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Processo n.º 120/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central Administrativo Sul, em que é recorrente o Ministério Público e recorridos A. e o Município de Lisboa, foi interposto recurso obrigatório de constitucionalidade, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), da sentença daquele Tribunal na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição (e não do artigo 218.º, n.º 3, como por lapso se refere no requerimento de interposição do recurso), das normas dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º do “Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno” (aprovado pela Deliberação n.º 65/AM/2005, publicado no Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, 2.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 589, de Junho de 2005), quando interpretadas no sentido de que «a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação das licenças para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno».
2. O representante do recorrente Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. É exigência constitucional, por força do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que da aplicação de uma pena ou de condenação por um crime, não pode resultar como consequência automática e imediata, a perda de direitos, à revelia da culpa do agente infractor e das necessidades de prevenção.
2. Apesar do vínculo laboral altamente precário que, nos termos do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e de Fiscalização de Actividade de Guarda-Nocturno, do Município de Lisboa, os guardas–nocturnos detêm, essa actividade não pode deixar de se considerar um “direito profissional” para efeitos da sua inclusão no âmbito da protecção daquela norma constitucional.
3. Assim, as normas do artigo 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º do referido Regulamento, quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de um crime doloso determina automaticamente a revogação das licenças para o exercício da actividade profissional de Guarda-Nocturno, são inconstitucionais por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
4. Termos em que deve confirmar-se a decisão recorrida.»
3. O recorrido A. não contra-alegou.
4. Na sequência do despacho de fls. 285 e pelas razões nele constantes, foi notificado o Município de Lisboa para contra-alegar, tendo este apresentado contra-alegações, onde conclui o seguinte:
«1. Estabelece o artigo 9.°, n.° 1, alínea e), do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, que são requisitos de admissão a Concurso para atribuição de licença de exercício da actividade de guarda-nocturno não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso.
2. Conforme preceituado no artigo 25.°, do mesmo Regulamento, as licenças concedidas podem ser revogadas pela Câmara Municipal, a qualquer momento, com fundamento no incumprimento das regras estabelecidas para a respectiva actividade e na inaptidão do seu titular para o respectivo exercício.
3. O artigo 9.° do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, nomeadamente a sua alínea e), estabelece como um dos requisitos de admissão “Não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso”.
4. Através de sentença proferida em 17 de Outubro de 2007, pelo 1.° Juízo Criminal de Lisboa, 2. Secção, no âmbito do Processo Judicial n.° 330/05.5PGAMD foi a acusação imputada ao Requerente/Recorrido, de crime de dano previsto e punido pelo artigo 212.°, n.°1, do Código Penal, julgada totalmente procedente, por provada, e nessa medida condenou-o numa pena de 90 dias de multa, ou, em alternativa, a 60 dias de prisão, tendo a mesma transitado em julgado no dia 14 de Julho de 2008.
5. Os requisitos de admissão, isto é, a aptidão do titular da licença, são verificados no momento do concurso para atribuição da licença e em qualquer momento da validade desta, pois não faria sentido que, em qualquer momento do seu período de validade o seu titular deixasse de reunir os requisitos de admissão e pudesse continuar a exercê-la.
6. A Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, que veio estabelecer o novo regime das armas e suas munições, estabelece no seu artigo 14.°, n.°1, que a licença B1 [que habilita o seu portador ao uso e porte das armas da classe B1 e E] só pode ser concedida a quem seja maior de 18 anos e preencha ainda, cumulativamente, os requisitos ali previstos, dos quais decorre “(...) c) Sejam idóneos; (...)”.
7. Para efeitos de apreciação do requisito idoneidade estabelecido naquela alínea c), refere o artigo 14.º, n.° 2, da mesma Lei que, “ 2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeitos da apreciação do requisito constante na alínea c) do número anterior, é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão da licença o facto de ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou condenação judicial pela prática de crime”.
8. A remissão que o sobredito normativo faz para o artigo 30.°, da Constituição da República Portuguesa está relacionada com os «chamados efeitos da condenação» enquanto efeitos legalmente determinados derivados de uma condenação, invocados na douta sentença sob recurso, e que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática e mecânica, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos, tal como preceituado no artigo 30.°, n.° 4, da Lei Fundamental.
9. Este princípio jurídico-constitucional que decorre da ideia político-criminal de retirar às penas qualquer efeito infamante ou estigmatizante, e do dever do Estado de favorecer a socialização do condenado, não invalida, porém, que, por força de lei formal, à condenação por um crime e à imposição de pena respectiva, não acresçam outros efeitos.
10. A questão que aqui se coloca não colide, como recentemente se decidiu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 243/2007, de 30 de Março, com a exigência constitucional (de proibição de efeitos necessários das penas) enunciado naquele artigo 30.°, n.° 4 da Constituição da República Portuguesa.
11. Tendo-se em tal aresto julgado não inconstitucional a norma constante do artigo 1.º, n.° 2, alínea c), da Lei n.° 22/97 de 27 de Junho, na redacção que lhe foi dada pela Lei n° 93-A197, de 22 de Agosto, entretanto revogada pela Lei n.° 5/2006 de 23 de Fevereiro.
12. Neste Acórdão o Tribunal Constitucional debruçou-se, especificamente. sobre a exigência da obtenção (ou renovação) das licenças de uso e porte de armas ficar condicionada à verificação cumulativa, entre outros, de o requerente não ter sido alvo de medidas de segurança ou condenado judicialmente por qualquer dos crimes nem por quaisquer infracções ali elencados.
13. O Tribunal Constitucional, no aludido Acórdão, considerou que “(...) o uso de e porte de arma ... não constitui um «direito», tratando-se, antes, de uma actividade cujo exercício é condicionado à prévia titularidade de uma licença” não se verificava qualquer violação daqueles princípios constitucionais.
14. Explicitando-se, ainda, no mesmo Acórdão, que “(...) não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas, mesmo de defesa, independentemente dos condicionalismos ditados designadamente peio interesse público em evitar os inerentes perigos, Interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis”.
15. Considerando-se, assim, que o uso e porte de arma não constitui um «direito» de qualquer cidadão, mas antes se trata de uma mera actividade cujo exercício é condicionado à prévia titularidade de uma autorização de carácter administrativo, mediante a qual se visa acautelar o interesse público em evitar os perigos inerentes, ter-se-á de concluir que não violaria o disposto no artigo 30.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa a exigência de que a concessão dessa licença continue a depender, designadamente, da não condenação do requerente pela prática de crime — facto que é, por si, susceptível de indiciar falta do requisito de idoneidade para ser titular dessa licença.
16. Considerando-se que a actividade de guarda-nocturno se trata de uma actividade cujo exercício é condicionado à prévia titularidade de uma autorização de carácter administrativo, esta dependente, entre o mais, do requerente não ter sido condenado com sentença transitada em julgado pela prática de crime dolo, capacitando-o para o respectivo exercício, ter-se-á de concluir que não viola o disposto no artigo 30.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa a exigência de que a concessão dessa licença continue a depender, designadamente, da não condenação do requerente pela prática de crime, facto que é, por si, susceptível de indiciar falta do requisito para ser titular dessa licença.
17. O preceituado nos artigos 9.° n° 1 alínea e) e 25.° ambos do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação da licença para o exercício da actividade profissional de Guarda-Nocturno, não violam o artigo 30.º da Constituição, não sendo assim inconstitucionais.
Termos em que, e sempre nos melhores de direito,
Deve ser negado provimento ao presente recurso e, nessa medida não julgar inconstitucional as normas contidas nos artigos 9.º n° 1 e) e 25.º que a douta Sentença recorrida não aplicou nos autos correspondentes ao Proc. n° 808/09, 3.ª UO do TAC, com todas as legais consequências, como é de
JUSTIÇA.»
5. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
- A. é titular de licença n.º 131, emitida em 02.12.2002, para o exercício de actividade de guarda-nocturno, actividade que exerce pelo menos desde 1986;
- Por sentença do 1.º Juízo Criminal de Lisboa, transitada em julgado, o referido A. foi condenado pela pratica de um crime de dano, previsto e punido no artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 4,00€, perfazendo a multa global de 360,00€ ou, em alternativa, 60 dias de prisão;
- Na sequência de comunicação à Polícia Municipal de Lisboa, informando daquela condenação, foi aberto procedimento, no âmbito do qual o referido A. foi notificado para se pronunciar, nos termos do artigo 100.º do Código do Procedimento Administrativo, sobre a intenção de revogação da referida licença;
- Após “Informação/Proposta” na qual se concluía propondo a revogação da licença, com fundamento em que o recorrente havia cometido crime doloso (de acordo com o previsto, designadamente, nos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º do citado Regulamento), foi, pelo Comandante da Polícia Municipal de Lisboa, proferido despacho, que revogou e cassou a licença, nos termos e com os fundamentos constantes da dita “Informação/Proposta”;
- Inconformado, A. apresentou reclamação daquela decisão, tendo o Comandante da Polícia Municipal de Lisboa mantido a decisão;
- Ainda inconformado, A. intentou providência cautelar de suspensão da eficácia deste despacho do Comandante da Polícia Municipal de Lisboa, que manteve a decisão de lhe revogar a licença para o exercício da actividade de Guarda-Nocturno;
- Por sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, proferida com antecipação do juízo sobre a causa principal (nos termos do artigo 121.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos), foi decidido recusar, com fundamento em inconstitucionalidade, a aplicação das normas constantes dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do citado “Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno”, quando interpretadas no sentido de que «a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação das licenças para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno»; e foi, em consequência, anulado o acto impugnado.
- Desta sentença foi interposto, pelo Ministério Público, o presente recurso de constitucionalidade; e foi interposto recurso, pela entidade requerida Município de Lisboa, para o Tribunal Central Administrativo Sul, que decidiu sobrestar a respectiva decisão até ao julgamento do recurso de constitucionalidade (cfr. fls. 266/267 dos autos).
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
6. As normas dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do “Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno” (aprovado pela Deliberação n.º 65/AM/2005, publicado no Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, 2.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 589, de Junho de 2005), têm o seguinte teor:
«Artigo 9.º
(Requisitos de admissão)
1 – São requisitos de admissão a Concurso para atribuição de licença de exercício da actividade de guarda-nocturno:
a) (…);
b) (…);
c) (…);
d) (…);
e) Não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime doloso;
f) (…);
g) (…);
h) (…);
i) (…);
j) (…);
2 – (…).»
«Artigo 25.º
(Outras medidas)
As licenças concedidas nos termos do presente Regulamento podem ser revogadas pela Câmara Municipal, a qualquer momento, com fundamento no incumprimento das regras estabelecidas para a respectiva actividade e na inaptidão do seu titular para o respectivo exercício.»
O tribunal recorrido recusou a aplicação das normas dos citados artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, quando interpretadas no sentido de que «a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação das licenças para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno».
Para tanto, considerou que as normas assim interpretadas violam o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, na medida em que estabelecem a revogação da licença de exercício da actividade de guarda-nocturno como consequência automática e efeito necessário da condenação pela prática de um crime doloso.
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional pronunciou-se igualmente pela inconstitucionalidade daquela interpretação normativa, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, pelas seguintes razões principais:
i) A revogação e a cassação da licença de guarda-nocturno ficaram a dever-se exclusivamente ao facto de o seu titular ter sido condenado pela prática de um crime de dano, surgindo assim, como efeito automático de tal condenação;
ii) Apesar do carácter precário da licença, que é renovável anualmente e pode ser revogada a todo o tempo, deve concluir-se que estamos perante a perda de um “direito profissional”, pois o interessado vem exercendo a actividade de guarda-nocturno há, pelo menos, vinte e quatro anos (desde 1986, tendo-lhe sido atribuída a licença em causa em 2002);
iii) A natureza “para-policial” da actividade em causa, que inclusivamente implica o uso e porte de arma de fogo (artigo 20.º do citado Regulamento), embora possa determinar maiores exigências na concessão e renovação da licença, não afasta as razões da inconstitucionalidade, à semelhança do que o Tribunal decidiu no Acórdão n.º 239/2008 que declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, a norma que não permitia que uma pessoa condenada pela prática de qualquer crime doloso se candidatasse a agente da Polícia Marítima, por incompatibilidade com o artigo 30.º, n.º 4, da Constituição;
iv) As condições de acesso a uma profissão implicam restrições à liberdade de escolha e de exercício de profissão, enquanto que a “saída” dessa profissão pode pôr em causa o próprio direito ao trabalho, sendo, nesse caso, mais gravosas as respectivas consequências. Por isso, os requisitos de ingresso numa profissão e os de permanência nessa mesma profissão não têm de ser definidos nos mesmos moldes, sendo disso exemplo o disposto no artigo 66.º do Código Penal (que prevê a pena acessória de proibição do exercício de funções em consequência da prática de um crime — incluído no catálogo de crimes que teriam excluído a admissão ao exercício de funções públicas, mas praticado durante o exercício dessas funções — apenas quando exista uma relação relevante entre o referido crime e as funções em causa);
v) No caso em apreço, o crime de dano pelo qual foi condenado o interessado foi cometido no âmbito de uma relação de (má) vizinhança, nada tendo a ver com a actividade profissional de guarda-nocturno;
vi) Não obstante a decisão de revogação e cassação da licença de guarda-nocturno ter sido praticada no âmbito de um procedimento administrativo, onde o interessado foi ouvido, tal decisão e a consequente “perda do direito” têm natureza automática, pois teve como fundamento, exclusivamente, o facto de o interessado ter cometido o crime de dano, sem qualquer ponderação das circunstâncias concretas;
vii) Ainda que assim não fosse, o certo é que a decisão recorrida interpretou as normas em causa como “constituindo um efeito automático”, sendo esta interpretação um dado adquirido para o Tribunal Constitucional, em sede de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade.
O recorrido Município de Lisboa pugnou pela constitucionalidade das normas em causa, em síntese, porque a actividade de guarda-nocturno não constitui um “direito” de qualquer cidadão, mas antes uma actividade condicionada à prévia titularidade de uma autorização de carácter administrativo; e que a condenação pela prática de crime doloso é, só por si, susceptível de indiciar a falta do requisito de idoneidade para ser titular dessa licença. Conclui que as normas em apreço não contrariam a proibição do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, à semelhança do decidido no Acórdão n.º 243/2007 deste Tribunal Constitucional, a propósito da obtenção (ou renovação) das licenças de uso e porte de arma.
7. O artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, estabelece que «[N]enhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos».
Como já se escreveu no Acórdão n.º 368/08, esta norma constitucional «visa salvaguardar que qualquer sanção penalizadora da conduta punida, independentemente da sua natureza e medida, resulte da concreta apreciação, pela instância decisória, do desvalor dessa conduta, por confronto com os padrões normativos aplicáveis. O que se proíbe é a automática imposição de uma sanção, como efeito mecanicisticamente associado à pena ou por esta produzido, sem a mediação de qualquer juízo, em concreto, de ponderação e valoração da sua justificação e adequação, tendo em conta o contexto do caso. E a proibição é necessária para garantia de efectivação de princípios fundamentais de politica criminal (…)».
Ou seja, como se sustentou no Acórdão n.º 284/89:
«(…) com tal preceito constitucional pretendeu-se proibir que, em resultado de quaisquer condenações penais, se produzissem automaticamente, pura e simplesmente ope legis, efeitos que envolvessem a perda de direitos civis, profissionais e políticos e pretendeu-se que assim fosse porque, em qualquer caso, essa produção de efeitos, meramente mecanicista, não atenderia afinal aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, princípios esses de todo inafastáveis de uma lei fundamental como a Constituição da República Portuguesa que tem por referente imediato a dignidade da pessoa humana».
A proibição dos efeitos necessários das “penas” estende-se, por identidade de razão, aos efeitos automáticos ligados à “condenação” pela prática de certos crimes (v., neste sentido, Gomes Canotilho/ Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2007, 505). E é aplicável não apenas no âmbito do ilícito penal, mas também no âmbito do ilícito administrativo, nomeadamente, quando estejam em causa efeitos de ilícitos disciplinares (cfr., por todos, o Acórdão n.º 562/2003 e a resenha jurisprudencial nele constante).
8. No caso em apreço, situamo-nos no âmbito do ilícito penal, uma vez que vem questionada a perda da licença para o exercício da actividade de guarda-nocturno como efeito da condenação pela prática de um crime doloso.
Importa, em primeiro lugar, averiguar se a perda desta licença equivale à perda de “direitos civis, profissionais ou políticos” e, como tal, se inclui no âmbito da proibição do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
A actividade de guarda-nocturno só pode ser exercida mediante a atribuição de uma licença, que é válida por um ano e cuja renovação depende do preenchimento de um conjunto de requisitos (cfr. artigo 14.º do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno).
Mas esta actividade, embora careça de licenciamento para ser exercida, não deixa de ter a natureza de uma actividade profissional remunerada, que consiste na «ronda e vigia, por conta dos respectivos moradores, dos arruamentos da respectiva área de actuação, protegendo as pessoas e bens» (cfr. artigos 16.º, n.º 1, e 17.º do Regulamento)
Pronunciando-se sempre num contexto de “carreira militar”, o Tribunal Constitucional tem entendido que integram o conceito de “perda de direitos profissionais”, para efeito do disposto no artigo 30.º, n.º 4, da CRP, as situações de “demissão” (cfr. Acórdão n.º 165/86 que, na sequência dos Acórdãos n.ºs 16/84 e 127/84, declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma do Código de Justiça Militar de 1977, que impunha a demissão de oficial ou sargento dos quadros permanentes ou de praças em situação equivalente como efeito necessário da sua condenação pelos crimes aí referidos); de “baixa de posto” (Acórdão n.º 255/87, que julgou inconstitucional norma do Código de Justiça Militar, que impõe a baixa de posto dos oficiais ou sargentos que pertençam ao quadro de complemento como consequência da condenação por determinados crimes); e de “entraves à progressão na carreira” (Acórdão n.º 562/2003, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana, que impedia a promoção a determinado posto, como consequência automática da aplicação de determinadas sanções disciplinares).
A proibição de perda automática de “direitos profissionais” constante do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, não se restringe à perda de direitos no contexto de uma determinada carreira profissional, mas abrange também, além do mais, os direitos de escolha e exercício de profissão, assegurados pelo artigo 47.º da Constituição.
Neste sentido já se pronunciou o Tribunal Constitucional, nomeadamente, nos Acórdãos n.º 154/2004 e 239/2008 (no mesmo sentido v. Gomes Canotilho/ Vital Moreira, ob. cit., 505).
No Acórdão n.º 154/2004 (que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de norma que estabelecia as condições de acesso e de exercício da profissão de motorista de táxi), estava em causa uma norma que impedia quem tivesse sido condenado em pena de prisão efectiva igual ou superior a três anos, salvo reabilitação, de exercer a actividade de motorista de táxi, e concluiu-se que essa norma tinha como efeito «a perda das liberdades de escolher e de exercer esta profissão de motorista de táxi», ou seja, a perda de um direito profissional, proibida pelo artigo 30.º, n.º 4, da Constituição.
E no Acórdão n.º 239/08, o Tribunal também declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que não permitia que uma pessoa condenada pela prática de qualquer crime doloso se candidate a agente da Polícia Marítima, com fundamento em que constituía «uma interdição ao exercício do direito constitucional de acesso a uma determinada profissão (artigo 47.º, n.º 1, da C.R.P.), como consequência da existência de uma condenação penal anterior, sem qualquer ponderação da adequação e da necessidade de aplicação de tal medida de interdição, o que contraria a proibição contida no artigo 30.º, n.º 4, da C.R.P.».
No caso em apreço, estamos igualmente perante uma interdição de exercício de uma actividade profissional, a de guarda-nocturno. De facto, a condenação pela prática de um qualquer crime doloso não tem apenas por efeito a “revogação” da licença atribuída, mas também a “impossibilidade” legal (por falta dos requisitos necessários) de se candidatar a nova licença (impossibilidade que subsiste por tempo indeterminado, uma vez que as normas não estipulam qualquer prazo para a eventual irrelevância de condenações passadas).
Conclui-se, assim, que as normas em causa implicam a perda da liberdade de escolher e de exercer a actividade de guarda-nocturno (artigo 47.º, n.º 1, da Constituição), ou seja, a perda de um “direito profissional”, abrangido pela proibição do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição.
9. Importa agora saber se a revogação/cassação daquela licença que, como vimos, integra o conceito de “perda de um direito profissional”, constitui um “efeito automático” da condenação pela prática de um crime doloso.
O tribunal recorrido partiu desse pressuposto para recusar a aplicação das normas dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, com fundamento em inconstitucionalidade.
As normas questionadas encaram a sentença condenatória (transitada em julgado) como um facto e associam-lhe imperativamente a sanção de revogação da licença para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno. A revogação da licença é um efeito imposto por norma regulamentar, que não deixa qualquer margem de apreciação à entidade administrativa para poder avaliar as circunstâncias do caso concreto e emitir um juízo sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar tal revogação.
Como bem salienta o Ministério Público, o automatismo da revogação da licença não é contrariado pelo facto de a decisão de revogação ser proferida no âmbito de um procedimento administrativo. Pois, apesar de nesse procedimento estarem asseguradas, formalmente, as garantias de defesa do administrado (em cumprimento do disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento Administrativo, como aconteceu no caso vertente), o certo é que a decisão a proferir se limitará (como aqui se limitou) a constatar o facto – a condenação por crime doloso – e a determinar a consequente revogação da licença. Uma vez documentada a condenação por crime doloso e o respectivo trânsito em julgado, nada mais resta à entidade administrativa a não ser determinar a revogação da licença em cumprimento das citadas normas regulamentares. Assim, a interpretação normativa questionada associa, de forma imediata, a verificação do “facto” à respectiva consequência e impõe uma única decisão possível, não deixando margem para a mediação de um juízo da autoridade administrativa sobre a idoneidade daquela condenação para fundamentar a revogação da licença atribuída.
Diversamente de outros casos, decididos pelo Tribunal Constitucional, não há aqui uma conexão necessariamente relevante entre o crime praticado e a actividade sob licenciamento.
A presente situação é, assim, diferente da decidida no Acórdão n.º 461/2000 (secundado pelos Acórdãos n.ºs 574/200 e 45/2001), em que estava em causa a caducidade da licença de condução provisória em consequência da condenação na pena de proibição de conduzir ou na sanção de inibição de conduzir. Para o juízo de não inconstitucionalidade formulado neste Acórdão, foi relevante não apenas a natureza provisória da licença, mas também a constatação de que «não há qualquer não razoabilidade ou falta de proporcionalidade em prever que a não instauração de procedimento por infracção de trânsito seja condição de uma decisão de licenciamento definitivo ou que a caducidade de uma licença provisória se verifique quando haja uma condenação em inibição de conduzir.»
Também nos Acórdãos n.ºs 291/95, 53/97, 149/2001, 79/2009 e 363/2010, que julgaram não inconstitucionais normas que estabelecem a sanção acessória de inibição da faculdade de conduzir associada à prática de certos crimes, se salientou a conexão entre a conduta geradora da responsabilidade criminal e a sanção de inibição de conduzir.
A interpretação normativa sub judicio prevê a revogação/cassação da licença para o exercício da actividade de guarda-nocturno como um “efeito” decorrente da condenação por qualquer crime doloso, pelo que essa condenação não revela, só por si, a demonstração ou comprovação da falta dos requisitos necessários para o exercício da actividade de guarda-nocturno.
Ainda a respeito da qualificação desta situação como “efeito automático” cumpre salientar as diferenças entre a presente situação e aquela que foi tratada no Acórdão n.º 422/2001, que decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 21.º, n.º 5, da Lei n.º 173/99, de 21 de Setembro, que determina a caducidade da carta de caçador.
Lê-se neste aresto:
«O agente que vê a sua carta caducar é recolocado na situação em que qualquer cidadão não titular de carta se encontra, podendo, por essa via, requerer a obtenção de uma nova carta. Esta medida não se configura, fundamentalmente, como sanção penal não tendo de ser articulada com a culpa do agente ou com a gravidade do evento. Com efeito, ela descreve apenas a alteração das circunstâncias em que foi decidida a concessão da licença. A circunstância de se tratar de uma infracção criminal é suficientemente grave para justificar, na perspectiva do legislador, a reapreciação da situação do agente enquanto titular da carta de caçador, uma vez que tal actividade só deve ser exercida por sujeitos que demonstrem uma específica formação e aptidão, por estar em causa a protecção de valores ambientais com dignidade constitucional. Assim, a condenação pelo crime de caça constitui uma verdadeira condição resolutiva da validade da carta (…)».
Diversamente, no caso em apreço, aquele que vê revogada a licença para o exercício da actividade de guarda-nocturno é simultaneamente colocado numa situação de não preenchimento dos requisitos de admissão a um novo concurso para a atribuição dessa mesma licença, pois falta-lhe o requisito de «não ter sido condenado, com sentença transitada em julgado, pela prática de um crime doloso» (alínea e) do n.º 1 do artigo 25.º do Regulamento).
Embora referindo-se apenas à “duração” dos efeitos automaticamente associados a um crime, Damião da Cunha in Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, T. I, 2.ª ed., Coimbra Editora, 2010, 686-687, salienta que «não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja estes direitos [os direitos civis, profissionais ou políticos], que fica violada um qualquer princípio constitucional, desde que seja sempre respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto, como em concreto, p. ex., através da determinação, por moldura legal, do tempo de privação do direito ou, então, através da previsão de uma cláusula de salvaguarda por “manifesta desproporção”».
No caso em apreço a falta de conexão, em abstracto, entre todo e qualquer crime doloso e a actividade de guarda-nocturno, aliada à impossibilidade de, em concreto, se formular um juízo de adequação entre aquele crime e esta actividade, conduz à violação do princípio da proporcionalidade.
Conclui-se, assim, que as normas dos citados artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno, quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de crime doloso determina automaticamente a revogação das licenças para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno, consagram uma solução proibida pelo n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, pelo que é forçoso concluir pela sua inconstitucionalidade.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade, as normas dos artigos 9.º, n.º 1, alínea e), e 25.º, do “Regulamento Municipal do Licenciamento do Exercício e da Fiscalização da Actividade de Guarda-Nocturno” (aprovado pela Deliberação n.º 65/AM/2005, publicado no Boletim Municipal da Câmara Municipal de Lisboa, 2.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 589, de Junho de 2005), quando interpretadas no sentido de que a condenação pela prática de um crime doloso determina automaticamente a revogação da licença para o exercício da actividade profissional de guarda-nocturno.
Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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