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Processo n.º 469/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida a A., S.A., o relator proferiu decisão sumária, julgando «não organicamente inconstitucionais as normas dos artigos 19.º do “Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e Outras Receitas Municipais da Câmara Municipal do Porto” (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 1999) e 41.º da Tabela de Taxas respectiva, na medida em que prevêem a cobrança das taxas aí referidas pela afixação de painéis publicitários em prédio pertencente a particular»; e consequentemente, concedendo provimento ao recurso e ordenando a reformulação da sentença recorrida em conformidade com esse juízo de não inconstitucionalidade.
A decisão sumária, proferida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, fundamentou-se, por remissão, no recente Acórdão n.º 177/10, tirado em Plenário e relatado pelo ora relator, onde se decidiu, por unanimidade, «não julgar organicamente inconstitucionais as normas do artigo 2.º, n.º 1, do Regulamento de Taxas e Licenças (aprovado por deliberação da Câmara Municipal de Guimarães, de 9.11.2006 e sancionado pela Assembleia Municipal, em sessão de 24.11.2006) e do artigo 31.º da Tabela de Taxas àquele anexa, na medida em que prevêem a cobrança da taxa aí referida pela afixação de painéis publicitários em prédio pertencente a particular».
2. Notificada da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, concluindo o seguinte:
«1ª) A decisão sumária proferida contraria jurisprudência, reiteradamente, proferida por este Tribunal Constitucional a propósito de outras liquidações da Câmara Municipal do Porto relativas aos mesmíssimos anúncios a que se reportam os autos
2ª) Os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.°s 436/03 e 988/04, apreciando liquidações que a Câmara Municipal do Porto emitiu relativamente aos mesmíssimos anúncios a que se reportam os autos, julgaram organicamente inconstitucionais os artigos 41.° e 56.° da Tabela de Taxas e Outras Receitas Municipais do Porto;
3ª) Existindo, assim, contradição entre as duas decisões anteriormente tiradas pelo Tribunal Constitucional, e a decisão singular agora reclamada, importa dirimir o dissídio respectivo.
4ª) Por outro lado, as situações normativas analisadas no Ac. 177/10 e na decisão singular reclamada, não são idênticas - naquela “a fixação do âmbito de incidência da taxa em questão leva em conta (que) só são taxados “os anúncios que se divisem da via pública” (observação 1,) aplicável às normas do Capítulo IV, em que se integra a do art. 31.°, da Tabela de taxas anexa ao Regulamento em causa”, e nesta (os art.°s 19.º e 41.º do Regulamento e Tabela de Taxas da Câmara Municipal do Porto) não se prevê a tributação de anúncios que se divisem da via pública, mas sim, a n era e simples taxação de anúncios;
5ª) Importa, assim, “data venia”, proceder à análise e decisão do caso concreto sujeito a recurso de constitucionalidade, não o limitando, como foi feito pela decisão reclamada, à mera remissão para um Aresto que não cura de situação exactamente igual.
6ª) Por outro lado ainda, os anúncios a que se reportam os autos mantinham-se em 2002 no local e nas mesmíssimas condições em que foram licenciados 14 anos antes;
7ª) Ora, dos autos nada resulta, nada permite concluir (como vem suposto à subsunção do Ac. 17/10 aos presentes autos), que depois do licenciamento dos anúncios em 1988 (cfr. al f) dos factos provados), o Município do Porto tenha efectuado qualquer diligência, qualquer reavaliação dos anúncios instalados no edifício da propriedade da reclamante (sequer a Câmara impugnada fundamenta a liquidação neste alegado facto, ou o sustentou nos autos).
8ª) Pelo contrário: efectuada a instrução e julgamento da causa, consignou a Mm.ª Juíza de 1.ª Instância na sentença que: “...os anúncios estão na cobertura terraço do prédio propriedade da impugnante… a CMP nada fez desde que licenciou os ditos anúncios...” e que “nem foi prestada qualquer contrapartida por parte da Câmara Municipal do Porto” (cfr. sentença de fls..., os sublinhados e realçados são nossos);
9ª) Não diga ainda que, por incumbir aos municípios, nos termos da Lei 97/88 de 17 de Agosto, tutelar “o equilíbrio urbano e ambiental”, que essa tutela se estenderia por todo o período “enquanto a situação persistir”, pois que, isso mesmo não decorre da Lei;
10ª) O que resulta do art. 1.º, n.°s 1 e 2 do mencionado Corpo de Leis é que a tutela da “salvaguarda do equilíbrio urbano e ambiental” é efectuada no âmbito do licenciamento, licenciamento esse que é prévio à afixação de mensagens publicitárias;
11ª) Ou seja: a tutela “do equilíbrio urbano e ambiental” esgota-se e circunscreve-se ao momento inicial do licenciamento dos factos, inexistindo, assim, fundamento legal para se estender esse controlo a momento posterior ao licenciamento inicial;
12ª) De resto, se no momento do licenciamento os anúncios não comprometem o “equilíbrio urbano e ambiental” (e, por isso, são licenciados), fatalmente continuará a sê-lo nos anos subsequentes ao licenciamento, pelo que, também por aqui inexiste fundamento fáctico ou legal para se entender que exista, anualmente, uma “reavaliação da situação”.
13ª O tributo liquidado à reclamante não constitui, sequer, o “preço” do acto burocrático de “reavaliação da situação”, pois que, se se atentar no disposto no art.º 41.° da Tabela de Taxas constata-se que prevê e fixa o custo em função do metro quadrado, não existindo qualquer correspondência entre o custo administrativo-burocrático da alegada “renovação” da licença e a área ou superfície dos anúncios afixados pelo particular;
l4ª) Em síntese, não correspondendo a liquidação impugnada a um licenciamento inicial (que postulasse que a Câmara fosse “chamada” a acautelar o “bem colectivo «ambiente”) mas, antes, à sua suposta “renovação anual”, altura em que não existe da parte do município qualquer remoção de obstáculo à actividade dos particulares, qualquer ponderação “do equilíbrio urbano e ambiental”, é manifesto que, a liquidação que, anualmente, é efectuada quanto aos mesmos, não apresenta qualquer contraprestação que fundamente o pagamento de uma taxa;
15ª) Por último, e como se alcança dos anúncios (cfr. fls. 34 e 35, acolhidos na al. d)dos factos provados) reportam-se à designação social da impugnante e, nessa medida, não constituem publicidade ou qualquer actividade publicitária como se escreve na decisão reclamada, constituem, sim, um mero identificador da empresa por referência ao imóvel da sua sede, como ocorre, com hotéis, aeroportos, edifícios públicos...;
16ª) Não tendo o tributo liquidado à impugnante correspectivo de qualquer contraprestação por parte da administração, essa liquidação, que teve por base os art.°s 19.º do (RLCTORM) e art.°s 41.° da Tabela de Taxas respectiva, constitui a liquidação de um imposto, sendo, consequentemente, organicamente inconstitucionais, o que, na procedência da presente reclamação, deverá, “data venia”, decidir-se.
17ª) Foi violado o disposto nos 103.°, n.°s 2 e 3 e 165.º, n.° 1, alínea i) da C.R.P..
TERMOS EM QUE, no provimento da reclamação deverá ser proferida decisão que julgue pela inconstitucionalidade orgânica do art. 19.° do RLCTORM da Câmara Municipal do Porto e art. 41.° da Tabela de Taxas respectiva, tudo com as legais consequências.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou resposta nos termos seguintes:
«[…]1º
Pela Decisão Sumária n.º 323/2010 não se julgaram organicamente inconstitucionais as normas dos artigos 19.º do “Regulamento de Liquidação e Cobrança de Taxas e Outras Receitas Municipais da Câmara Municipal do Porto” (publicado no Diário da República, II Série, de 11 de Outubro de 1999) e 41.º da Tabela de Taxas respectiva, na medida em que previam a cobrança das taxas aí referidas, pela afixação de painéis publicitários em prédio pertencente a particular e, consequentemente, concedeu-se provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
2º
Para assim se decidir invocou-se, na Decisão Sumária, o Acórdão n.º 177/2010 do Tribunal Constitucional.
3.º
Nesse Acórdão faz-se referência à jurisprudência anterior do Tribunal sobre tal matéria e assume-se expressamente que com ele se está perante uma alteração, ou melhor, uma inversão do sentido dessa jurisprudência.
4.º
Tendo tal aresto sido proferido pelo Plenário, em sede de fiscalização concreta, mas ao abrigo do artigo 79.º-A, n.º 1 da LTC, é lógico que não poderá falar-se em jurisprudência contraditória que justificasse a interposição de recurso precisamente para o Plenário (artigo 79.º-D, n.º 1, da LTC).
5º
Portanto, o reclamante tem razão quanto ao que diz sobre a jurisprudência anterior porque, na verdade, a alteração teve lugar não a nível dos factos ou da sua qualificação mas, exclusivamente, quanto ao sentido da jurisprudência.
6.º
As supostas especificidades das circunstâncias do caso concreto - que, segundo o reclamante, afastariam a aplicação daquele Acórdão -, não o são, designadamente o que ele afirma quanto à diferença de tratamento que deveria existir entre a concessão inicial da licença e as posteriores renovações.
7.º
O Acórdão tratou todas essas questões, como se pode ver, desde logo, pelo Sumário que vem transcrito na Decisão Sumária, maxime Pontos VII e VIII.
8.º
Quanto aos painéis em causa constituírem ou não publicidade, em sentido estrito, tal qualificação é indiferente à questão da constitucionalidade, sendo certo que ao longo do processo sempre foram tratados como tal para efeitos de tributação.
9.º
O próprio reclamante, logo quando impugnou a liquidação, refere-se à “taxa de publicidade” (fls. 2).
10.º
Não vindo, pois, aduzidos novos fundamentos que possam levar a qualquer alteração da jurisprudência, ou justifiquem, sequer, um tratamento autónomo, deverá indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A extensa reclamação sub judicio assenta, essencialmente, em dois fundamentos: por um lado, sustenta-se que a decisão sumária reclamada contraria decisões anteriores do Tribunal Constitucional, proferidas sobre os mesmos “anúncios” (painéis publicitários) a que se reportam os presentes autos; por outro lado, invoca-se a falta de identidade entre as situações normativas analisadas no Acórdão n.º 177/2010 e as que foram objecto da decisão sumária reclamada, concluindo-se que a decisão não poderia ter-se apoiado apenas na fundamentação daquele acórdão.
Nenhum dos fundamentos da reclamação merece acolhimento.
Há que dizer, em primeiro lugar, que não se verifica qualquer “contradição” na jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre esta matéria. Se é certo que a decisão constante do Acórdão n.º 177/2010 representa uma inflexão da posição que o Tribunal havia tomado anteriormente em casos idênticos, não menos certo é que o Tribunal não está vinculado ao sentido das suas decisões, tomadas no âmbito de outros processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, podendo – e devendo, quando para tal haja motivo – reequacionar questões já decididas. Cumpre a este respeito relembrar que a decisão do recurso apenas faz caso julgado no próprio processo quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada (cfr. artigo 80.º da LTC).
Além disso, não se verifica aqui uma situação de “jurisprudência contraditória” que, nos termos do artigo 79.º-D da LTC, pudesse fundamentar um recurso para o Plenário do Tribunal Constitucional, destinado a uniformizar jurisprudência (recurso esse que a reclamante nem invoca).
O Acórdão n.º 177/2010 emerge de um recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade que, à partida, seria decidido em Secção, mas no decurso do mesmo foi determinado que o julgamento se fizesse, precisamente, com intervenção do Plenário, nos termos e para os efeitos do artigo 79.º-A da LTC, por decisão do Presidente do Tribunal Constitucional, tomada com a prévia concordância do Tribunal (como expressamente se refere no texto do Acórdão). Na sequência, o Plenário do Tribunal votou por unanimidade o Acórdão n.º 177/2010, que assim representa a mais recente (e unânime) posição do Tribunal sobre a questão aí tratada.
E a decisão sumária reclamada está em perfeita sintonia com esta posição, para a qual remete.
A reclamante alega também a falta de identidade entre as situações normativas analisadas no Acórdão n.º 177/2010 e as que foram objecto da decisão sumária reclamada. Sustenta-se, a este respeito, que aquele Acórdão “coloca a tónica na visibilidade dos anúncios da via pública”, porque no caso aí decidido a norma regulamentar em causa determinava que apenas fossem taxados “os anúncios que se divisem da via pública”. Já no caso dos presentes autos, segundo a reclamante, as normas do regulamento da Câmara Municipal do Porto não estabelecem semelhante restrição, mas limitam-se a determinar a “taxação de anúncios”. E alega-se, ainda, que os presentes autos se reportam a uma “renovação anual da licença” enquanto que no Acórdão n.º 177/2010 se sustentou que a contrapartida específica prestada pelos municípios que daria causa ao pagamento da taxa (nos anos subsequentes ao licenciamento inicial) consistiria na obrigação de “reavaliação da situação, do ponto de vista da permanência das condições legais de licenciamento”.
É desde logo notório que, tanto no Acórdão n.º 177/2010 como na decisão sumária reclamada, a “norma” que foi objecto de apreciação pelo Tribunal é a mesma, ou seja, normas que, embora constando de diferentes regulamentos camarários, contêm previsão idêntica no sentido de determinarem a “cobrança das taxas aí referidas pela afixação de painéis publicitários em prédio pertencente a particular”. Foi esta dimensão normativa que, num caso e noutro, foi julgada não organicamente inconstitucional.
A questão da “renovação anual da licença” foi expressamente contemplada no Acórdão n.º 177/2010, mas não no sentido que lhe atribui a reclamante, antes em oposição à tese da distinção, para efeitos de qualificação, da emissão da licença e da sua renovação. Tal resulta claro da leitura do ponto 12. do citado acórdão, nomeadamente, da parte que agora se transcreve:
«Afigura-se-nos que esta orientação, para além de se apoiar numa compreensão restritiva do conceito de taxa, denegatória da autonomia da modalidade consistente na remoção de um obstáculo jurídico, é excessivamente redutora do conteúdo da relação estabelecida entre o anunciante e a administração local. Não está em causa apenas o interesse de integridade dos valores, ambientais, urbanísticos e outros, que poderiam ser afectados por causa da actividade publicitária, interesse esse acautelado através da intervenção administrativa de fiscalização do cumprimento dos deveres específicos de omissão enumerados no artigo 4.º da Lei n.º 97/88. A emissão da licença, o mesmo é dizer, o levantamento do obstáculo jurídico (que já vimos não ser arbitrário) dá origem a uma relação com o obrigado tributário distinta da que intercede com a generalidade dos administrados, no quadro da qual a entidade emitente assume uma particular obrigação – a duradoura obrigação de suportar (pati) uma actividade que, embora respeitando aqueles deveres, interfere permanentemente com a conformação de um bem público. Com o licenciamento, alteram-se as posições jurídicas recíprocas de administração e administrado, ficando aquela onerada, enquanto a situação persistir, com uma obrigação até aí inexistente. Inversamente, o anunciante ganha título para uma activa e particular fruição, em termos comunicacionais, do espaço ambiental, necessária à realização da utilidade individual procurada, a qual não se confunde com o gozo passivo desse espaço, ao alcance da generalidade dos cidadãos (cfr., todavia, o Acórdão n.º 437/2003). Em exclusivo proveito próprio, um sujeito privado – o anunciante – introduz, através da actividade publicitária, mudanças qualitativas na percepção e no gozo do espaço público por parte de todos os que nele se movem, “moldando-o”, em função do seu interesse. A constituição da obrigação passiva de se conformar com essa influência modeladora é justamente a contrapartida específica que dá causa ao pagamento da taxa, estruturando, em termos bilaterais, a relação estabelecida com o obrigado tributário.»
Além disso, não pode deixar de se estranhar que a reclamante venha invocar uma alegada diferença de situações entre o caso decidido no Acórdão n.º 177/2010 e o caso vertente, supostamente por aquele se ter debruçado sobre uma norma que taxava apenas “os anúncios que se divisem da via pública”. Pois, como resulta claro da própria impugnação judicial da ora reclamante, que deu origem aos presentes autos, estão aqui em causa três anúncios com a designação social da reclamante, colocados na respectiva sede, os quais, por natureza, serão “anúncios que se divisam da via pública”.
Por último, a reclamante vem dizer que os anúncios aqui em causa não constituem “publicidade”, uma vez que se reportam à sua designação social. Simplesmente, essa é uma questão de direito infraconstitucional sobre a qual o Tribunal Constitucional não pode pronunciar-se, sendo essa qualificação, efectuada pela decisão recorrida, um “dado adquirido” que não lhe cabe alterar.
Em suma, não se verifica qualquer razão impeditiva da aplicação ao caso vertente da jurisprudência fixada, por unanimidade, pelo Plenário do Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 177/2010.
Pelo que a decisão sumária reclamada deve ser mantida.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de Outubro de 2010.- Joaquim de Sousa Ribeiro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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