou para se entender/defender que o mesmo consentiu em tal colheita, forçoso é concluir que o arguido deverá saber, estar informado do fim a que se destina determinada colheita de sangue.
(…)
Na verdade, ao ser submetido ao teste de pesquisa do álcool no ar expirado, qualquer condutor sabe a que se destina esse teste, o mesmo já não se pode dizer quando se está internado num hospital ou estabelecimento de saúde e um médico faz uma colheita de sangue ao sinistrado. Aqui, o sinistrado adquire a qualidade e é tratado como doente. E deve ser nesta qualidade que se deve interpretar e presumir qualquer consentimento seu, ainda que tácito, quanto aos actos médicos.
Ora, a colheita de sangue para análise do álcool no sangue do condutor sinistrado, embora praticado por um médico, não tem, em nosso entender, a natureza de acto médico em sentido estrito mas sim de um acto ou diligência de prova para efeitos de procedimento criminal.
E tratando-se de um acto que viola a integridade física e tem como objectivo, uma possível incriminação do doente/sinistrado, é nosso entendimento de que o mesmo deve ser informado ou estar devidamente esclarecido do fim a que se destina a recolha do sangue (v. art. 125.º, do Código de Processo Penal
Nestes termos, a concreta recolha de sangue ao arguido recorrente que serviu de base à análise para apurar o seu grau de alcoolémia, constitui prova ilegal, inválida ou nula, que não pode produzir efeitos em juízo.
Ora, em face do exposto, não valorando a prova pericial constante de fls. 5 destes autos, não pode este Tribunal concluir que o arguido estivesse a conduzir em estado de embriaguez, e muito menos de que este tivesse acusado uma taxa de álcool no sangue de 1,56 gramas/litro.
III. O Direito
Enquadramento Jurídico-Penal
Vem o arguido acusado da prática de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos arts. 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
Dispõe o art.º 292.º, n.º 1 do Código Penal: 'Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.'
Atenta a factualidade provada, é manifestamente simples, concluir que não se encontra preenchido sequer o elemento objectivo típico do crime por que o arguido vem acusado.
Assim, não tendo sido abalada a sua presunção de inocência, resta-nos absolver o arguido da prática do crime pelo qual vem acusado».
3. Desta decisão foi interposto o presente recurso, para:
«apreciação da inconstitucionalidade dos artigos 153º, n.º 6 e 156.º, n.º 2 ambos do Código da Estrada (na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 02 de Fevereiro), cuja aplicabilidade foi recusada na mencionada sentença, com fundamento em que tais disposições são organicamente inconstitucionais, por atentarem contra o disposto no artigo 165º. n.º 1 alínea c) da Constituição da República Portuguesa».
4. Por despacho da relatora o objecto do recurso foi restringido ao artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrada (na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro).
5. Notificado, o Ministério Público produziu, para o que agora releva, as seguintes alegações:
«2. Eventual inutilidade do conhecimento do recurso
2.1. Parece resultar da decisão que aí também se entendeu que se estava perante um meio ilegal - portanto inadmissível - de prova (artigo 125º do CPP), porque o arguido não fora previamente informado que a colheita de sangue se destinava a medir o grau de alcoolemia e só conhecendo a finalidade é que poderia conscientemente recusar ou consentir.
Assim sendo, poderá colocar-se a questão da inutilidade do presente recurso, face à existência de outro fundamento, para além do da inconstitucionalidade, que levaria a que o arguido fosse absolvido.
Vejamos: se a norma que constitui objecto do recurso, for considerada inconstitucional, a decisão recorrida manter-se-á inalterada; se a norma não for julgada inconstitucional, permitindo ao arguido recusar a recolha de sangue, subsistiria o outro fundamento.
Ou seja, podia recusar mas não tendo sido informado do fim a que se destinava a amostra, sempre se estaria perante uma prova ilegal, mantendo-se integralmente a absolvição.
Haverá, no entanto, uma terceira hipótese que leva a que o recurso mantenha a utilidade e que é a seguinte: se o Tribunal entender que a norma em causa não permite a recusa e que apesar disso não é inconstitucional, não tendo o condutor a possibilidade de recusar, poderá perder alguma relevância a exigência de informação prévia do fim a que se destina a recolha do sangue.
2.2. Por outro lado, cabendo recurso ordinário da decisão, o fundamento, que não o de inconstitucionalidade, não está consolidado na ordem dos tribunais judiciais.
Um Tribunal Superior pode revogar a decisão de 1.ª instância enquanto considerou a prova ilegal, dessa forma podendo emergir a questão da inconstitucionalidade como a única e a fundamental para a decisão.
Estando nós perante um recurso interposto ao abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, entendemos que, se se vislumbrar alguma utilidade ainda que apenas eventual ou remotamente, não poderá o Tribunal deixar de se conhecer do recurso.
(…)
4. Conclusão
1. Quer segundo o artigo 162º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, quer segundo o artigo 156º do mesmo Código na actual redacção (saída das alterações operadas pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28 de Setembro e pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro), em caso de acidente trânsito, quando não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser realizado, no estabelecimento de saúde para onde os intervenientes forem conduzidos, exame de pesquisa de álcool no sangue.
2. Como resulta da análise conjugada dos nº 2 e 3 do artigo 156º da Código da Estrada, na actual redacção, com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 162º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, em qualquer dos regimes, o interveniente em acidente pode recusar submeter-se àquele exame, caso em que se procederá à realização de outros exames médicos para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
3. Esta conclusão também se extrai do Acórdão nº 275/2009 do Tribunal Constitucional que julgou organicamente inconstitucional a norma do nº 8 do artigo 153º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, uma vez que se considerou que a alteração introduzida por aquele diploma legal retirara ao condutor o direito de recusar a recolha de sangue, direito que a redacção anterior (dada pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001), lhe concedia.
4. Ora, o Decreto-Lei nº 44/2005 não introduziu qualquer alteração relevante ao artigo onde se inclui a norma do nº 2 do artigo 156º do Código da Estrada, mantendo-se, no essencial, a redacção anterior, conferida pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001 (artigo 162º).
5. Deste modo, não tendo a actual redacção do artigo 156º do Código da Estrada qualquer carácter inovatório em relação ao estabelecido no artigo 162º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98 e pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, a norma do nº 2 daquele artigo 156º não é organicamente inconstitucional, mesmo entendendo que se está perante matéria cujo tratamento legislativo cabe na competência exclusiva da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e c) da Constituição).
6. Pelo exposto, deve conceder-se provimento ao recurso».
6. Notificado, o recorrido alegou no sentido da utilidade do conhecimento do recurso, concluindo que ao mesmo deve ser negado provimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. A norma que é objecto do presente recurso é a norma do artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, porquanto a aplicação da mesma foi recusada pela sentença recorrida, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Aquela disposição legal tem a seguinte redacção:
«Artigo 156.º
Exames em caso de acidente
1 – (…)
2 – Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
3 – (…)
4 – (…)».
Para a apreciação da questão de constitucionalidade posta nos presentes autos há que ter em conta, ainda, a redacção do n.º 3 deste mesmo artigo e do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio:
«Artigo 156.º
Exames em caso de acidente
1 – (…)
2 – (…)
3 – Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, deve proceder-se a exame médico para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
4 – (…)»;
«Artigo 7.º
Exame médico para determinação do estado de influenciado pelo álcool
1 – Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153.º e no n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente.
2 – (…)
3 – (…)».
2. Importa começar por decidir a questão prévia da inutilidade do conhecimento do recurso, levantada pelo Ministério Público por constar da decisão recorrida um outro fundamento que também conduz à absolvição do arguido: a prova que serviu de base à análise para apurar o grau de alcoolemia “constitui prova ilegal, inválida ou nula, que não pode produzir efeitos em juízo”, uma vez que o arguido não foi informado ou devidamente esclarecido do fim a que se destinava a recolha de sangue (artigo 125.º do Código de Processo Penal).
Não se trata, contudo, de um fundamento verdadeiramente alternativo, justificando-se, por isso, a apreciação da norma cuja aplicação foi recusada, com fundamento em inconstitucionalidade.
O entendimento de que a prova produzida nos presentes autos é ilegal, inválida ou nula depende de um juízo prévio no sentido de o artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrado ser organicamente inconstitucional. Lê-se na decisão recorrida, depois de se ter concluído pela conformidade constitucional da norma de um ponto de vista material, que “a retirada do direito de o arguido poder recusar a recolha de sangue padece de inconstitucionalidade orgânica. E, sendo assim, o arguido poderia ter recusado expressamente a colheita do sangue (…). Mas para que o arguido, no caso concreto, pudesse recusar a colheita de sangue ou para se entender/defender que o mesmo consentiu em tal colheita, forçoso é concluir que o arguido deverá saber, estar informado do fim a que se destina determinada colheita de sangue”.
3. O Tribunal da Comarca de Castro Daire recusou a aplicação do artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, com fundamento em violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, por ter entendido que a norma tem natureza inovatória, quando comparada com o artigo 162.º do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, emitido no uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto.
Segundo a decisão recorrida a “alteração inovatória”, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, que, tal como o diploma de 2005, não foi precedido de autorização legislativa, traduz-se em se ter retirado ao examinando, interveniente em acidente de viação, o direito de recusar a colheita de sangue nos casos em que não tenha sido possível o exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
4. Sucede, porém, que foi publicado, entretanto e em momento anterior ao da prática dos factos que deram origem aos presentes autos, o Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, cuja aprovação por lei parlamentar (Lei n.º 18/2007) não pode deixar de ter relevo na apreciação da questão de inconstitucionalidade posta a este Tribunal, como já se concluiu nos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 485/2010 e 487/2010 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Lê-se no primeiro o seguinte:
«5. Este diploma [a Lei n.º 18/2007] visou revogar e substituir o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro, que regulamentava o regime jurídico da fiscalização da condução sob a influência do álcool e de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, que então constava do Código da Estrada com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e, desse modo, toma implicitamente como base o novo regime legal que decorre das sucessivas alterações que foram introduzidas pelos diplomas legislativos posteriores, incluindo as resultantes dos Decretos-Lei n.º 265-A/2001 e n.º 44/2005.
Por outro lado, o novo Regulamento refere-se à «análise de sangue» como um dos métodos de detecção e quantificação da taxa de álcool (artigo 1º, n.º 2), e especifica que há lugar à realização daquele exame médico «[q]uando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste» (artigo 4º, n.º 1). Além de que assume ainda um carácter interpretativo relativamente às disposições do n.º 8 do artigo 153º e do n.º 3 do artigo 156º do Código da Estrada, ao estatuir no seu artigo 7º o seguinte:
«1- Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153º e no n.º 3 do artigo 156º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente.
[…]
Deste modo, o legislador parlamentar esclarece que a impossibilidade de realização do exame de pesquisa de álcool no sangue se afere unicamente em função da impossibilidade médica de proceder à própria colheita de sangue em quantidade suficiente para permitir a sua análise, afastando a hipótese de o exame médico alternativo à colheita de sangue poder vir a ser efectuado com base na simples recusa do examinando, e dando, assim, implícita cobertura ao regime legal que decorre das disposições dos artigos 156º, n.º 2, e 153º, n.º 8, na redacção que lhes foi dada, respectivamente, pelos Decretos-Lei n.ºs 265º-A/2001 e 44/2005), editados pelo Governo sem prévia autorização legislativa.
À norma do artigo 7º da Lei n.º 18/2007 pode, por conseguinte, atribuir-se um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13º do Código Civil, embora se não possa considerar a retroacção de efeitos à data da entrada em vigor das normas legais interpretadas, em face do princípio da não retroactividade da lei penal, que impede que possam ser qualificadas como crime condutas que, no momento da sua prática, eram tidas como irrelevantes - artigo 29º, n.º 1, da CRP (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 245).
Cabe ainda notar que o Tribunal Constitucional já considerou que a inconstitucionalidade orgânica não é pertinentemente invocável quando a Assembleia da República, em processo de apreciação parlamentar de decreto-lei, manifesta inequívoca vontade política de manter na ordem jurídica as normas organicamente inconstitucionais que foram submetidas à sua apreciação (acórdão n.º 415/89), ou, de outro modo, quando revela uma vontade positiva através da aprovação de alterações ao diploma ou rejeição de propostas de alteração relativamente às normas cuja inconstitucionalidade orgânica vem questionada (acórdão n.º 786/96).
No caso vertente, não estamos perante um processo legislativo específico de aprovação parlamentar de diplomas emanados do Governo, a que se refere o procedimento do artigo 169º da Constituição, pelo que não é directamente aplicável a referida jurisprudência constitucional. Mas, no presente contexto, não pode deixar de atribuir-se relevo à circunstância de a Assembleia da República, no uso da competência legislativa geral consagrada no artigo 161º, alínea c), da Constituição, ter regulado as matérias da fiscalização da condução sob a influência do álcool, que, nos termos do artigo 6º, n.º 1, do diploma preambular do Código da Estrada, se encontrava atribuído ao Governo.
Verificando-se, por outro lado, que o órgão parlamentar, através da emissão das referidas disposições dos artigos 4º e 7º do Regulamento aprovado pela Lei n.º 18/2007, veio consignar um regime jurídico consonante com a solução de direito que resultava já, segundo os critérios gerais da interpretação da lei, da referida disposição do artigo 156º, n.º 2, do CE, deixa de haver motivo para manter a arguição de inconstitucionalidade orgânica, até porque por efeito da intervenção parlamentar se operou a novação da respectiva fonte».
Reiterando este entendimento, não há que julgar organicamente inconstitucional a norma do artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Janeiro de 2011.- Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – José Borges Soeiro – Gil Galvão – Rui Manuel Moura Ramos. Nos termos da declaração aposta ao acórdão n.º 487/2010.
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