|
Processo n.º 182/2010
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal Administrativo, em que é recorrente A., S.A., foi proferida decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com fundamento no facto de a interpretação dada aos artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos), “[…] no sentido de sujeitar à Lada a actividade privada de empresas públicas sob forma privada”, não integrar a “ratio decidendi” da decisão recorrida, na medida em que se considerou estar aí em causa justamente uma actividade administrativa e não uma actividade privada.
Entendeu, além disso, a decisão sumária reclamada não se poder considerar ter sido suscitada, de modo processualmente adequado, qualquer outra questão de constitucionalidade normativa relacionada com os artigos 3.º e 4.º daquele diploma.
2. Notificada dessa decisão, A., S.A. veio reclamar para a conferência, com os seguintes fundamentos:
1. Decidiu o Tribunal Constitucional, na decisão reclamada, que não se encontram reunidos os pressupostos processuais para o conhecimento do recurso interposto pela ora reclamante. Subjacente a essa decisão está, por um lado, o entendimento de que a “única questão de constitucionalidade que se pode considerar ter sido suscitada de modo processualmente adequado” não pode ser conhecida no presente recurso “por a aplicação da mesma não integrar a ratio decidendi nem da decisão do TCAS nem da decisão do STA que confirma esta última” e, por outro lado, a consideração de que as restantes questões de constitucionalidade não foram suscitadas “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de, como dispõe o n.° 2 do artigo 72.° da LTC, este estar obrigado a dela conhecer”.
2. A reclamante não pode conformar-se com o sentido da decisão sumária proferida, a qual assenta numa visão excessivamente formalista do processo, que a reclamante reputa inaceitável.
3. Em causa está uma intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões apresentada por um jornalista do jornal “B.”, Recorrido nos presentes autos, na qual o jornalista requereu o acesso ao contrato que a reclamante celebrou com a C. relativo à transmissão de jogos de futebol da Liga …das épocas de 2008/2009 e 2009/2010, pedido esse que foi deferido pela Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e, posteriormente, veio a ter acolhimento jurisdicional.
4. Nos sucessivos recursos interpostos, a ora reclamante considerou que a interpretação feita pelo tribunais a quo dos artigos 3.° e 4.° da Lei de Acesso aos Tribunais Administrativos (LADA) é constitucionalmente inaceitável em face do (i) princípio do arquivo aberto, (ii) do princípio da igualdade, (iii) do direito de livre iniciativa económica e (iv) do princípio da concorrência.
5. Esta posição da reclamante assenta no entendimento de que o princípio do arquivo aberto, conjugado com o princípio da igualdade e com o direito fundamental de livre iniciativa económica, bem como com o princípio da concorrência, não autoriza a interpretação que tem sido sustentada na jurisprudência anterior, segundo a qual os artigos 3.° e 4.° da LADA permitem, sempre e em qualquer circunstância, perante actividade de natureza concorrencial ou não concorrencial, o acesso ilimitado aos documentos detidos por empresas públicas e concessionárias de serviço público.
6. Dito de outro modo, as instâncias anteriores aplicaram a norma segundo a qual as empresas públicas e concessionárias de serviço público estão obrigadas a permitir o acesso a qualquer documentação de que disponham, mesmo que essa documentação diga respeito a actividade que esteja a ser prosseguida em âmbito concorrencial com outras entidades privadas, que não se encontram sujeitas aos mesmos deveres de disponibilização de informação. E este entendimento, que se extrai das decisões recorridas, ofende o princípio do arquivo aberto, conjugado com os princípios da igualdade e da concorrência e o direito fundamental de livre iniciativa económica, na sua configuração constitucional.
7. A A. sempre sublinhou que tal leitura, inequivocamente normativa, é constitucionalmente insustentável.
8. Não estando em causa, nesta sede, a demonstração da razão que assiste à reclamante no recurso interposto, serve apenas esta introdução para contextualizar o âmbito da presente reclamação.
9. A discordância que a ora reclamante assume relativamente à decisão sumária proferida centra-se apenas na decisão proferida relativamente a uma das duas questões de constitucionalidade. Como se referiu, a decisão sumária recusa conhecer o objecto do recurso interposto por considerar que uma das questões de constitucionalidade não é a ratio decidendi da decisão recorrida e, quanto à outra questão, por entender que a mesma não foi suscitada de modo processualmente adequado. Pese embora a relevância concedida pelas instâncias ao âmbito objectivo da LADA não passar, como a reclamante reiteradamente afirmou nas anteriores alegações de recurso, de uma mera aparência, que uma leitura materialmente sustentada da decisão recorrida não permitiria afirmar, a reclamante apenas dirige a presente reclamação à parte da decisão reclamada que considera que “a alegada ofensa ao princípio da igualdade (artigo 13.°), do direito à livre iniciativa económica (artigo 61.°), do princípio da concorrência (artigo 81.° e 99.°) e do princípio do arquivo aberto (artigos 268.°, n.° 2) (...) não foi suscitada de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de, como dispõe o n.° 2 do artigo 72.° da LTC, este estar obrigado a dela conhecer”. Pelas razões que se evidenciam, a reclamante não se conforma com esta decisão.
10. Para a análise do pressuposto processual em causa – o da suscitação prévia, de modo processualmente adequado, da questão de constitucionalidade –, a decisão sumária recorre, por um lado, a jurisprudência anterior desse Tribunal e, por outro lado, às conclusões das alegações apresentadas pela aqui reclamante ao Supremo Tribunal Administrativo, concluindo que “(...) em lugar algum se indica, através da formulação de uma regra abstractamente enunciada e com vocação para uma aplicação potencialmente genérica, autonomizável da pura actividade subsuntiva determinada por circunstâncias específicas do caso concreto, e portanto, passível de controlo jurídico-constitucional, qual a norma do caso”.
11. Se, por um lado, se compreende o princípio subjacente à posição que vem sendo assumida pela jurisprudência desse Tribunal no que toca à exigência de suscitação processualmente adequada da inconstitucionalidade normativa em sede de fiscalização concreta, já não se aceita, em contrapartida, que tal posição seja extremada ao ponto de traduzir a aplicação exclusiva e formal das regras do processo.
12. E, com o devido respeito, é precisamente a uma tal aplicação formalista que procede a decisão ora reclamada no momento em que considera que a questão da constitucionalidade relevante no presente recurso jurisdicional – que assenta na consideração de que a interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA no sentido de permitir o acesso a documentos comerciais de empresas públicas e concessionárias de serviço público, produzidos em ambiente de concorrência, configura uma violação do princípio da igualdade, do direito à livre iniciativa económica, do princípio da concorrência e do princípio do arquivo aberto – não foi suscitada de modo processualmente adequado.
13. Retenha-se, desde já, que não está aqui em causa qualquer das questões abundantemente tratadas pela jurisprudência desse Tribunal Constitucional, a respeito do pressuposto processual da suscitação prévia de modo processualmente adequado da questão de constitucionalidade. O que aqui está em causa não é a imputação, pela recorrente, ora reclamante, da inconstitucionalidade à decisão recorrida, como acontece inúmeras vezes, e não a uma norma ou a um sentido normativo. A presente reclamação não trata também da suscitação da questão de constitucionalidade em momento anterior ao recurso da decisão recorrida, como também ocorre em muitos dos casos em que esse Tribunal se pronuncia no sentido do não conhecimento do recurso por falta de verificação do pressupostos processual em apreço.
14. Diferentemente, no caso em apreço, a questão é outra: a reclamante invocou a questão da constitucionalidade no recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo, no qual foi proferido o acórdão recorrido; a reclamante dirigiu o juízo de inconstitucionalidade a um sentido normativo, que enuncia de modo claro e perceptível, e não ao acórdão recorrido; porém, na enunciação do sentido normativo que questiona e de que o Tribunal a quo se valeu, a reclamante apelou ao caso concreto. Mas isso não basta para que o presente recurso não seja admitido, justamente porque a norma abstracta resulta da alegação apresentada.
15. É esta a questão que se nesta reclamação se traz à decisão de V. Ex.as.
(i) O objecto do recurso como questão normativa
16. Dúvidas não há – e a decisão reclamada não o questiona – que o objecto de recurso de constitucionalidade vai dirigido a uma norma (rectius, a um sentido normativo), com o que se cumpre o primeiro pressuposto processual exigido nos recursos de constitucionalidade.
17. Como se disse, o que se reputa inconstitucional não é a decisão recorrida, mas sim a interpretação que a decisão recorrida faz dos artigos 3.° e 4.° da LADA. E esta conclusão emerge, de modo transparente, da conclusão 2ª das alegações de recurso apresentadas pela aqui reclamante, onde pode ler-se que “[o] acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pelo recorrido, faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.º da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61.° e 81.° e 99.° (...)”.
18. Acresce ainda que o sentido normativo que se reputa inconstitucional integra a ratio decidendi da decisão recorrida, pelo que o primeiro pressuposto processual enunciado na decisão reclamada se verifica no presente recurso.
(ii) Esgotamento dos recursos ordinários
19. Semelhante conclusão é valida quanto ao pressuposto processual a que se a decisão reclamada se refere em terceiro lugar.
20. A decisão recorrida foi proferida pelo Supremo Tribunal Administrativo, no âmbito de um recurso de revista interposto de acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo do Sul.
(iii) Suscitação da questão de inconstitucionalidade em termos susceptíveis de aplicação genérica
21. O pressuposto processual que a decisão reclamada considera não estar verificado no presente recurso de constitucionalidade é aquele que ali se enuncia em segundo lugar – precisamente o da suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado.
22. O Tribunal Constitucional tem entendido que “[a]o questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma a que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição” – cfr. Acórdão n.° 367/94, citado, aliás, na decisão sumária recorrida.
23. Ora, no entendimento da A., uma leitura material das alegações de recurso da reclamante demonstra claramente que os parâmetros exigidos, em geral, pela jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o referido pressuposto processual se encontram cumpridos nos autos. E tal percepção emerge da simples análise da conclusão a que exclusivamente se reporta a decisão recorrida (conclusão 2ª das alegações de recurso), muito embora saia ainda reforçada da análise do próprio corpo das alegações de recurso – sobre o qual, pelo menos aparentemente, a decisão reclamada não se ateve.
24. Atente-se, para já, na referida conclusão 2ª, citada na própria decisão reclamada: “[o] acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pelo recorrido, faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA, violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61.° e 81.° e 99.°, todos da Lei Fundamental), uma vez que tal interpretação configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes, discriminação essa intolerável à luz da Constituição da República Portuguesa”.
25. Como se viu, suscitar de modo processualmente adequado a questão de inconstitucionalidade normativa pressupõe, à luz da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que se indique, de modo claro e perceptível, qual é a interpretação da norma (rectius, o sentido normativo) que se reputa inconstitucional. Pois bem, a reclamante não se conforma com uma decisão que considere que, na conclusão de recurso que acaba de citar, não se suscita de modo adequado, à luz do já descrito entendimento desse Tribunal, a questão normativa que é objecto do presente recurso de constitucionalidade.
26. Veja-se, detalhadamente, os diversos segmentos da aludida conclusão e ver-se-á que a mesma reúne os requisitos impostos pelo Tribunal Constitucional. De facto, aí se refere o seguinte:
a) “[o] acórdão recorrido, ao considerar que a A. está sujeita ao dever de facultar o acesso aos documentos solicitados pelo recorrido, faz uma errada interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA (...) [que] configura um tratamento discriminatório da A. face aos seus concorrentes (...)”, o que é o mesmo que dizer que o sentido normativo resultante da interpretação daquelas normas da LADA pelo acórdão recorrido é justamente aquele que permite o acesso por qualquer interessado e, desde logo, por qualquer concorrente da A. (nestes autos sempre perspectivada em torno do seu estatuto de empresa pública e de concessionária de serviço público), a documentos comerciais desta, produzidos em ambiente concorrencial. Da aludida conclusão das alegações de recurso retira-se imediatamente, numa leitura material e racionalmente fundada, que a questão da constitucionalidade relevante no presente recurso assenta na interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA no sentido de permitir o acesso ilimitado a documentos comerciais de empresas públicas e concessionárias de serviço público, produzidos em ambiente de concorrência.
É esta, portanto, a “exacta dimensão normativa do preceito que [a reclamante] entende não dever ser aplicada por ser incompatível com a Constituição” (cfr. acórdão n.° 349/ 99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). E é este, por conseguinte, o sentido normativo que o Supremo Tribunal Administrativo e, neste recurso, o Tribunal Constitucional, devem apreciar.
E assim se vê que esta enunciação do sentido normativo permite que “(...), no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição” (cfr. o já citado acórdão n.° 367/94).
b) De resto, nesse mesmo segmento da peça processual anteriormente apresentada se escreve ainda que “(...) [essa] interpretação dos artigos 3.° e 4.° da LADA [é] violadora do princípio constitucional do arquivo aberto, dos direitos de igualdade e de livre iniciativa económica e do princípio da concorrência (consagrados, respectivamente, nos artigos 268.°, n.° 2, 13.°, 61.° e 81.° e 99.°, todos da Lei Fundamental) (...)”, completando-se o preenchimento do pressuposto processual em análise, com a indicação do porquê da incompatibilidade, isto é, a indicação da norma ou princípio constitucional infringido.
27. E se assim é a partir das conclusões das alegações de recurso – as quais, embora delimitando o seu objecto, são necessariamente sumárias e sintéticas, remetendo o desenvolvimento dos argumentos nelas plasmados para o corpo das alegações –, uma leitura do corpo das alegações, na parte em que se debruça sobre a questão de constitucionalidade em apreço, torna ainda mais incompreensível e inaceitável o sentido da decisão reclamada.
a) Na página 30 das alegações (no § 3.2°) pode ler-se: “(...) o deferimento da pretensão do recorrido significa que os operadores privados de televisão podem ter acesso às propostas comerciais apresentadas por um concorrente, apenas porque um tal concorrente é uma empresa pública e concessionária, ao passo que a A. não tem qualquer possibilidade de, no mesmo mercado concorrencial, aceder à estratégia comercial levada a cabo pelos seus concorrentes privados, isto é, pela SIC e pela TVI, o que se afigura constitucionalmente inaceitável. O deferimento da pretensão do recorrido equivale, portanto, a uma interpretação inconstitucional das normas da LADA face ao princípio do arquivo aberto e face aos direitos de iniciativa económica privada e de igualdade e face ao princípio da concorrência tal como constitucionalmente consagrado, razão adicional para que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que se mostre conforme com tais preceitos e princípios constitucionais”.
b) Na página 31 e 32 das alegações (no § 3.4.°, em jeito de considerações finais), a ora reclamante, evidenciando o passo em que se afasta do entendimento do Tribunal a quo, escreveu:
(i) “(...) a circunstância de a A. assumir natureza de empresa pública e concessionária de serviço público (...) implica que uma proposta comercial apresentada perante uma entidade privada, não regulado por qualquer preceito de natureza pública, tenha obrigatoriamente de ser divulgada perante um terceiro que se mostre interessado nesse conhecimento (...)”, e ainda
(ii) “(...) a A.está obrigada a divulgar ao recorrido, jornalista, a proposta que apresentou à SportTV para a aquisição de determinados direitos comerciais sobre conteúdos televisivos, (i) sabendo-se que outras operadoras televisivas foram concorrentes nesse procedimento concorrencial em questão, (ii) sabendo-se que as propostas dessas operadoras televisivas foram preteridas em beneficio da proposta da A., no quadro de uma decisão de natureza privada, e (iii) sabendo-se que, na situação inversa, não há mecanismo legal que permita à A. aceder à proposta apresentada por qualquer dessas suas concorrentes”.
As passagens das alegações da ora reclamante que aqui se transcrevem são também claras quanto à questão de saber se a reclamante enunciou, ou não, de modo claro e perceptível o sentido normativo que a decisão recorrida atribui às normas legais e que se considera inconstitucional. É que das mesmas emerge inequivocamente que a reclamante não aceita e considera inconstitucional o entendimento segundo o qual as empresas públicas e as concessionárias de serviço público estão sujeitas a um dever de acesso ilimitado a documentos por si produzidos, mesmo que em regime concorrencial, sendo justamente esse o sentido normativo que as instâncias anteriores retiraram dos normativos questionados.
E estas passagens devem ser também levadas em consideração para efeitos da verificação dos pressupostos processuais do recurso em apreço.
28. Assim se vê que a conclusão da decisão sumária no sentido de que “em lugar algum se indica, através da formulação de uma regra abstractamente enunciada e com vocação para uma aplicação potencialmente genérica, autonomizável da pura actividade subsuntiva determinada por circunstâncias específicas do caso concreto e, portanto, passível de controlo jurídico-constitucional, qual a norma do caso” é inaceitável.
29. É que, como se deixou claro, a aqui reclamante fá-lo nas alegações de recurso que apresentou.
30. O facto de na enunciação da questão normativa se referir ao caso concreto (à A. e aos concretos documentos cujo acesso é requerido pelo recorrido) não invalida que a questão normativa tenha sido suscitada em termos susceptíveis de aplicação genérica. Isto porque, ao longo das suas alegações, é constantemente referido o estatuto da A. que assume relevância, para efeitos das questões suscitadas – o estatuto de empresa pública e de concessionária de serviço público. Também quando aos documentos cujo acesso é requerido pelo recorrido, extrai-se, em termos totalmente fechados e inequívocos, que o que assume relevância nas alegações e na posição da recorrente, ora reclamante, é a circunstância de tais documentos terem sido produzidos em ambiente concorrencial.
31. Fica, pois, claro, neste quadro, que a questão normativa cuja constitucionalidade é suscitada é apresentada em termos susceptíveis de aplicação genérica, abstracta e independente do caso concreto.
32. A reclamante cumpriu, como se viu, a exigência a que vem aludindo a jurisprudência do Tribunal Constitucional, manifestada, exemplificativamente, no citado acórdão 367/94, pois é indesmentível que o modo como, nas suas alegações de recurso, perspectiva e apresenta a questão da constitucionalidade suscitada permite ao Tribunal que sobre ela venha a pronunciar-se, apresentar a sua decisão sobre a mesma de um modo abstracto, “em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado”.
33. Da exposição antecedente – propositadamente detalhada para que se tome perfeita consciência do extremo a que a decisão reclamada conduz – decorre que a decisão reclamada exige que a recorrente indique de forma abstracta e sem a menor referência ao caso concreto o sentido normativo que reputa inconstitucional:
– Não se bastando com uma enunciação clara e perceptível do sentido normativo que está a ser questionado e que se extrai, de forma cristalina, das alegações anteriormente apresentadas, ainda que comporte qualquer referência ao caso concreto; e, mais ainda,
– Não tolerando que a transformação do sentido normativo enunciado, com apelo ao caso concreto, numa regra abstracta e genérica decorra, de modo inequívoco e unívoco, da peça processual em que a questão da constitucionalidade é suscitada, sem que haja qualquer espaço de liberdade nesse processo de abstracção (isto é, em termos estritamente vinculados).
E o que acaba de dizer-se torna clarividente que a decisão reclamada encerra, por um lado, uma leitura formal e inaceitável, das alegações de recurso da aqui reclamante e, por outro lado, encerra a preferência da forma sobre a matéria.
34. Nesta medida, deve o recurso ser admitido, em função da delimitação clara que é efectuada a respeito da questão a decidir.
35. Por último, a reclamante requer, nos termos do disposto no n.ºs 1 e 3 do artigo 669.° do Código de Processo Civil, a reforma da decisão sumária reclamada quanto a custas, uma vez que nela se condena a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.
36. O fundamento para a requerida reforma prende-se com o facto de o presente recurso de constitucionalidade se enxertar no âmbito de uma intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, prevista no artigo 104.° e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, processo que, à data do seu início, se encontrava isento de custas, por força da isençdo objectiva prevista no artigo 2.° do Código das Custas Judiciais.
37. Com efeito, o Decreto-Lei n.° 34/2008, de 26 de Fevereiro, que aprova o Regulamento das Custas Processuais e revogou aquele Código, apenas entrou em vigor em 20 de Abril de 2009, data posterior à entrada em juízo do requerimento de intimação dos presentes autos (26 de Janeiro de 2009), e apenas se aplica aos processo iniciados após a sua entrada em vigor. Uma vez que ao regime das custas no Tribunal Constitucional é aplicável o regime de isenções previsto no Código das Custas Judiciais e, posteriormente, no Regulamento das Custas Processuais, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.° 303/98, de 7 de Outubro, o recurso de constitucionalidade a que se refere a presente reclamação encontra-se isento de custas.
38. Nesse sentido, a decisão reclamada deve ser objecto de reforma, dela se eliminado a condenação da recorrente, ora reclamante, em custas.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
3. A reclamante não contesta a decisão sumária na parte em que aí se decide não conhecer do objecto do recurso interposto relativamente à interpretação dada na decisão recorrida aos artigos 3.º e 4.º da LADA, “[…] no sentido de sujeitar à Lada a actividade privada de empresas públicas sob forma privada”.
A reclamante apenas dirige a presente reclamação à parte da decisão que considera não se poder considerar ter sido previamente suscitada, de modo processualmente adequado, qualquer outra questão de constitucionalidade normativa.
Entende a reclamante que resulta do teor da conclusão 2.ª das alegações de recurso para o Tribunal a quo, quer de forma autónoma quer quando conjugado com o próprio corpo das alegações de recurso, que, ao contrário do que se afirma na decisão sumária reclamada, se deve considerar ter sido suscitada a questão de constitucionalidade da interpretação dada na decisão recorrida aos artigos 3.º e 4.º da LADA, no sentido de permitir o acesso a documentos comerciais de empresas públicas e concessionárias de serviço público, produzidos em ambiente de concorrência.
Além de entender que é possível reconduzir o sentido normativo enunciado ao teor das alegações de recurso para o tribunal a quo, a reclamante afirma que a questão de constitucionalidade reportada a esse sentido normativo “[se] retira imediatamente, numa leitura material e racionalmente fundada” dessa conclusão 2.ª.
Face a isso, e embora reconheça que, ao enunciar o sentido normativo que questiona fez apelo ao caso concreto, a reclamante entende que tanto não basta para considerar o presente recurso inadmissível, na medida em que a questão de constitucionalidade foi apresentada em termos susceptíveis de aplicação genérica, abstracta e independente do caso concreto.
A reclamante parte do pressuposto de que, integrando o objecto do recurso de constitucionalidade, no seu entender, duas questões de constitucionalidade normativa autónomas, a decisão sumária reclamada, ao decidir do mesmo não conhecer, versou cada uma das questões de constitucionalidade separadamente, oferecendo fundamentos distintos para o não conhecimento de questões que, supostamente, seriam distintas uma da outra.
Que é esse o pressuposto de que se parte demonstra-o o facto de a reclamante afirmar que a reclamação “[se] centra apenas na decisão proferida relativamente a uma das duas questões de constitucionalidade”, excluindo do objecto da reclamação a parte da decisão sumária reclamada que, supostamente, versaria uma outra questão de constitucionalidade.
Em tal pressuposição vai implicada uma leitura equivocada da decisão sumária reclamada.
Desde logo, importa ter presente que a decisão sumária reclamada começou por observar que o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade era deficiente, por nele não vir enunciada qual a interpretação dada na decisão recorrida referida aos artigos 3.º, n.º 1, alínea a), e 2, e 4.º, n.º 1, alínea d), da Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos) cuja conformidade com a Constituição a requerente, ora reclamante, pretendia que fosse apreciada.
Afirmou a decisão sumária reclamada que não seria, no entanto, de promover o seu aperfeiçoamento, nos termos do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 75.º-A da LTC, por, independentemente da inobservância dos requisitos específicos – e supríveis – do requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade se não verificarem os pressupostos processuais – esses insupríveis – para que o Tribunal Constitucional pudesse conhecer do presente recurso.
Entendeu a decisão sumária reclamada que a única questão de constitucionalidade que se podia considerar ter sido suscitada de modo processualmente adequado era a que é enunciada nas conclusões das alegações de recurso para o Tribunal a quo e que se relaciona com a interpretação dada aos artigos 3.º e 4.º da Lei n.º 46/2007, de 24 de Agosto (Lei de Acesso aos Documentos Administrativos), feita pelo Tribunal que havia proferido a decisão de que então se recorria – o Tribunal Central Administrativo Sul –,“[…] no sentido de sujeitar à Lada a actividade privada de empresas públicas sob forma privada”.
Disse-se ainda na decisão sumária reclamada que “[i]ndependentemente da questão de saber se tal norma integra o objecto do presente recurso de constitucionalidade – como já se disse, a recorrente não enuncia no requerimento de interposição do recurso qual a interpretação dada na decisão recorrida aos preceitos que aí vêm indicados –, sempre se dirá que não poderia o Tribunal Constitucional conhecer do recurso na parte respeitante a essa norma por a aplicação da mesma não integrar a “ratio decidendi” nem da decisão do TCAS nem da decisão do STA que confirma esta última, na medida em que se considerou estar aí em causa justamente uma actividade administrativa e não uma actividade privada”.
Tal significa que a decisão sumária reclamada não procedeu à análise, em separado, da verificação de pressupostos processuais do recurso relativamente a qualquer outra questão de constitucionalidade que não aquela que aí vem enunciada.
Não o fez, porque, não obstante a deficiência nela apontada ao requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade – a da omissão da enunciação de qual a interpretação dada na decisão recorrida aos preceitos que aí vêm indicados –, resulta de forma inequívoca do teor desse requerimento que a recorrente pretende a apreciação de uma única questão de constitucionalidade.
Com efeito, embora, face à delimitação do objecto do recurso de constitucionalidade, feita pela recorrente no requerimento de interposição do mesmo, não seja possível ao Tribunal Constitucional determinar, com rigor, qual o segmento normativo cuja apreciação é pretendida – e daí a deficiência desse requerimento – resulta de forma clara e inequívoca da delimitação efectuada pela recorrente que integra o objecto do presente recurso uma única questão de constitucionalidade (qualquer que ela possa/pudesse ser). Além de que, ao indicar-se, nesse requerimento, qual a peça processual em que se suscitara, durante o processo, a questão de constitucionalidade, utiliza-se a expressão “[a] referida inconstitucionalidade material ”, o que reforça o entendimento de estar aí clara e inequivocamente em causa uma única questão de constitucionalidade.
Veio agora a recorrente, na reclamação, e pela primeira vez no processo, sustentar que integram o presente recurso de constitucionalidade duas questões de constitucionalidade distintas.
Simplesmente, tal posição não tem qualquer sentido.
Seguro é que tal entendimento é infirmado pelo teor das alegações de recurso para o tribunal a quo, onde se faz referência a uma única interpretação dada na decisão de que aí se recorre aos preceitos da LADA.
Ora, reportando-se a questão de constitucionalidade a essa interpretação – a única a que aí se faz referência – é por demais evidente que aí vem suscitada uma única questão de constitucionalidade normativa, nunca tendo sido suscitada qualquer outra.
Porque toda a construção argumentativa da reclamação assenta em um pressuposto que, pelos fundamentos expostos, se não verifica, não pode a mesma ser atendida.
Assim, confirma-se a decisão sumária reclamada de não conhecimento do objecto do recurso.
4. A reclamante veio também requerer, nos termos do disposto no n.º 1 e 3 do artigo 669.º do Código de Processo Civil, a reforma da decisão sumária reclamada quanto a custas, uma vez que nela se condena a recorrente em custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) unidades de conta.
Entende a reclamante que, na medida em que se enxerta no âmbito de uma intimação para prestações de informações, consulta de processos ou passagem de certidões, prevista no artigo 104.º e seguintes do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, processo que, à data do seu início, se encontrava isento de custas, por força da isenção objectiva prevista no artigo 2.º do Código das Custas Judiciais, o presente recurso de constitucionalidade estaria, igualmente, isento de custas, face ao disposto no Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro.
Não tem razão a reclamante.
Desde logo, não se percebe a referência feita ao artigo 2.º do Código das Custas Judiciais, porquanto, compulsados os autos, verifica-se que o regime de isenção de que a recorrente, ora reclamante, beneficiou, ao longo de todo o processo, foi o previsto na alínea b) do n.º 2 do artigo 73.º-C do Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, com a alteração que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 26/2004, de 24 de Fevereiro), onde se prevê a isenção de custas para o impugnante nos processos de intimação para a prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões e não o regime de isenções subjectivas previsto no artigo 2.º desse diploma.
Ora, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro, é aplicável, quanto à isenção de custas no Tribunal Constitucional, o disposto no artigo 2.º do Código das Custas Judiciais.
Esta remissão deve ser entendida como sendo feita para as isenções subjectivas constantes do art.º 2.º, com a exclusão das isenções objectivas que, entretanto, vieram a ser introduzidas pelo Decreto-Lei nº 324/2003,de 27 de Dezembro, como sejam as referidas no citado artigo 73.º-C.
Assim, indefere-se o pedido de reforma da decisão sumária reclamada quanto a custas.
III
Decisão
5. Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) indeferir a reclamação, confirmando a decisão sumária reclamada;
b) indeferir o requerimento de reforma da decisão sumária reclamada quanto a custas.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 14 de Julho de 2010.- Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão
|