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Processo n.º 489/10
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, foi interposto recurso pelo Ministério Público, para si obrigatório, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, da decisão proferida pela 1ª Secção do Juízo Único do Tribunal do Trabalho do Porto, em 06 de Maio de 2010 (fls. 232 a 247) que determinou a desaplicação da norma extraída do artigo 87º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (e que foi mantido pelo actual artigo 119º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto).
2. Notificado para tal pela Relatora, o Ministério Público produziu alegações, das quais constam as seguintes conclusões:
«1º
A norma constante do artº. 87.º, da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, que atribui competência, aos tribunais do trabalho, para conhecer os recursos de coimas aplicadas pelo Instituto da Solidariedade e Segurança Social, no âmbito de um processo contra-ordenacional, em matéria laboral e da segurança social, não afronta a Lei Fundamental, nomeadamente, os seus artigos 110º, nº 2 e 212º, nº 3 (não fazendo qualquer sentido, para o caso em análise, a invocação do art.º 213º da C.R.P., que contempla os tribunais militares).
2º
Efectivamente, constitui entendimento pacífico e reiterado deste Tribunal Constitucional que o artigo 212º, nº 3, da C.R.P., não impõe que todos os litígios emergentes de uma qualquer relação jurídica administrativa, sejam dirimidos pelos tribunais administrativos, mas apenas significa que a existência dos tribunais administrativos é obrigatória e que eles estão dotados, em geral, de competência para dirimir litígios administrativos.
3º
Entendimento jurisprudencial que se encontra plasmado, nomeadamente, nos Acórdãos com os nºs 522/08 e 632/09, que se enumeram, dado o paralelismo das situações, pois emergem de decisões administrativas, no âmbito de processos de contra-ordenação.
Ora, também nestes casos, o Tribunal Constitucional se pronunciou no sentido de que a reserva material da jurisdição administrativa não obsta a que os recursos, em matéria contra-ordenacional, sejam apreciados pelos tribunais judiciais.
4º
Assim, não existe impedimento constitucional à exclusão, pontual e fundamentada, da jurisdição administrativa, para a apreciação de determinadas questões de natureza administrativa.
5º
Aliás, o art.º 4º do ETAF, que enuncia o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, exclui dessa jurisdição os litígios que constituam ilícito penal ou contra-ordenacional, bem como os actos relativos a inquérito e instrução criminal, ao exercício da acção penal e à execução das respectivas decisões.
6º
Como tal e no contexto do processo de contra-ordenação laboral e da segurança social, em que coexistem matérias administrativas com modelos penais e processuais penais, a remissão para os tribunais do trabalho das impugnações judiciais, não se afigura atentatória do figurino típico que a Constituição quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça administrativa.».
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido deixou expirar o prazo legal, sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta.
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. O presente recurso destina-se a apreciar a questão da constitucionalidade da escolha da jurisdição competente (judicial ou administrativa) para apreciação de impugnações contenciosas de decisões sancionatórias em matéria contra-ordenacional. No caso em apreço, discute-se, em particular, a competência dos tribunais do trabalho – integrados na jurisdição judicial “amplo sensu” –, que resulta do artigo 87º da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (e que foi mantido pelo actual artigo 119º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), ao determinar:
“Artigo 87º
Competência em matéria de contra-ordenações
Compete aos tribunais do trabalho julgar os recursos das decisões das autoridades administrativas em processos de contra-ordenação nos domínios laboral e da segurança social.”
Para melhor compreensão da questão de inconstitucionalidade normativa em discussão, importa notar que o ilícito contra-ordenacional que foi alvo de impugnação jurisdicional correspondia à violação de regras de higiene e segurança a respeitar por estabelecimentos de apoio social relativos a idosos (artigos 1º do Decreto-Lei n.º 133-A/97, de 30 de Maio), sancionado nos termos da alínea a) do artigo 31º do referido diploma legal, nos seguintes termos:
“Artigo 31º
Contra-ordenações relativas às instalações e ao funcionamento
dos estabelecimentos
Constituem contra-ordenações, puníveis com coima de 200.000$00 a 1.000.000$00:
a) A inadequação das instalações, bem como as deficientes condições de higiene e segurança, face aos requisitos estabelecidos;
(…)”
Na realidade, desde a sua consagração legislativa no ordenamento jurídico português, o regime do ilícito de mera ordenação social tem suscitado controvérsia quer quanto à sua sujeição alternativa ao Direito Penal (e Processual Penal) ou ao Direito Administrativo (e Processual Administrativo), quer quanto à sua submissão à jurisdição judicial ou à jurisdição administrativa (registando estas dificuldades, ver Vítor Gomes, As sanções administrativas na fronteira das jurisdições. Aspectos jurisprudenciais, in «CJA», n.º 71, Setembro-Outubro, 2008, pp. 6 e 7; António Duarte de Almeida, O ilícito de mera ordenação social na confluência de jurisdições: tolerável ou desejável-, in «CJA», n.º 71, Setembro-Outubro, 2008, pp. 15 a 21; Marcelo Madureira Prates, Sanção Administrativa Geral: Anatomia e Autonomia, 2006, Coimbra, pp. 145 a 165). Tal controvérsia resulta, em grande medida, da circunstância de o movimento de descriminalização ter vindo a acentuar os poderes sancionatórios da Administração Pública, com vista à prevenção e punição de comportamentos ilícitos que, apesar de gravosos e lesivos do interesse público, não alcançam um grau tal de ilicitude que justifique a sua incriminação penal. Deste modo, verificou-se “o reconhecimento de um poder atribuído por lei a órgãos administrativos para mediante actos de autoridade susceptíveis de definir unilateralmente a situação jurídica de outros sujeitos de direito, aplicar medidas de natureza punitiva, em ordem a reprimir comportamentos tipificados como infracção a deveres de acção ou de omissão estabelecidos na lei ou regulamento, [que] não sofre contestação actual no direito positivo português” (Vítor Gomes, cit., p. 6).
Desde logo, não deve esquecer-se que não cabe apenas ao Direito Penal reprimir a violação da legalidade. Bem pelo contrário, cabe igualmente ao Direito Administrativo, através das entidades encarregues da prossecução da actividade administrativa, proceder à vigilância escrupulosa do cumprimento das leis e, em caso de necessidade justificada, reprimir a sua violação, mediante o emprego dos meios coercivos do Estado, designadamente, através da aplicação de sanções administrativas (Ramón Parada, Derecho Administrativo – Parte General, Vol. I, 16ª edição, Madrid, 2007, p. 408; Marcelo Madureira Prates, cit., pp. 25 a 50; Marcelo Rebelo de Sousa / André Salgado Matos, Direito Administrativo Geral – Introdução e Princípios Fundamentais, Tomo I, 2004, Lisboa, pp. 70 a 72; Miguel Prata Roque, Os poderes sancionatórios da ERC – Entidade Reguladora da Comunicação Social, in «Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras», 2009, Coimbra, pp. 390 e 391). E, aliás, deve frisar-se que, não raras vezes, a gravidade da sanção administrativa – e, em especial, da sanção contra-ordenacional – tende a equivaler (ou mesmo superar) a correspondente lesividade da sanção penal, quer em função das avultadas quantias pecuniárias devidas a título de coima (Paulo Otero / Maria Fernanda Palma, Revisão do regime do ilícito de mera ordenação social, in «RFDUL», 1996, n.º 2, p. 562; Pedro Gonçalves, Direito Administrativo da Regulação, in «Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano», 2006, FDUL, pp. 535 a 539; Miguel Prata Roque, cit., pp. 432 a 437), quer pelo risco de descriminalização fictícia de condutas materialmente criminosas, com vista à subtracção ao regime mais garantístico, próprio da lei processual penal (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2004, Coimbra, p. 152; Paula Costa e Silva, As autoridades administrativas independentes. Alguns aspectos da regulação económica numa perspectiva jurídica”, in «O Direito», Ano 138.º, 2006, Tomo III, p. 557; José António Veloso, Aspectos Inovadores do Projecto de Regulamento da Autoridade da Concorrência”, in «Regulação e Concorrência – Perspectivas e limites da defesa da concorrência», 2005, Coimbra, p. 57).
Com efeito, em tese, poderia ter-se optado por um modelo de impugnação contenciosa assente na competência dos tribunais administrativos, tal como preconizado, entre outros, por Eduardo Correia [cfr. O Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social, in «BFDUC», XLIX, 1973, pp. 257 a 281], que, aliás, prevenia para o risco de manter o regime do ilícito de mera ordenação social como “refém” do Direito Penal, considerando que “admitir um recurso para os tribunais comuns, seria, afinal, criminalizar decisões que, justamente, se quer que não tenham o sentido das sentenças que aplicam penas criminais” (cit., p. 276).
Não foi essa, porém, a opção do legislador que, apesar de proceder a uma segmentação entre uma “fase administrativa” (artigos 33º a 58º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro) e uma “fase jurisdicionalizada” do procedimento contra-ordenacional (artigos 59º e 95º do mesmo diploma legal), remeteu para os tribunais judiciais a competência para julgar aqueles recursos contenciosos (por força de uma interpretação sistemática dos artigos 59º, n.º 1, e 61º do Decreto-Lei n.º 433/82; neste sentido, ver Marcelo Madureira Prates, A punição administrativa entre a sanção contra-ordenacional e a sanção administrativa, in «CJA», n.º 68, Março-Abril, 2008, p. 5; António Duarte de Almeida, cit., p. 16; Joaquim Pedro Cardoso da Costa, O recurso para os tribunais judiciais da aplicação de coimas, in «Ciência e Técnica Fiscal», n.º 336, Abril-Junho, 1992, p. 56).
Tendo em conta a decisão proferida nos autos recorridos – ou seja, no sentido da inconstitucionalidade da norma que atribui aos tribunais do trabalho competência para sindicar decisões condenatórias em matéria de contra-ordenações decorrentes da violação de regimes do âmbito da segurança social – importa verificar se tal opção legislativa corresponde a uma violação da esfera de reserva jurisdicional dos tribunais administrativos, tal como fixada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição da República Portuguesa.
5. Antes de mais, cumpre afirmar que as decisões administrativas que aplicam determinada sanção não podem deixar de ser consideradas como “actos administrativos”, na medida em que visam produzir efeitos jurídicos, numa situação individual e concreta (assim, Vítor Gomes, As sanções administrativas na fronteira das jurisdições. Aspectos jurisprudenciais, p. 12). Acresce que tal “acto administrativo” afigura-se sempre como uma manifestação da actividade administrativa de tipo agressivo, na medida em que comprime direitos subjectivos dos administrados, sujeitando-os a um determinado ónus – in casu, o pagamento de determinada quantia, a título de coima. Assim sendo, afigura-se igualmente incontroverso que o exercício de poder sancionatório pela Administração Pública implica sempre a contingência de uma relação jurídico-administrativa entre aquela e o sujeito da sanção aplicável.
Impõe-se, portanto, ponderar se a atribuição à jurisdição administrativa de poderes para “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” (artigo 212º, n.º 3, da CRP) não fica comprometida pela possibilidade de os tribunais judiciais – e, em especial, no caso dos autos, aos tribunais do trabalho – apreciarem impugnações contenciosas de decisões condenatórias proferidas pelos competentes órgãos administrativos.
Ora, a conclusão pela inconstitucionalidade do artigo 87º da Lei n.º 3/99 – tal como sustentou a decisão recorrida – pressupõe uma concepção demasiado ampla e absoluta da noção constitucional de “reserva de jurisdição administrativa” que, aliás, nunca foi acolhida pela jurisprudência constante neste Tribunal Constitucional. Pelo contrário, este Tribunal tem vindo sempre a considerar que a fixação constitucional de uma reserva de jurisdição (artigo 212º, n.º 3, da CRP) não impede o legislador de cometer a outros tribunais – que não os administrativos – o conhecimento de questões decorrentes de relações jurídico-administrativas, desde que tal não descaracterize completamente o modelo de dualidade de jurisdições (a título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 347/97, n.º 458/99, n.º 421/2000, n.º 550/2000; 284/2003, n.º 211/2007, n.º 522/2008 e n.º 632/2009, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/; na doutrina, em sentido idêntico, ver Sérvulo Correia, A arbitragem voluntária no domínio dos contratos administrativos, in «Estudos em Memória do Professor Castro Mendes», 1995, Lisboa, p. 254; Vieira de Andrade, Justiça Constitucional (Lições), 8ª edição, 2006, Coimbra, pp. 112 a 114; Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), 2006, Coimbra, pp. 21 e 22. Impõe-se, apenas, que seja respeitado um núcleo essencial de matérias que não podem ser extraídas ao conhecimento da jurisdição administrativa.
Adoptando, assim, uma noção moderada de “reserva de jurisdição administrativa”, veja-se, por todos, o Acórdão n.º 211/2007 (supra citado):
«Desta jurisprudência ressalta o entendimento, várias vezes sublinhado, de que a introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º, n.º 3, da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição administrativa, não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da competência para o julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes litígios fossem conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade de atribuição de alguns deles à jurisdição “comum”), nem impôs que esta jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição de pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das jurisdições».
Ora, esta noção moderada de reserva de jurisdição admite que um tribunal do trabalho possa conhecer de decisões proferidas por órgãos administrativos que, embora materialmente correspondam a “actos administrativos” destinados a produzir efeitos numa concreta e individualizada relação jurídico-administrativa, quando aquelas digam respeito a decisões condenatórias no âmbito de um procedimento contra-ordenacional fixado por regime relativo a matérias de apoio social. Isto porque a reserva de jurisdição fixada pelo n.º 3 do artigo 212º da CRP apenas exige que seja respeitado o núcleo essencial dos litígios jurídico-administrativos cujo conhecimento deve caber aos tribunais administrativos, sob pena de esvaziamento da tutela jurisdicional efectiva de natureza administrativa. Para além disso, certo é que, conforme sobejamente prevenido pela doutrina (Vítor Gomes, As sanções administrativas na fronteira das jurisdições. Aspectos jurisprudenciais, p. 13), tal atribuição de competências à jurisdição comum deve ser justificada, designadamente, pela necessidade de garantia da tutela efectiva dos administrados.
Sucede que, no que diz respeito à impugnação de decisões condenatórias de natureza contra-ordenacional, a unanimidade da doutrina – incluindo aquela que, num plano do direito infra-constitucional a constituir, advoga a sua sujeição à jurisdição administrativa (representando tal corrente, ver António Duarte de Almeida, O ilícito de mera ordenação social na confluência de jurisdições: tolerável ou desejável-, pp. 13 e 14; Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, pp. 24 e 25) – reconhece que existem fundadas razões para que tal competência caiba, excepcionalmente, aos tribunais judiciais e não aos tribunais administrativos. Em suma, são invocadas razões relacionadas com a escassez do número de tribunais administrativos – por comparação com os tribunais judiciais – e com a garantia de especialização dos tribunais que conhecem dos litígios jurídico-administrativos em causa (Mário Esteves de Oliveira / Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, cit., pp. 22 e 23). Dito de outro modo, atenta a especialização de alguns tribunais judiciais em função das matérias a apreciar, a própria garantia de tutela jurisdicional efectiva dos administrados (artigo 268º, n.º 4, da CRP) sairia reforçada pela atribuição àqueles do conhecimento de acções de impugnação de decisões condenatórias de natureza contra-ordenacional.
Na mesma linha, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, recentemente, através do Acórdão n.º 522/2008 (já supra citado):
“«Na verdade, a opção legislativa, com longa tradição entre nós, de manter o contencioso das contra-ordenações excluído da jurisdição administrativa foi assumida na discussão que antecedeu a recente reforma do contencioso administrativo e a redefinição do respectivo âmbito da jurisdição, de que veio a resultar o actual artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado, por último, pela Lei n.º 26/2008, de 27 de Junho). Como justificação para esta opção, invocaram-se as insuficiências de que padece a rede de tribunais administrativos (mesmo após a reforma), incapaz de dar a adequada resposta, sem o risco de gerar disfuncionalidades no sistema (cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL/ MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra, 2002, 24).
Por último, sendo inegável a natureza administrativa (…) do processo de contra-ordenação e das situações jurídicas que lhe estão subjacentes, a verdade é que o processo contra-ordenacional, pelo menos na fase judicial, está gizado à imagem do processo penal (cfr. artigos 41.º e 59.º e s., maxime, 62.º e s., do RGCO, e artigo 52.º Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que estabelece o regime aplicável às contra-ordenações ambientais). Neste contexto, em que coexistem matérias administrativas com modelos processuais penalistas, a “remissão” para os tribunais judiciais das impugnações judiciais no âmbito de processos de contra-ordenação (ambiental) não se afigura atentatória do figurino típico que a Constituição quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça administrativa»”.
Ora, esta jurisprudência é perfeitamente transponível para o caso da norma em apreço nos presentes autos. O tribunal do trabalho dispõe de competência especializada em matéria de âmbito social, a contra-ordenação em causa diz respeito à violação de regras legais aplicáveis em matéria de apoio social a idosos – in casu, da violação de regras legais relativas à higiene e segurança de lares de idosos. Assim sendo, atento o grau de especialização dos tribunais do trabalho, não se vislumbra qualquer risco de enfraquecimento da tutela jurisdicional efectiva que a Constituição garante ao administrado.
A opção legislativa de atribuição de competência aos tribunais do trabalho não colide, portanto, com a noção de “reserva de jurisdição administrativa”, constante do n.º 3 do artigo 212º da CRP, pelo que não pode afirmar-se, como fez a decisão recorrida, que a opção legislativa corporizada no artigo 87º da Lei n.º 3/99 se afigura contrária à Lei Fundamental, devendo, consequentemente, ser desaplicada. Por conseguinte, a decisão recorrida deve ser reformada.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar procedente o presente recurso;
E, em consequência,
b) Determinar que a decisão recorrida seja reformada, nos termos do n.º 2 do artigo 80º da LTC, em conformidade com o presente julgamento de não inconstitucionalidade.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.
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