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Processo n.º 634/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., por acórdão proferido em 22 de Abril de 2009, no processo n.º 7761/05.9TDPRT, da 3.ª Vara Criminal do Porto, foi condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de sete anos de prisão, pela prática, em co-autoria material e em concurso real, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), com referência aos artigos 202.º, alínea c), e 204.º, n.ºs 2, alínea f), e 4, todos do Código Penal, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 275.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao artigo 255.º, alínea a), ambos do Código Penal.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão proferido em 10 de Fevereiro de 2010, negou provimento ao recurso.
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por Acórdão de 5 de Maio de 2010 decidido não receber o referido recurso.
Deste acórdão o arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, nos seguintes termos:
“A., Arguido nos autos à margem referenciados, não se conformando com o douto Acórdão de 5 de Maio de 2010 proferido a fls. dos autos por esse Venerando Tribunal da Relação do Porto, dele pretende interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz no seguintes termos:
1. O Recorrente vem interpor recurso de harmonia com o disposto no art.º 70º, nº. 1, alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº. 28/82, de 15 de Novembro, alterada pelas Leis nº. 143/85, de 26 de Novembro, nº. 85/89, de 7 de Setembro, nº. 88/95, de 1 de Setembro e nº. 13-A/98, de 26 de Fevereiro).
2. Entendeu esse Venerando Tribunal da Relação que, “face à data da decisão da 1ª instância, aplica-se este quadro legal [o respeitante à Lei nº 48/2007, de 29/08, que veio alterar o art.º 400º, alínea f) do C. P. Penal] e não a interpretação dada pelo STJ no seu Acórdão n.º 4/2009 - DR nº 55, Is, de 19/03/2009, pois que repete-se, à data da prolação da decisão da 1ª instância já há muito vigoravam as referidas alterações legislativas, não tendo razão o recorrente A. quando pretende ver aplicado nos autos o doutamente decidido pelo STJ nº [sic] referido Acórdão nº 4/2009”.
3. Assim, por considerar ser de aplicar o actual regime da alínea f) do n.º 1 do art.º 400º do Cód. Proc. Penal (visto ser o que já vigorava à data da decisão da primeira instância), e não o que vigorava à data do início do presente processo, entendeu esse douto Tribunal não receber o recurso interposto pelo Recorrente, pelo facto de confirmar totalmente a decisão da primeira instância e manter a aplicação de uma pena concreta não superior a 8 anos.
4. Entende o Recorrente, salvo o devido respeito por melhor opinião, que carece totalmente de razão o douto acórdão em crise.
Isto porque:
5. Nos presentes autos, o Recorrente foi julgado pela 3ª Vara Criminal do Porto, tendo sido condenado na pena de prisão efectiva de 7 anos de prisão.
6. Dispõe actualmente o art.º 400º, n.º 1, al. f) que não é admissível recurso: “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.
7. Anteriormente à alteração legislativa levada a efeito pela Lei nº 48/2007 de 29/08, dispunha a mesma norma que não é admissível recurso: “de acórdãos proferidos, em recurso pelas Relações, que confirmem decisão de primeira instância, em processo crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a 8 anos, mesmo em caso de concurso de infracções” – o sublinhado é nosso.
8. Nos termos do estipulado no Acórdão nº. 4/2009, de 19/03/2009, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, publicado in Diário da República nº. 55, para uniformização de jurisprudência, “Nos termos dos artigos 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nº. 1, alínea f), na redacção anterior á entrada em vigor da Lei nº. 48/2007, de 29 de Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em vigor da referida lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a 8 anos, que confirme decisão de 1ª Instância anterior àquela data”.
9. Ora, é precisamente o que ocorre no caso vertente: o douto Acórdão de que se pretende recorrer e foi proferido em recurso, pelo Venerando Tribunal da Relação, confirma o douto Acórdão da primeira instância, em processo por crime a que é aplicável pena de prisão superior a 8 anos e pela prática de factos ocorridos antes da entrada em vigor da nova lei.
10. Daí a manifesta admissibilidade e recorribilidade do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.
11. Por entender de outra forma, está o Venerando Tribunal da Relação do Porto, salvo o devido respeito por melhor opinião, a coarctar manifestamente os direitos do Recorrente, designadamente os constitucionalmente consagrados.
12. Na verdade, a não admissibilidade do presente recurso veda frontalmente a possibilidade de o Recorrente ver os seus fundamentos apreciados em tal instância de recurso nos presentes autos,
13. diminuindo assim as suas garantias de defesa e limitando o seu direito de recurso, violando o disposto nos art.ºs 27º, 28º e 32º n.º 1 da Constituição da República.
14. Aliás, nesta matéria, o Tribunal Constitucional dispõe mesmo de jurisprudência firme que reconhece que, por força dos art.ºs 27º, 28º, e 32º, nº 1 da CRP, está constitucionalmente assegurado o duplo grau de jurisdição quanto às decisões condenatória e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a qualquer outro direito fundamental.
15. É que, in casu urge reter que, tendo em conta a sucessão de leis no tempo existente, os factos pelos quais o Recorrente foi condenado, ocorreram ao abrigo da lei anterior à Lei 48/20079 de 29/08.
16. E, para além dos direitos que possuem eficácia ao longo de todo o processo, nos termos do disposto no art.º 61º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal, os direitos de defesa do arguido estão assegurados, de harmonia com o estatuído no art.º 5º, n.º 2, alínea a) do mesmo diploma legal, independentemente da fase processual em causa no momento em que ocorre a alteração da lei.
17. Pois se os factos pelos quais o Recorrente foi condenado, assim como a sua detenção e demais actos processuais, tiveram lugar na vigência de uma lei que lhe permitia o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça,
18. razão pela qual tal grau de recurso sempre esteve nas suas firmes e legítimas expectativas,
19. não pode ele ser prejudicado pela supressão de tal grau de recurso, que representa um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma manifesta restrição ao seu direito de defesa.
20. Foi, assim, violado o disposto nos art.ºs 27º, 28º e 32º, n.º 1 da Constituição da República, pelo que o Recorrente pretende que seja apreciada a inconstitucionalidade dos art.º 5º, n.º 2, al. a) e 400º, n.º 1, al. f), ambos do Código de Processo Penal, na interpretação atribuída ao mesmo por aquele douto Tribunal.
21. Tal questão foi já suscitada pelo Recorrente no processo, nomeadamente, na interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que a questão de admissibilidade do recurso apenas foi suscitada em questão prévia pelo Recorrente, tendo sido alegada, na eventualidade de não recebimento ou rejeição de recurso (como veio a suceder), a violação do disposto nos art.ºs 27º, 28º e 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa da interpretação dada aos aludidos preceitos legais, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso e as decisões dos tribunais são fundamentadas.
22. Assim, deverá o presente recurso ser admitido, com subida imediata e nos próprios autos e efeito suspensivo.
Nestes termos requer a V.ª Ex.ª se digne admitir o presente recurso e feito o mesmo subir imediatamente nos próprios autos com o fim próprio, que é o suspensivo (artº 78º, n.º 4 da Lei do Tribunal Constitucional), seguindo-se os demais termos até final.”
Por despacho de 28 de Junho de 2010, o Desembargador Relator do Tribunal da Relação do Porto decidiu não receber este recurso, nos seguintes termos:
“O arguido A. vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, por via do requerimento de fls. 14.511 a 14.515 de harmonia com o disposto no art. 70º, nº 1, al. b), da Lei do Tribunal Constitucional (Lei nº 28/82, de 15/11, alterada pelas Leis nº 143/85, de 26/11, nº 85/89, de 7/09, nº 88/95, de 1/09 e 13-A/98, de 26/02).
Pretende o arguido que se julgue inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em conjugação com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
Cumpre decidir:
Na DECISÃO SUMÁRIA N.º 257/2010, de 9 de Junho de 2010 (www.dgsi.pt) foi decidido:
(...)
Não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400.º, nº 1, alínea f) do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em conjugação com o disposto no artigo 5.º, nº 1, e n.º 2, alínea a), do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da Lei n.º 48/2007, não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, proferida após a entrada em vigor da referida lei, e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
(...)
Como bem consta de tal decisão sumária, (...)... “Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, entende-se proferir decisão sumária por a questão a decidir ser simples, por a mesma já ter sido objecto de decisão deste Tribunal nos seus Acórdãos n.ºs 263/2009, 551/2009, 645/2009, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, que não julgaram a norma inconstitucional e cuja fundamentação se acompanha e se dá por integralmente reproduzida.
(...)
Nos Acórdãos que antecederam tal decisão sumária foi decidido sempre no mesmo sentido pelo não juízo de inconstitucionalidade e nas vertentes normativas invocadas pelo arguido.
Assim e porque entendo que o recurso é manifestamente infundado, tendo em conta o disposto no art. 76º ns. 1 e 2, da LTC decido não receber o mesmo.”
O arguido reclamou deste despacho para o Tribunal Constitucional com os seguintes fundamentos:
“A., Recorrente nos autos à margem identificados, tendo sido notificado do douto despacho de não admissão do recurso interposto para esse Tribunal Constitucional vem, de harmonia com o disposto no nº 4 do artigo 76º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro (na redacção da Lei nº 13-A/98, de 26/02), apresentar a presente RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA,
Porquanto:
1. Por douto despacho proferido em 28 de Junho do ano corrente, foi decidida a não admissão do recurso interposto pelo Recorrente, ora Reclamante, para esse Venerando Tribunal Constitucional,
2. por ter entendido o Digníssimo Conselheiro – Relator, que o recurso é manifestamente infundado, tendo em conta o disposto no artº. 76º, nºs 1 e 2 da LTC.
3. Tal decisão é apenas fundamentada no facto de, alegadamente, “Nos Acórdãos que antecederam tal decisão sumária foi decidido sempre no mesmo sentido pelo não juízo de inconstitucionalidade e nas vertentes normativas invocadas pelo arguido”.
4. Ora, com todo o respeito e a mais subida vénia, parece ao Recorrente, que no caso concreto em análise, o recurso apresentado para esse douto Tribunal é admissível e fundado.
Senão vejamos:
5. Mesmo o Colendo Supremo Tribunal de Justiça entendeu já, nos termos do estipulado no Acórdão nº 4/2009, de 19/03/2009, publicado in Diário da República nº 55, para uniformização de jurisprudência, “Nos termos dos artigos 432º, nº 1, alínea b) e 400º, nº. 1, alínea f), na redacção anterior à entrada em vigor da Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, é recorrível o acórdão condenatório proferido, em recurso, pela relação, após a entrada em vigor da referida lei, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão superior a 8 anos, que confirme decisão de 1ª Instância anterior àquela data”.
6. Ora, é precisamente o que ocorre no caso vertente: o douto Acórdão de que se pretende recorrer e foi proferido em recurso, pelo Venerando Tribunal da Relação, confirma o douto Acórdão da primeira instância, em processo por crime a que é aplicável pena de prisão superior a 8 anos e pela prática de factos ocorridos antes da entrada cm vigor da nova lei.
7. Daí a manifesta admissibilidade e recorribilidade do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto.
8. Por entender de outra forma, está o Venerando Tribunal da Relação do Porto, salvo o devido respeito por melhor opinião, a coarctar manifestamente os direitos do Recorrente, designadamente os constitucionalmente consagrados,
9. na medida em que diminui as garantias de defesa do Recorrente, e limitando o seu direito de recurso, violando o disposto nos art.ºs 27º, 28º e 32º n.º 1 da Constituição da República.
10. Ademais, nesta matéria, esse douto Tribunal Constitucional dispõe mesmo de jurisprudência firme que reconhece que, por força dos art.ºs 27º, 28º, e 32º, n.º 1 da CRP, está constitucionalmente assegurado o duplo grau de jurisdição quanto às decisões condenatória e às decisões respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição de liberdade ou a qualquer outro direito fundamental.
11. É que, in casu urge reter que, tendo em conta a sucessão de leis no tempo existente, os factos pelos quais o Recorrente foi condenado, ocorreram ao abrigo da lei anterior à Lei 48/2007, de 29/08.
12. E, para além dos direitos que possuem eficácia ao longo de todo o processo, nos termos do disposto no art.º 61º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal, os direitos de defesa do arguido estão assegurados, de harmonia com o estatuído no art.º 5º, n.º 2, alínea a) do mesmo diploma legal, independentemente da fase processual em causa no momento em que ocorre a alteração da lei.
13. Pois se os factos pelos quais o Recorrente foi condenado, assim como a sua detenção e demais actos processuais, tiveram lugar na vigência de uma lei que lhe permitia o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, razão pela qual tal grau de recurso sempre esteve nas suas firmes e legítimas expectativas, não pode ele ser prejudicado pela supressão de tal grau de recurso, que representa um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma manifesta restrição ao seu direito de defesa.
14. É assim, manifesta a violação do disposto nos art.ºs 27º, 28º e 32º, n.º 1 da Constituição da República, pelo que é legitima e fundada a pretensão do Recorrente em ver apreciada a inconstitucionalidade dos art.º 5º, n.º 2, al. a) e 400º, n.º 1, al. f), ambos do Código de Processo Penal, na interpretação atribuída ao mesmo por aquele douto Tribunal.
15. Tanto mais que, tal questão foi já suscitada pelo Recorrente no processo, nomeadamente, na interposição do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que a questão de admissibilidade do recurso apenas foi suscitada em questão prévia pelo Recorrente, tendo sido alegada, na eventualidade de não recebimento ou rejeição de recurso (como veio a suceder), a violação do disposto ns art.ºs 27º, 28º e 32º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa da interpretação dada aos aludidos preceitos legais, segundo o qual o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso e as decisões dos tribunais são fundamentadas.
Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso em toda a sua extensão.”
No Tribunal Constitucional, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser indeferida a reclamação.
Fundamentação
O reclamante, no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, suscitou a questão da inconstitucionalidade da norma contida no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, em conjugação com o disposto no artigo 5.º, n.º 1, e n.º 2, alínea a), do mesmo Código, interpretada no sentido de que, em processos iniciados anteriormente à vigência da referida Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância proferida após a entrada em vigor da referida lei e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
O despacho reclamado não admitiu o recurso por o considerar manifestamente infundado, uma vez que o Tribunal Constitucional, na Decisão Sumária n.º 257/2010, de 9 de Junho de 2010, e nos Acórdãos n.ºs 263/09, 551/09, e 645/09, que antecederam tal decisão sumária, decidiu sempre no mesmo sentido pelo não juízo de inconstitucionalidade e nas vertentes normativas invocadas pelo Recorrente.
O n.º 2 do artigo 76.º da LTC prevê os casos em que o tribunal a quo pode indeferir o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional.
Uma dessas situações prende-se com os casos em que, nos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a questão de constitucionalidade suscitada seja “manifestamente infundada”, visando-se, desde modo, facultar ao tribunal a quo a possibilidade da formulação de um juízo sobre a viabilidade ou razoabilidade da pretensão do recorrente, por forma a obviar à subida ao Tribunal Constitucional de recursos interpostos com fins manifestamente dilatórios, cuja inatendibilidade é liminarmente evidente ou ostensiva.
Tem sido entendimento do Tribunal Constitucional que o referido juízo liminar não pode fundar-se numa averiguação tendente a apurar da procedência do recurso ou mesmo do grau de probabilidade dessa procedência, mas apenas na verificação sobre se os fundamentos do recurso são – de um ponto de vista jurídico-constitucional – manifesta e notoriamente inatendíveis.
A respeito deste fundamento de não admissibilidade do recurso escreveu-se no Acórdão n.º 501/94 (acessível na Internet em www.tribunalconstitucional.pt):
“[…]
9. Neste domínio, é fundamental concretizar critérios de aferição do que seja um 'recurso manifestamente infundado' para delimitar tal conceito.
É desde logo evidente que não se pode, em sede de reclamação, antecipar a apreciação do mérito do recurso, procedendo a uma análise circunstanciada dos seus fundamentos. Não constitui objecto da reclamação avaliar a atendibilidade dos fundamentos do recurso, mas apenas apreciar a verificação das condições de admissibilidade do recurso. Em regra, tais condições possuem natureza formal, embora uma delas, concretamente a que ora nos interessa - ou seja, a de o recurso não ser 'manifestamente infundado' -, tenha uma irrecusável componente substantiva, na medida em que impõe uma certa avaliação dos fundamentos do recurso.
Porém, esta avaliação não pode ser idêntica à que teria lugar no julgamento do próprio recurso. Não é por entender que os fundamentos do recurso improcedem que o julgador pode, logo na apreciação da reclamação, considerar o recurso 'manifestamente infundado': por isso, a lei não se basta com que o recurso seja 'infundado', para determinar a não admissão do recurso e o subsequente indeferimento da reclamação, mas exige que o recurso seja 'manifestamente infundado'. Isto significa que o recurso só pode ser indeferido e a reclamação desatendida se uma avaliação sumária dos seus fundamentos permitir concluir, inequivocamente, pela sua inatendibilidade.
Se o julgador, no âmbito da reclamação, tiver de desenvolver uma actividade cognitiva e argumentativa semelhante à que utilizaria em sede de recurso para poder concluir pela inatendibilidade dos respectivos fundamentos, tal indiciará que não estamos perante um 'recurso manifestamente infundado' - e, por conseguinte, será de deferir a reclamação e determinar a subida do recurso, ainda que, a final, venha a ser-lhe negado provimento.
10. No Acórdão nº 269/94, publicado no Diário da República, 2ª Série, de 18/6/94, o Tribunal Constitucional abordou o conceito de ‘recurso manifestamente infundado’ e concluiu que ele visa impedir que o recurso de constitucionalidade sirva fins dilatórios: a questão de inconstitucionalidade só deve subir ao Tribunal Constitucional quando apareça, prima facie, dotada de uma certa atendibilidade.
A finalidade deste pressuposto de admissibilidade do recurso é, sem dúvida, evitar recursos inúteis, com efeitos meramente dilatórios. Porém, tendo em atenção as considerações anteriormente expendidas, ele não pode ser utilizado para obstar à subida de recursos cuja atendibilidade seja duvidosa, sob pena de subversão das finalidades e características do meio processual 'reclamação', que não pode substituir o meio processual 'recurso' (com diferentes prazos e garantias para as partes). Com efeito, é este último o meio próprio para a avaliação ponderada da atendibilidade dos fundamentos do recurso.
Resulta do exposto que o conceito de 'recurso manifestamente infundado' deve ser delimitado negativamente, como, aliás, decorre da própria formulação legal do conceito.
Assim, é 'manifestamente infundado' o recurso cuja inatendibilidade seja liminarmente evidente ou ostensiva.
Isto significa que não há que averiguar se o recurso procede, nem se exige um determinado grau de probabilidade dessa procedência - caso em que se estaria a entrar, profundamente, na apreciação do respectivo mérito. O que o legislador exige é que se verifique, tão-só, se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis.
Daqui decorre que o recurso será, por exemplo, 'manifestamente infundado' quando nele falte qualquer fundamentação (ou seja, não se apresente - nem se vislumbre - argumentação no sentido da alegada inconstitucionalidade) ou quando a fundamentação revele contradições insanáveis de ordem lógica ou valorativa. Nestes casos, uma simples análise sumária ou liminar do requerimento de recurso basta para concluir pelo carácter 'manifestamente infundado' do recurso, sem necessidade de uma apreciação circunstanciada dos fundamentos, ou seja, sem entrar na apreciação do fundo do recurso que é reservada para um momento processual ulterior.
[…]”
Tendo em atenção a delimitação do conceito de “manifestamente infundado” expresso na citação que antecede, torna-se claro que o recurso interposto pelo ora reclamante não pode ser considerado, ostensiva ou evidentemente, inatendível.
Com efeito, conforme se constata da leitura do despacho reclamado, este não se limita apenas a apreciar se os fundamentos do recurso são notoriamente inatendíveis, fazendo já um juízo sobre a probabilidade de procedência do recurso, face à jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a questão suscitada. Ou seja, entra na apreciação do mérito do recurso para, em face da aludida jurisprudência, concluir que este é «manifestamente infundado».
A anterior jurisprudência do Tribunal Constitucional possibilita a prolação de decisão de mérito sumária do recurso pelo próprio Tribunal Constitucional, mas não permite que o tribunal recorrido rejeite o recurso, com o argumento de que este é “manifestamente infundado”.
Assim, não sendo de reputar como manifestamente infundada, para os efeitos do disposto no artigo 76.º, n.º 2, da LTC, a questão de constitucionalidade suscitada e não se verificando a ausência de qualquer requisito essencial ao conhecimento do mérito do recurso interposto, o tribunal recorrido não o podia ter rejeitado, pelo que deve ser deferida a reclamação apresentada.
Decisão
Pelos fundamentos expostos, defere-se a reclamação apresentada por A., admitindo-se o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Outubro de 2010.- João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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