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Processo n.º 580/10
3.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, A. reclama (fls. 2 a 4), para a conferência prevista no n.º 3 do artigo 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 22 de Junho de 2010 (fls. 38 a 40), nos termos do qual foi decidida a não admissão de recurso de constitucionalidade, para efeitos de apreciação de interpretação normativa extraída dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal (CPP), “na interpretação dada pela decisão do sr. Presidente do STJ, de 08/03/2010, porque, na limitação limitativa que ali foi dada, foi infringido o disposto nos artºs 16, nº. 2, 20 nº. 4 e 32/1, todos da CRP”.
No tribunal recorrido, foi proferido convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de recurso (fls. 33 e 34), tendo o recorrente esclarecido que suscitou a questão de inconstitucionalidade “com o pedido de revogação do despacho de 08/03/2010 que deu entrada nesse Tribunal em 22/03/2010” (fls. 36).
Na sequência deste aperfeiçoamento, o despacho reclamado recusou a admissão do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, com fundamento na falta de suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade, em virtude de aquela suscitação ter ocorrido em sede de requerimento de reforma do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação de despacho do Juiz-Relator junto do Tribunal da Relação de Lisboa que não admitiu a subida de recurso ordinário.
2. O recorrente apresentou a seguinte reclamação:
“A., arguido, notificado do despacho do Excelentíssimo Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça datado de 22/06/2010, que não admitiu recurso interposto para o Tribunal Constitucional, vem reclamar do mesmo para o Tribunal Constitucional, nos termos do disposto nos art°s. 76/4 e 77 da Lei do Tribunal Constitucional, reclamação que é apresentada nos termos e com os seguintes fundamentos:
1 — O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, pedindo a conferência normativa do entendimento que as instâncias deram aos art°s. 400/1-f) e 432/1- b), ambos do CPP, com o princípio do “due process of law” insito nos art°s. 16/2, 20/4, 32/1 da CRP.
2 — Fizeram-no no pedido de reforma do despacho do Excelentíssimo Presidente do STJ que manteve o não recebimento do recurso interposto da Relação para o STJ, inconformado o recorrente com a condenação à pena de 3 anos e meio de cadeia, que lhe foi aplicada na 2ª instância.
3 — Trata-se de saber se, neste caso, é aplicável a lei antiga que permitia o recurso, em face da moldura penal abstracta da pena aplicável à infracção tipológica ou se se aplica a lei nova que expressamente prescreve não haver recurso se a pena em concreto não exceder os fetichistas 8 anos de cadeia, das penas maiores incaucionáveis do código do século XIX.
4 — Por ter sido entendido que, ao recorrente não devia ser concedido o recurso para o STJ do acórdão da Relação, não obstante, no momento da prática dos factos e da instauração do processo, valer a lei antiga, é claro que o recorrente argumentou deslealdade processual, porque gisou de imediato a sua defesa, prevenido no cenário de recorribilidade até à instância de Revista.
5 — É esta a problemática que o não recebimento do recurso para o Tribunal Constitucional anestesia e elide.
6 — Mas contra a Constituição e o programa do recurso normativo de constitucionalidade que a lei fundamental atribui como papel do Tribunal do Palácio Ratton.
7 — Com efeito, aparentemente, a decisão de que o recorrente reclama agora para o Tribunal Constitucional, não foi arguida porventura no tempo próprio, na perspectiva curta do que apenas é mais conveniente para a burocracia judiciária.
8 — Diz, neste sentido, o despacho de recusa do recurso, que o recorrente deveria ter alegado a desconformidade normativo-constitucional da interpretação dada à lei processual penal pelas instâncias em torno da regra-travão dos art°s. 400/1-f) e 432/1-b) CPP, logo na reclamação para o Presidente do STJ, não o tendo feito senão no pedido de reforma “in-extremis” permitida pelo art°. 669 CPC, aplicável ao processo penal “ex-vi” art°. 4°. CPP.
9 — No entanto, é certo que esta última disposição legal permite, no âmbito do poder jurisdicional, que o Juiz altere até ao limite do sentido contrário, a decisão tomada e publicada.
10 — Por conseguinte, nesta hipótese, não está presente a argumentação clássica em contrário do recebimento do recurso para o Tribunal Constitucional, por motivo de a inconstitucionalidade não ter sido alegada de modo adequado.
11 — É que este tópico da “alegação por modo adequado” da inconstitucionalidade, está recortado e é indissociável da proibição da inovação judicial depois do encerramento do caso, por força da preclusão dos poderes de julgamento.
12 — Aqui, quando o recorrente solicitou a reforma do despacho de Sua Excelência o Presidente do STJ, este, muito embora autor da decisão, podia muito bem ter acedido, deferindo a pretensão e aceitando o recurso da Relação para o Supremo.
13 — Não era, pois, estritamente necessário que o recorrente alegasse a inconstitucionalidade perante a entidade judicial primeira, porque ainda o problema da inconstitucionalidade poderia vir a ser considerado no curso normal da lide, em acto posterior.
14 — Por conseguinte, a inconstitucionalidade foi alegada aqui, de modo a poder ser considerada e tomada como motivo de decisão nas instâncias comuns.
15 — Nestas circunstâncias, o recurso é admissível, porque cumpre todas as especificações da lei do Tribunal Constitucional para ser recebido.
Com douto suprimento, V. Exas. darão razão ao recorrente, mandando admitir o recurso de constitucionalidade intentado pelo recorrente.”
3. Em sede de vista, o Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação ora em apreço, nos seguintes termos:
“1. A. reclamou para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho que não lhe admitiu o recurso interposto para aquele Tribunal, do acórdão da Relação de Lisboa que, confirmando a decisão da 1ª instância, o condenara na pena de 3 anos e 6 meses de prisão.
2. A reclamação foi indeferida por se ter entendido que, nos termos do artigo 400º, nº 1, alínea f), do CPP, na nova redacção após a lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, o acórdão da Relação era insusceptível de recurso.
3. O arguido veio pedir a reforma daquela decisão “aproveitando” para suscitar a questão de inconstitucionalidade “dos artigos 400º, nº 1 alínea f) e 432, nº 1, alínea b), ambos do CPP, na interpretação dada pela decisão”.
4. O Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça julgou improcedente o pedido de reforma e quanto a questão de inconstitucionalidade não tomou dela conhecimento, por ser intempestiva a sua invocação.
5. Um dos requisitos da admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, consiste em a questão de constitucionalidade ser suscitada durante o processo.
6. No caso dos autos, o momento processual próprio era a reclamação para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.
7. Nessa peça processual o arguido sustenta que as alterações operadas pela Lei nº 48/2007 ao regime dos recursos, não devem ser aplicadas, embora elas já estivessem em vigor quando fora proferido o acórdão em 1ª instância.
8. Ali, no entanto, não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa relacionada com a problemática de saber qual o regime aplicável.
9. Ora, uma vez que a interpretação acolhida na decisão recorrida foi precisamente aquela que o recorrente sustentou que não devia ser seguida (nº 7), não estava ele dispensado do ónus de suscitação prévia.
10. Decorre de que se disse anteriormente que o incidente pós-decisório (pedido de reforma) utilizado pelo reclamante, já não era o meio processual adequado e idóneo para suscitar a questão de inconstitucionalidade (v.g. Acórdão nº 646/2009).
11. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.” (fls. 48 e 49)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Com efeito, a decisão reclamada não apresenta qualquer juízo interpretativo passível de censura por parte do Tribunal Constitucional, antes segue a orientação jurisprudencial deste Tribunal, relativamente à suscitação adequada de questões de inconstitucionalidade normativa em sede de requerimentos de reforma de decisões dos tribunais comuns.
Conforme já se disse em aresto proferido por esta mesma 3ª Secção (cfr. Acórdão n.º 646/2009, disponível in www.tribunalconstitucional.pt):
“A reclamante afirma que o Tribunal Constitucional tem entendido que a suscitação da questão de constitucionalidade no pedido de aclaração é suficiente para poder conhecer do recurso de constitucionalidade.
Não tem razão a reclamante.
Conforme se afirma na decisão sumária reclamada, “[t]em sido entendimento deste Tribunal que o pedido de aclaração de uma decisão judicial ou a arguição da sua nulidade não são já meios idóneos e atempados para suscitar – em vista de ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – a questão de inconstitucionalidade relativa a matéria sobre a qual o poder jurisdicional do juiz a quo se esgotou com a decisão e num momento em que já não lhe é possível tomar posição sobre a mesma, apenas se dispensando o recorrente do ónus de invocar a inconstitucionalidade “durante o processo” nos casos excepcionais e anómalos em que este não tenha disposto processualmente dessa possibilidade, sendo então admissível a arguição em momento subsequente (v. Ac. n.º 366/96, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), o que manifestamente não se verifica no caso dos autos”.
A reclamante não oferece qualquer argumento adicional demonstrando por que razão entende que o caso dos autos configuraria um caso anómalo ou excepcional de modo a que o Tribunal Constitucional pudesse considerar que a questão de constitucionalidade foi ainda suscitada durante o processo, sendo que, ainda que agora, em sede de reclamação para a conferência, o tivesse feito – o que não fez – tal seria já extemporâneo, pois o momento próprio para o fazer teria sido logo no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade.”
Ora, no caso em apreço nos autos, o recorrente já dispunha da oportunidade processual de suscitar a questão da inconstitucionalidade normativa extraída dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, ambos do CPP, no momento em que deduziu reclamação para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça do despacho que lhe negou a subida de recurso interposto de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa. Aliás, conforme notado pelo Ministério Público, o próprio reclamante sustentou, naquela reclamação, que o regime de recursos instituído pela Lei n.º 48/2007 não deveria ser aplicado aos autos recorridos, pelo que estava ciente da possibilidade de aplicação da interpretação normativa que pretende agora ver apreciada pelo Tribunal Constitucional.
Assim sendo, a suscitação tardia da questão de inconstitucionalidade em sede de requerimento de reforma do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça não é apta a evidenciar o cumprimento do ónus processual de prévia e adequada suscitação da questão de constitucionalidade, pelo que, por força do artigo 72º, n.º 2, da LTC, bem andou o despacho reclamado ao não admitir o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
O que, aliás, inviabiliza que o Tribunal reitere a sua abundante e unânime jurisprudência deste Tribunal (cfr. Acórdãos n.º 263/09, n.º 551/09, n.º 645/09, n.º 125/10, n.º 174/10, n.º 276/10, n.º 277/10, n.º 308/10 e n.º 314/10. todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), sempre no sentido da não inconstitucionalidade de interpretações normativas dos artigos 400º, n.º 1, alínea f), e 432º, n.º 1, ambos do CCP similares à que foi aplicada nos autos recorridos.
Em todos estes acórdãos, tem vindo o Tribunal Constitucional a esclarecer que o direito fundamental ao recurso (artigo 32º, n.º 1, da CRP) não é configurável como um direito ilimitado ou sequer que pressuponha um duplo grau de recurso, sendo constitucionalmente admissível que o legislador ordinário promova outros valores constitucional – v.g., a celeridade processual e a protecção dos direitos contrapostos das vítimas de crimes –, limitando o acesso à última instância de recurso.
Como tal, mesmo que não se verificasse – como se verifica – a impossibilidade de conhecimento do objecto do recurso, por falta de suscitação adequada da questão de inconstitucionalidade, sempre estaria o recurso interposto votado ao insucesso.
III – DECISÃO
Nestes termos, pelos fundamentos supra expostos e ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 77º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro.
Lisboa, 2 de Agosto de 2010. – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão
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