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Processo n.º 962/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por decisão do Tribunal de Instrução Criminal, a requerimento do Ministério Público, foram efectuadas buscas nas instalações de “A., R.L.”, no âmbito do inquérito n.º 56/06.2TELSB, a correr termos no Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), visando a “apreensão de documentação, objectos e demais elementos, incluindo suporte informático, relacionados com as actividades delituosas, susceptíveis de integrarem os crimes de corrupção, previsto e punido pelos artigos 372.º e 374.º, e de participação em negócio, previsto e punido pelo artigo 377.º, com referência ao estatuído no artigo 386.º-A, todos do Código Penal”. O mandado determinava que, nas buscas às instalações das Sociedade, ficariam abrangidos “todos os escritórios e gabinetes nela existentes, que foram ocupados e/ou utilizados por advogados que tenham ou tivessem tido a seu cargo o acompanhamento do processo relativo ao contrato de aquisição de dois submarinos, celebrado entre o Estado Português e o GSC, e respectivos contratos de financiamento e de contrapartidas, designadamente os Srs. Advogados [ali] referidos”.
No início da diligência, o legal representante da Sociedade apresentou reclamação, ao abrigo do artigo 72.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), “para garantia da preservação do segredo profissional”, a qual foi admitida pela juíza que presidia ao acto, que, em consequência, sobrestou na diligência e determinou que “todas as pastas e restante documentação respeitante ao contrato identificado no despacho de autorização de buscas, independentemente do suporte material em que se encontrem, sejam identificadas, acondicionadas ou copiadas (caso se trate de informação em suporte digital) e seguidamente sejam selados, de imediato, sem serem previamente lidos ou examinados, excepto na parte respeitante à sua rotulagem, e sejam apresentados no Tribunal Central de Instrução Criminal, com vista à posterior apresentação ao Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, decorrido o prazo para apresentação da fundamentação” (cfr. auto de busca certificado a fls.142-153).
Em 8 de Outubro de 2009, “ A., R.L.”, B., C.., D. e E., apresentaram a fundamentação da reclamação, que consta de fls. 2 a 26 dos presentes autos, “pedindo que o Presidente da Relação proceda à desselagem, dos elementos apreendidos, na presença dos requerentes, com reserva de segredo, não remetendo ao Juiz de Instrução toda aquela [correspondência] que não possa manter-se apreendida nos termos do artigo 71.º do EOA, e que os elementos apreendidos no dia 29 de Setembro de 2009 que não forem remetidos ao Presidente da Relação se mantenham à ordem deste para reapreciação, sempre que o decurso do inquérito o revele necessário”.
O Juiz do processo, na sequência da posição assumida sobre a reclamação por parte do Ministério Público, emitiu parecer, nos termos do disposto no artigo 72.º, n.º 3, do EOA, considerando que as buscas terão sido realizadas com respeito pela legalidade.
2. Por decisão do Vice-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Outubro de 2009, foi indeferida a reclamação, com os seguintes fundamentos [segue transcrição parcial da decisão]:
«2.
Na apreciação deste incidente de reclamação para o Presidente do Tribunal da Relação, previsto no EOA, importará analisar a sua natureza e função específica.
Para tal efeito, iremos socorrer-nos do que foi já consagrado em anterior reclamação da mesma natureza, mais precisamente na Reclamação n.º 5548/08, desta Secção, assinada pela então Senhora Vice-presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa, Juíza Desembargadora, Dr.ª Filomena Lima, dado encontrarmo-nos em total concordância com o aí exposto.
“O art. 268º do CPP, sob a epígrafe ‘Actos a praticar pelo juiz de instrução’, define na sua al. c), como competência do JIC, proceder a buscas e apreensões em escritórios de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos arts. 177º, n.º 3, 180.º, n.º 1 e 181.º do CPP;
Este preceito enumera um conjunto de actos que, no decurso do inquérito, são da exclusiva competência do juiz de instrução, sujeitos por isso à sua intervenção pessoal e insusceptíveis de delegação.
Tais actos têm a ver, conforme já dissemos, com a salvaguarda e garantia dos direitos do cidadão, e decorrem dos princípios constitucionais consagrados nos arts. 202º e 203º da CRP.
A referida al. c), por seu turno, aglutina três situações que beneficiam de um especial reforço de garantias, traduzido na presença pessoal obrigatória do juiz.
O escritório de advogado, o consultório médico e o estabelecimento bancário, terão em comum a susceptibilidade de guarda de segredos ‘profissionais’ ou decorrentes do exercício de determinadas funções.
A entrada em qualquer um destes locais poderá dar acesso a informação protegida pelos referidos sigilos. A especial protecção dada pelo EOA visa a salvaguarda do respectivo segredo profissional.
Os arts. 70.º e seguintes, nomeadamente o art.º 72.º, da Lei 15/2005 (EOA) reforçam e completam as formalidades da busca, da apreensão de documentos e da possibilidade da sua salvaguarda, de modo rápido e cautelar, visando uma intervenção oportuna, visando a salvaguarda do segredo profissional, em obediência aos mencionados princípios.
Essa salvaguarda pressuporá que possa intervir-se de forma rápida e eficaz na protecção do segredo profissional perante um flagrante risco de colocação do mesmo em perigo através da diligência que decorra, como é o caso, em escritório de advogado.
Porém, essa intervenção não deverá corresponder, ‘tout court’, a uma substituição da função do juiz de instrução, na recolha e escolha dos documentos susceptíveis de servirem a prova dos crimes sob investigação, selecção que há-de obedecer a critérios dominados pelo interesse da investigação.
Tal triagem competirá sempre, em primeira linha, ao juiz de instrução já que, quanto a ele não há “segredo” visando esta reclamação obstar apenas a que sejam desnecessária, clamorosa e flagrantemente colocado em perigo o segredo profissional relativamente a documentos que, analisados também de forma perfunctória, nada tenham a ver com a investigação mas pressupõe, assim o entendemos, que esse perigo se manifeste de forma flagrante e inequívoca.
Como decorre do texto do Acórdão relatado pela Juíza Desembargadora Ana Brito, no recurso 54/2006 da 9ª Secção:
“O art. 135º do CPP concede um direito ao silêncio de todas as pessoas a quem a lei impuser ou permitir que guardem segredo sobre certas informações. A quebra do sigilo só pode ocorrer quando ‘se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal, nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante’ (nº 3). O que significa que, ainda segundo Costa Andrade, “a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despido do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo”.
Acrescentaríamos ainda que a tutela legal do segredo, que rodeia a prova pessoal (por depoimento ou por declaração), deve cobrir igualmente a produção da prova real (coisas em sentido lato: documentos, suportes informáticos, correspondência...), sob pena de se conseguir por uma via, aquilo que a lei proíbe pela outra.”
Mas não pode o reclamante suscitar questões que não se reportem a essa necessidade de acautelar o perigo de violação do segredo na vertente e com a citada natureza cautelar, sob pena de se desvirtuar o papel do juiz de instrução ou de se pretender resolver, nesta sede, questões ainda não suscitadas no processo e que o poderão ainda ser, no momento da revelação dos conteúdos, em função daqueles documentos que irão servir a prova, definição que não nos compete fazer mas sim ao detentor da investigação e em última análise ao juiz de instrução se chamado a fazê-lo em sede própria, ou ao Tribunal da Relação se suscitados os incidentes próprios, sempre de forma a preservar o segredo a que todos estão obrigados.
Também não poderá o arguido, nesta sede, invocar que o objecto da apreensão ultrapassou o mandado respectivo, no âmbito deste incidente, posto que não é este o mecanismo próprio para fazer tal avaliação, sendo objecto de arguição de nulidade pela via processual adequada e para o órgão próprio mas já fará sentido apreciar tal questão se se tratar de algo flagrante e grosseiro, já que a reclamação visa acautelar a lesão do direito de forma a evitar que a apreensão possa, só por si, colocar em perigo a difusão do perigo de violação do segredo que sempre é potenciado nestes casos e que justificam por isso a especial protecção em buscas e apreensões feitas em escritórios de advogados».
3.
Aqui chegados, face à necessidade de averiguar se existirá o perigo de uma lesão flagrante e desproporcionada do segredo profissional determina-se que se proceda à imediata desselagem nos termos do n.º 4 do art.º 72º EOA, tendo em vista o exame dos documentos e material apreendidos.
Consigna-se não ter suporte legal, nem se vislumbrar interesse numa melhor aplicação da justiça, o deferimento da pretensão dos reclamantes no sentido de que o visionamento da documentação e objectos apreendidos seja realizado na sua presença, razão pela qual é a mesma indeferida.
Realizada que foi a desselagem e exame dos documentos, passar-se-á à resolução das questões concretamente colocadas que serão enquadradas nos termos já expressos no ponto 2. desta Reclamação, isto é, celeridade e brevidade por um lado e apreciação meramente cautelar por outro.
4.
Examinados os documentos e perante a óbvia falta de um conhecimento detalhado do objecto da investigação não se vê, por ora, que dos elementos apreendidos e selados, no âmbito da busca realizada existam documentos que manifestamente possam não ter relação, pelo menos indirecta, com os crimes a investigar.
Não esqueçamos que a busca visava a apreensão de documentação, objectos e demais elementos, incluindo suporte informático, relacionados com as actividades delituosas, susceptíveis de integrarem os crimes de corrupção, p. e p. pelos arts. 372.º e 374.º, de participação em negócio, p. e p. pelo art.º 377.º, com referência ao estatuído no artº 386.º-A, todos do Código Penal.
Refira-se ainda que o despacho que determinou a busca em escritório de advogado autorizava expressamente no âmbito da mesma o acesso a todos os escritórios e gabinetes existentes, que foram ocupados e/ou utilizados por advogados que tenham ou tivessem tido a seu cargo o acompanhamento do processo relativo ao contrato de aquisição de dois submarinos, celebrado entre o Estado Português e o GSC, e respectivos contratos de financiamento e de contrapartidas.
Quanto ao facto de terem sido apreendidos documentos e objectos do posto de trabalho do Senhor Advogado, Dr. D., os quais poderiam integrar a limitação prevista nos n.ºs 1 a 3 do art.º 71.º do EOA, sempre se dirá que tal limitação só aparentemente existiria e que apenas sob o ponto de vista formal se poderia hoje considerar que a utilização desses elementos era ilegal.
Com efeito, face à imediata apresentação de reclamação sobre a apreensão desses elementos, a Senhora Juíza determinou a imediata selagem dos mesmos, sem que os mesmos tenham sido objecto de qualquer visionamento, não tendo havido, por isso, até à presente data, qualquer violação do segredo profissional expressamente consignado quer no art.º 180.º do Código de Processo Penal, quer, mais especificamente, no art.º 71.º do EOA.
Sucede que entretanto (em 06/10/2009), o Senhor Advogado, Dr. D., a quem terão sido apreendidos os docs. 1 a 9 e 11 a 18, foi constituído arguido (vide fls. 2059).
Tal constituição decorreu de posição anteriormente assumida pelo Ministério Público (fls. 1903 a 1918) – definidora dos pressupostos fácticos em que aquela deveria assentar – onde sustentou que os advogados que tivessem patrocinado juridicamente as partes envolvidas na celebração dos contratos de aquisição de dois submarinos e o de contrapartidas, celebrados entre o Estado Português e o consórcio GSC, bem como o contrato de financiamento celebrado entre o Estado e um consórcio bancário, dando aconselhamento jurídico poderiam ter construído ou ajudado a construir os esquemas utilizados pelos intervenientes directos nas negociações referentes à celebração de tais contratos, o que poderia constituir ilícito penal.
Decorre daqui que se é certo que a constituição de tal Senhor Advogado como arguido só se verificou em data posterior à da busca, não é menos verdade que na mesma, ao ter sido apresentada a reclamação não foram os docs. e objectos apreendidos sujeitos a qualquer visionamento por parte de quem quer que fosse (o que implica a inexistência, até à data, de qualquer violação do segredo profissional), pois que desde logo foram os mesmos selados.
Ora, confrontados que estamos hoje com o facto do Senhor Advogado, Dr. D., ter entretanto sido constituído arguido (repete-se, em função de enquadramento fáctico previamente definido pelo Ministério Público e que o mesmo preencherá), os elementos apreendidos e selados que estão neste momento sob a nossa apreciação, terão necessariamente de ter em conta aquela nova realidade – o facto do Senhor Advogado ser hoje arguido no processo.
Diga-se aliás que se porventura se tivesse o entendimento (que se não tem) daquele facto ser irrelevante para a apreciação da presente Reclamação, por só se ter verificado em momento posterior à busca e, nesse decorrência, considerássemos que a apreensão de tais elementos era ilegal, por desrespeitar o disposto no art.º 71º, n.ºs 1 a 3 do EOA e não se inserir na excepção prevista no n.º 4, de tal normativo, estaríamos, em boa verdade, a praticar um acto inútil (que a lei não admite) pois que imediatamente a seguir à nossa hipotética ordem de devolução da documentação, seria por certo determinada a apreensão de tais elementos, com base no novo pressuposto (advogado constituído arguido).
Quanto à questão da eventual nulidade resultante da forma como se terá verificado a constituição de arguido do Senhor Advogado, Dr. D., que é suscitada quer no requerimento inicial da Reclamação, quer no âmbito do requerimento apresentado posteriormente (com carimbo datado de 21/10/2009), sempre se dirá, como já se salientou supra, que não é matéria enquadrável no âmbito da Reclamação a que alude o indicado art.º 72.º do EOA, não sendo por isso passível da nossa apreciação.
Colocadas as questões nestes termos, haverá pois que analisar se os documentos e objectos apreendidos – Docs. 1 a 18 – devem ou não ser passíveis de análise por parte do Senhor Juiz de Instrução a fim de aferir do seu interesse para a investigação, ou, se pelo contrário, deverão ser devolvidos a quem foram apreendidos.
Resulta, pelo menos indiciado, que os Senhores Advogados, Drs. G. e D. terão participado de forma activa na elaboração dos contratos e trâmites jurídicos necessários à concretização do negócio dos submarinos.
Poderão estar em causa crimes de corrupção, de participação em negócio e, eventualmente, de branqueamento.
Como resulta claro do despacho do Senhor Juiz de Instrução, nas buscas determinadas à Sociedade em causa, ficariam abrangidos todos os escritórios e gabinetes nela existentes, que foram ocupados e/ou utilizados por advogados que tenham ou tivessem tido a seu cargo o acompanhamento do processo relativo ao contrato de aquisição de dois submarinos, celebrado entre o Estado Português e o GSC, e respectivos contratos de financiamento e de contrapartidas, designadamente os Srs. Advogados aqui referidos.
Houve o cuidado de, sabendo-se que as buscas poderiam incidir sobre ficheiros informáticos, e que por essa forma se poderia ter acesso a informação sigilosa fora do âmbito do processo em causa, de limitar tal acesso através da apresentação de 35 expressões-chave de busca.
Quanto a estas (constantes do despacho que determinou a realização das buscas) afigura-se-nos que todas elas, de forma mais ou menos indirecta, se relacionam com a investigação em curso, não surgindo como exteriores à mesma. O facto de através delas se poder aceder a matéria que saia fora do processo é matéria que competirá ao Senhor Juiz de Instrução averiguar, sendo certo que também ele se encontra sujeito ao sigilo profissional.
Existirão pois nesta fase de investigação razões bastantes para que seja mantida a apreensão de docs. sujeitos a sigilo profissional, por parte do seu detentor, visto que os valores ora em confronto – descoberta da verdade material/realização da Justiça quanto a crimes de complexidade elevada e o da reserva do sigilo profissional – levam a que o prato da balança penda para a prevalência dos primeiros.
Acresce, não se ter detectado uma qualquer violação grosseira da garantia da preservação de tal segredo profissional, pois que, como já se referiu, na situação em apreço estamos face a uma investigação complexa que envolve variadíssimos actos susceptíveis de através deles se terem cometido os crimes de corrupção, participação em negócio e mesmo, eventualmente, branqueamento, sendo que a apreensão só por si não viola o segredo profissional podendo apenas potenciar uma futura difusão do mesmo mas os interesses da investigação e o objecto da mesma, tal como foram definidos pelo detentor do poder de investigar, fazem-nos crer que, numa perspectiva cautelar e genérica, não haverá, por ora, razões para levantar a apreensão relativamente aos documentos apreendidos e selados.
Apenas, a eventual futura revelação dos conteúdos respectivos terá a susceptibilidade de pôr em perigo o segredo de terceiros e poderá colocar, em concreto, a questão da compatibilização do interesse da investigação, por um lado, e o interesse da preservação desse segredo, por outro.
A este propósito será importante mencionar uma vez mais o já referido acórdão desta Relação n.º 54/2006, onde se pode ler:
“A aquisição da prova para o processo, e sua respectiva [in]corporação, pressupõe dois momentos distintos:
- o momento da apreensão da prova (real, porque é desta de que in casu se trata);
- o momento da revelação da prova.
A apreensão precede a revelação dos conteúdos. E é só neste segundo momento, que ainda não ocorreu processualmente, que a questão dos segredos se poderá colocar.
É que para o juiz de instrução não existe “segredo”, na medida em que ele também está coberto pelo segredo.
Assim, em resumo, e voltando ao início das questões suscitadas no recurso, compete ao M.P. decidir, num primeiro momento – o do inquérito –, segundo a sua perspectiva (de titular do inquérito), o que pode/deve ser apreendido, o que se revela com interesse para a prova; compete, por seu turno, ao juiz de instrução, controlar/garantir a regularidade das apreensões.”
(...)
“Problema que se pode vir a colocar, é o da tutela dos direitos de terceiro no que respeita à sua privacidade; ou seja, o problema de factos pessoais desse terceiro, divulgáveis (ou cognoscíveis) através do documento apreendido, que poderão/deveriam estar cobertos por algum “segredo” questão que caso se venha a colocar no processo (e ainda não se encontra equacionada em concreto), sempre se poderá resolver compatibilizando os vários interesses em conflito – da administração da justiça, por um lado, e da tutela dos direitos de terceiro, e da reserva da sua privacidade, pelo outro.
Essa compatibilização poderá passar (no que aos direitos de terceiros se refere) pela utilização de tais documentos como prova, “apagando” destes, ou de qualquer outro modo ocultando, todos os elementos que respeitem a essa privacidade (v.g., a identidade pessoal terceiro).”
A ser assim, não vislumbramos que as buscas realizadas tenham excedido o âmbito do despacho que as determinou, sendo por outro lado prematuro poder este Tribunal da Relação, no âmbito do presente incidente, excluir os documentos como é pretendido pelos reclamantes, pois que tal exame aprofundado deverá ser feito em sede investigatória, estabelecendo-se as necessárias correlações entre os mesmos e os arguidos.
Poderemos sim afirmar que tais docs. apreendidos surgem, na sua aparência, face ao seu visionamento, como directa ou indirectamente relacionados com o objecto das investigações em curso.
No que concerne às demais alegadas nulidades, consideramos que as mesmas não se enquadram no âmbito de apreciação da presente reclamação, pois que, numa apreciação necessariamente perfunctória, não representarão o abuso claro e inequívoco por parte do Senhor Juiz, do poder que a lei lhe conferiu de determinar e realizar as buscas em causa, as quais cumpriram as exigências legais previstas nos arts. 176º, 177º, 178º, 179º e 180º, Código de Processo Penal, bem como o art.º 71.º do EOA.
Refira-se ainda que as alusões que são feitas pelos reclamantes sobre a pessoa do Senhor Juiz de Instrução pelo facto do mesmo ser titular do tribunal onde se desenrolam muitos outros processos onde aqueles representarão outras entidades, são meramente conjecturais, sendo que a lei, tal como se encontra concebida, não permite o afastamento do mesmo nos termos em que vem ventilada. Trata-se aliás de questão que sai fora do âmbito das matérias passíveis de serem conhecidas nesta sede de Reclamação.
Diga-se, a finalizar, que também não se descortina em que medida se revela inconstitucional o comportamento assumido, violador do disposto nos arts. 26º e 34º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, pois que como se deixou expresso, os actos praticados resultaram de dispositivos legais que os permitiam, sendo certo que a nossa Lei Fundamental quando consagra em sede de Direitos Liberdades e Garantias a preservação da correspondência, da reserva da intimidade da vida privada e familiar e estabelece garantias contra a obtenção e utilização abusivas de informações relativas às pessoas e famílias, não o faz de forma absoluta, ressalvando sempre os casos em que a lei ordinária processual penal admite a violação de tais direitos e garantias.
A situação vivenciada nos autos, como já se teve ocasião de referir, surgindo como reflexo da excepção consagrada no art.º 71º, n.º 4 do EOA, permite a apreensão dos documentos e objectos resultantes da busca, logo, a não violação dos apontados dispositivos constitucionais.
Desta forma, por todo o exposto, entendemos que não assiste razão aos reclamantes.
Consigna-se que foram novamente selados os volumes com os documentos e material apreendido e manter-se-á a apreensão, devendo os documentos permanecer selados até ser o processo restituído à 1ª instância.»
3. Notificados desta decisão vieram os reclamantes “A., R.L.”, B., F., C., D. e E., interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), nos termos seguintes [segue transcrição parcial do requerimento de interposição de recurso de fls. 248 a 256]:
«12. Na decisão de que ora se recorre (decisão sobre a reclamação, assinada em 29 de Outubro de 2009), o Mmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa indefere a pretensão dos RECLAMANTES, em suma, com base na seguinte fundamentação:
a) Em caso de busca e apreensão em escritório de advogado, a triagem dos elementos susceptíveis de servirem a prova dos crimes sob investigação «competirá sempre, em primeira linha, ao juiz de instrução, já que, quanto a ele, não há “segredo”» (cfr. p. 2 e 3 da decisão);
b) A imediata selagem dos elementos apreendidos impediu que, até à presente data, ocorresse qualquer violação do segredo profissional (cfr. p. 5 da decisão);
c) A constituição posterior de arguido do Senhor DR. D. (com base em enquadramento fáctico anterior às buscas por parte do Ministério Público) permite manter uma apreensão onde ainda não foi violado o segredo profissional, levando outro entendimento à prática de actos inúteis (cfr. p. 6 e 7 da decisão);
d) «[R]esulta, pelo menos indiciado, que os Senhores Advogados, Drs. G. e D. terão participado de forma activa na elaboração dos contratos e trâmites jurídicos necessários à concretização do negócio dos submarinos» (cfr. p. 7 da decisão);
e) «[P]oderão estar em causa crimes de corrupção, de participação em negócio e, eventualmente, de branqueamento» (cfr. p. 7 da decisão);
f) Foi limitado o acesso aos ficheiros informáticos através de 35 expressões-chave de busca, afigurando-se que «todas elas, de forma mais ou menos indirecta, se relacionam com a investigação em curso, não surgindo como exteriores à mesma» (cfr. p. 8 da decisão);
g) «O facto de através delas se poder aceder a matéria que saia fora do processo é matéria que competirá ao Senhor Juiz de Instrução averiguar, sendo certo que também ele se encontra sujeito ao sigilo profissional» (cfr. p. 8 da decisão);
h) O valor da descoberta da verdade material/realização da Justiça quanto a crimes de complexidade elevada prevalece sobre o sigilo profissional (cfr. p. 8 da decisão);
i) Não se vislumbra que as buscas tenham excedido o âmbito do despacho que as determinou (cfr. p. 10 da decisão);
j) «[A]s alusões que são feitas pelos reclamantes sobre a pessoa do Senhor Juiz de Instrução pelo facto do mesmo ser titular do tribunal onde se desenrolam muitos outros processos onde aqueles representarão outras entidades, são meramente conjecturais, sendo que a lei, tal como se encontra concebida, não permite o afastamento do mesmo nos termos em que vem ventilada» [questão que, aliás,] «sai fora do âmbito das matérias passíveis de serem conhecidas nesta sede de Reclamação» (cfr. p. 10 da decisão);
k) «[A] nossa Lei Fundamental quando consagra em sede de Direitos, Liberdades e Garantias a preservação da correspondência, da reserva da intimidade da vida privada e familiar e estabelece garantias contra a obtenção e utilização abusivas de informações relativas às pessoas e famílias, não o faz de forma absoluta, ressalvando sempre os casos em que a lei ordinária processual penal admite a violação de tais direitos e garantias» (cfr. pp. 10 e 11 da decisão);
l) «A situação vivenciada nos autos, [...] surgindo como reflexo da excepção consagrada no art.º 71º, n.º 4 do EOA, permite a apreensão dos documentos e objectos resultantes da busca, logo, a não violação dos apontados dispositivos constitucionais» (cfr. p. 11 da decisão).
13. Sendo, agora, para os RECORRENTES claro que o Mmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, leu os artigos 176º, 177º, 178º, 179° e 180° do CPP com o artigo 71° do EOA no seguinte sentido:
– Quanto ao juiz de instrução, não há segredo profissional de advogado.
– Pelo que, salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória.
– Este poder é tão amplo que tem lugar ainda que:
– entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão; que
– estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido; e que
– aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers.
14. Veio, assim, a aplicar as referidas disposições legais extraindo delas uma norma segundo a qual:
Salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória, ainda que entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão, que estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido e que aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers.
15. E ainda – julgando-se incompetente para apreciar a invocada nulidade da constituição de arguido do Senhor DR. D. ao decidir a reclamação mantendo a apreensão sem esperar pela decisão transitada da arguida nulidade – uma segunda norma, extraída dos mesmos preceitos, nos termos da qual:
Pode manter-se a apreensão objecto de reclamação e o juiz de instrução pode tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogados, designadamente correspondência que respeite ao exercício da advocacia, após arguição da nulidade da constituição de arguido que legitimaria a apreensão, mesmo que sobre tal arguição ainda não haja decisão transitada em julgado.
(…)
17. Os RECORRENTES anteciparam, em boa medida, o sentido normativo que poderia levar ao indeferimento da sua reclamação e que se veio a confirmar nas normas subjacentes à decisão de que agora se recorre:
a) Logo na diligência de busca e apreensão, com a apresentação da reclamação, com invocação do princípio da proporcionalidade e invocação genérica da Constituição (cfr. pp. 2 e 3 do Auto de Busca e Apreensão em Sociedade de Advogados, de 29 de Setembro de 2009, relativo à diligência nesse dia realizada na A., RL); e
b) Na fundamentação da reclamação, remetida aos autos em 6 de Outubro de 2009, com invocação directa dos artigos 26.º e 34.º, n.º 4, da Constituição (cfr., em especial, artigos 84.º e 85.º da fundamentação da reclamação - p. 22).
18. Os RECORRENTES foram colhidos por uma decisão-surpresa quanto à segunda norma (enunciada supra em 15), até porque a decisão recorrida não deixou de conhecer da questão da constituição de arguido que assumiu como base imediata do indeferimento da reclamação, apenas se tendo coibido de se pronunciar sobre a sua invalidade, numa inesperada e imprevisível opção por um conhecimento a meia-haste.
(…)»
4. Prosseguindo o recurso, os recorrentes alegaram e concluíram nos seguintes termos:
«I. O Mmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa leu os artigos 176.º, 177.º, 178.º, 179.º e 180.º do CPP com o artigo 71.º do EOA no seguinte sentido:
a. Quanto ao juiz de instrução, não há segredo profissional de advogado.
b. Pelo que, salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória.
c. Este poder é tão amplo que tem lugar ainda que:
i. entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão; que
ii. estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido; e que
iii. aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers.
II. Veio, assim, a aplicar as referidas disposições legais extraindo delas uma norma segundo a qual:
Salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória, ainda que entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão, que estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido e que aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers.
III. Tal sentido normativo fora já antecipado e a inconstitucionalidade invocada, conforme se refere no requerimento de interposição de recurso (que se reporta às pp. 2 e 3 do Auto de Busca e Apreensão em Sociedade de Advogados, de 29 de Setembro de 2009, relativo à diligência nessa dia realizada na A., RL, e à fundamentação da reclamação, em especial artigos 84.º e 85.º).
IV. Não existe, à luz de critérios de proporcionalidade, razão para restringir os direitos consagrados nos artigos 20.º, n.º 2, 32.º, n.º 1 e, em especial, 3, da Constituição, pelo que, tendo em conta que sem direito ao segredo não há confiança, sem confiança não há informação, consulta jurídica ou patrocínio judiciário eficaz, concluímos ser tal norma inconstitucional ao violar os referidos preceitos (violando, ainda, o artigo 6.º, n.º 3, alíneas b) e c), da CEDH).
V. Da mesma sorte, a referida norma viola o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição) dos clientes, bem como à inviolabilidade da correspondência de clientes e advogados (artigo 34.º, n.º 4, da Constituição), já que tais direitos estão co-envolvidos na tutela do segredo profissional (violando, ainda, o artigo 8.º, n.º 1, da CEDH).
VI. Julgando-se incompetente para apreciar a invocada nulidade da constituição de arguido do Senhor DR. D., ao decidir a reclamação mantendo a apreensão sem esperar pela decisão transitada da arguida nulidade, o Mmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação, aplicou ainda os artigos 176.º, 177.º, 178.º, 179.º e 180.º do CPP com o artigo 71.º do EOA, extraindo deles – em decisão surpresa – uma segunda norma nos termos da qual:
Pode manter-se a apreensão objecto de reclamação e o juiz de instrução pode tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogados, designadamente correspondência que respeite ao exercício da advocacia, após arguição da nulidade da constituição de arguido que legitimaria a apreensão, mesmo que sobre tal arguição ainda não haja decisão transitada em julgado.
VII. Ora, no caso de documentos que se encontrem em escritórios de advogados, a única restrição possível ao disposto no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição (que o mesmo permite), está claramente identificada no artigo 71.º, n.º 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados: «o caso de a correspondência respeitar a facto criminoso relativamente ao qual o advogado tenha sido constituído arguido» (sublinhado nosso).
VIII. Se se impugna a constituição de arguido e a decisão sobre a legitimidade da mesma ainda não transitou em julgado, não sendo tal pendência relevante para suster a desselagem, abre-se a porta a constituições de arguidos arbitrárias como pretexto para aceder a documentos em escritórios de advogados, fazendo da lei letra morta e da Constituição proclamação vazia.
IX. Uma vez que a Constituição estabelece um critério de restrição aos direitos fundamentais em causa, podendo até tal critério ser limitado em atenção ao princípio da proporcionalidade, o alargamento da restrição aos direitos fundamentais, para além das estritas excepções da lei (e estritas porque não se concebe que uma restrição legal a um direito fundamental possa ser interpretada recorrendo a processos de descoberta de conteúdo que não se reconduzam à compreensão declarativa ou restritivamente extraída), é inconstitucional por violação do artigo 18.º n.º 2, e in casu, dos artigos 26.º 34.º, n.º 4, da Constituição (violando, ainda, o artigo 8.º, n.º 1, da CEDH).
X. Esta segunda norma que o Mmo. Vice-Presidente do Tribunal da Relação aplicou é ainda inconstitucional por violação do direito a advogado que a Constituição consagra nos artigos 20.º, n.º 2, e 32.º, n.ºs 1 e 3 (violando, ainda, o artigo 6.º, n.º 3, alíneas b) e c), da CEDH), uma vez que a tutela da confiança, que emerge da tutela do segredo, conferindo efectividade ao prescrito nestas normas da Constituição, é traída pelo acesso a documentos que o advogado detém no exercício da sua profissão, sem que a única restrição que a lei e, por seu intermédio, a Constituição permitem esteja verificada.
Termos em que se requer que as duas normas sejam declaradas inconstitucionais, ordenando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto às questões de inconstitucionalidade.”
Em contra-alegações, o Ministério Público, após descrição detalhada das vicissitudes processuais que conduziram à situação em apreço no presente recurso, suscitou questões prévias conducentes ao não conhecimento do objecto do recurso, por inverificação de pressupostos processuais – no caso: falta de interesse em agir, não suscitação de forma processualmente adequada da questão de constitucionalidade e não aplicação pela decisão das normas recorrida com a interpretação impugnada –, e, pronunciando-se quanto ao fundo, pugnou pela improcedência do recurso.
Os recorrentes responderam às questões prévias, nos termos de fls. 449 a 472, concluindo pela sua improcedência.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. O presente recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, da decisão do Vice-presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29 de Outubro de 2009, que indeferiu a reclamação apresentada pelos recorrentes deduzida ao abrigo do disposto no artigo 72.º, n.ºs 1 e 2 do EOA, tem por objecto as normas dos artigos 176.º, 177.º, 178.º, 179.º e 180.º do Código de Processo Penal (CPP) e 71.º do EOA, assim interpretados, que os recorrentes entendem ser desconformes à Constituição:
a) Salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória, ainda que entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão, que estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido e que aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers;
b) Pode manter-se a apreensão objecto de reclamação e o juiz de instrução pode tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogados, designadamente correspondência que respeite ao exercício da advocacia, após arguição da nulidade da constituição de arguido que legitimaria a apreensão, mesmo que sobre tal arguição ainda não haja decisão transitada em julgado.
6. Em virtude de o recurso de constitucionalidade desempenhar uma função instrumental, apenas se justificando que dele se conheça quando a decisão puder repercutir-se utilmente sobre o julgamento do caso em que a questão de constitucionalidade se enxerta, é pertinente colocar, face a vicissitudes processuais entretanto ocorridas, a questão da sua inutilidade superveniente.
Vejamos, então, o que sucedeu no caso concreto.
6.1. Vieram os recorrentes dar conta da entrega no Tribunal da Relação de Lisboa de documento em que pedem «[q]ue sejam desselados e remetidos ao Juiz de Instrução Criminal competente, nos termos dos artigos 180.º e 179.º, n.º 3, do CPP, os documentos números 1 a 9 e 11 a 15, identificados no auto de apreensão de 29 de Setembro de 2009» e «[q]ue, quanto aos demais documentos (10 e 16 a 18 do auto de apreensão de 29 de Setembro de 2009, se mantenham nos autos de reclamação nos termos reclamados, aguardando decisão do Tribunal Constitucional e os termos do trânsito em julgado da decisão proferida ou que se vier a proferir (caso, por acórdão do Tribunal Constitucional, assim se venha a impor) sobra a reclamação».
Esta tomada de posição fundamenta-se no facto de os primeiros documentos estarem abrangidos pelo pedido de entrega ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal que lhes foi endereçado pelo Ministro da Defesa e de os restantes corresponderem a suportes informáticos que contém, não só elementos relativos à matéria a que se reportam os autos, como ainda outros elementos, designadamente correspondência, de outros clientes, que estão sujeitos a segredo profissional, impondo-se a sua salvaguarda. Por conseguinte, quanto a estes documentos, concluem manter-se o interesse e a utilidade do recurso de constitucionalidade (cfr. requerimento e documentos de fls. 275 a 284).
Sob promoção do Ministério Público, foram os autos remetidos, a título devolutivo, ao Tribunal da Relação de Lisboa, que, por despacho do Vice-presidente, de 21 de Janeiro de 2010, não apreciou a pretensão dos requerentes, a pretexto de que, uma vez decidida a reclamação e recebido o recurso para o Tribunal Constitucional, estava esgotado o seu poder jurisdicional quanto àquela matéria (cfr. fls. 303).
6.2. Posteriormente, outra ocorrência processual é susceptível de repercutir-se na utilidade do conhecimento do recurso. Efectivamente, por acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Abril de 2010, foi julgada irregular a constituição do recorrente Dr. D. como arguido, determinando a restituição de todos os documentos apreendidos na busca realizada ao seu escritório, no dia 29 de Setembro de 2009, “que constituam correspondência”.
Ouvidos quanto a esta questão, responderam os recorrentes nos termos de fls. 538 a 548, concluindo que:
“a) Enquanto não se tiver verificado o trânsito em julgado do Acórdão de 15/04/2010 no sentido determinado no mesmo, subsiste a utilidade da declaração de inconstitucionalidade da segunda norma sobre a qual a invalidade constitucional de colocou perante esse Venerando Tribunal, uma vez que tal declaração teria como consequência a nulidade da apreensão da correspondência (veja-se a invocada inconstitucionalidade da norma segundo a qual pode manter-se a apreensão objecto de reclamação e o juiz de instrução pode tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogados, designadamente correspondência que respeite ao exercício da advocacia, após arguição da nulidade da constituição de arguido que legitimaria a apreensão, mesmo que sobre tal arguição ainda não haja decisão transitada em julgado);
b) Em qualquer caso, subsiste sempre a utilidade da declaração de inconstitucionalidade da norma segundo a qual salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória, ainda que entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão, que estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido e que aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers, já que, com tal declaração de inconstitucionalidade, se determina necessariamente que a selecção dos documentos (para devolução da correspondência e selecção, entre os restantes, dos que têm relevância para os autos por se poderem considerar objecto ou elemento dos crimes a que se reportam os autos) não pode ser feita pelo Mmo. Juiz titular do TCIC, mas pelo Mmo. Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa.”
Ouvido o Ministério Público pronunciou-se nos termos de fls. 622 a 655, concluindo que o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa não retirou a utilidade nem o interesse no conhecimento da 1ª questão de constitucionalidade, mas veio retirar relevância prática à questão subjacente à segunda dimensão normativa formulada pelos recorrentes, admitindo, por isso, que se conclua haver inutilidade superveniente quanto à 2ª dimensão normativa do presente recurso.
A fls. 498 consta a informação de que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15 de Abril de 2010, supra referido, já transitou em julgado, tendo o respectivo processo sido remetido à 1ª instância em 19 de Maio de 2010.
6.3. Face à posição manifestada pelas partes, conclui-se que a decisão da Relação retirou a relevância prática à questão subjacente à segunda dimensão normativa. Efectivamente, tendo o acórdão da Relação decidido pela irregularidade da constituição como arguido do advogado em causa, dando-a sem efeito, e determinado a restituição ao mesmo de todos os documentos apreendidos na busca realizada no seu escritório no dia 29 de Setembro de 2009, “que constituam correspondência”, a apreciação dessa questão de constitucionalidade tornou-se supervenientemente inútil. Isto não só porque desapareceu o pressuposto tido como relevante para a validação e manutenção da apreensão – a constituição como arguido -, mas também porque o efeito prático pretendido com a decisão de inconstitucionalidade – o levantamento da apreensão da correspondência e a (ordem) da sua restituição – já foi alcançado por via da decisão tomada no acórdão da Relação.
É certo que os recorrentes pretendem que a execução dessa ordem de restituição não passe pela intervenção do juiz de instrução, segundo se depreende dos requerimentos apresentados no Tribunal da Relação e no Tribunal Central de Instrução Criminal (fls. 549 e segs.). Mas isso é aspecto que não se integra nessa questão de constitucionalidade. Corresponde, aliás, à finalidade última da 1ª questão de constitucionalidade ou de algum modo depende desta.
Já quanto à 1.ª questão de constitucionalidade é evidente que o conhecimento do recurso conserva utilidade. Há documentos apreendidos, que não constituem correspondência, de cuja selecção e determinação de pertinência à matéria sob investigação se pretende que fique afastado o juiz de instrução. Fica, assim, a essa questão limitado o que subsequentemente vai apreciar-se.
7. Cumpre começar por decidir, tendo presente a parte em que o recurso conserva utilidade, as questões prévias suscitadas pelo Ministério Público, que condicionam a sua admissibilidade, a saber:
1.ª - A falta de interesse em agir da recorrente A., RL;
2.ª – A não verificação dos pressupostos exigidos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
7.1. Entende o Ministério Público que a recorrente A., RL., não tem interesse em agir por existir uma “confusão de interesses”, decorrente de não se saber em representação ou defesa de quem intervém no presente recurso – se do cliente “Estado/Ministério da Defesa”, se da sociedade enquanto representante de seus clientes arguidos noutros processos, se “dos advogados constituídos arguidos neste processo”.
Os recorrentes responderam a esta questão como consta de fls. 449 a 459, justificando o interesse em agir e legitimidade da Sociedade para o recurso de constitucionalidade.
Como decorre do artigo do artigo 72.º, n.º 1, da Lei do Tribunal Constitucional, podem recorrer para o Tribunal Constitucional, além do Ministério Público “[a]s pessoas que, de acordo com a lei reguladora do processo em que a decisão foi proferida, tenham legitimidade para dela interpor recurso” [cfr. alínea b)].
Tendo a decisão recorrida sido proferida no âmbito de um processo de natureza criminal importa atender o que a este respeito dispõe o artigo 401.º do CPP. Este preceito, inserido nos princípios gerais dos recursos penais, sob a epigrafe “legitimidade e interesse em agir”, estatui que:
«1. Têm legitimidade para recorrer:
a) O Ministério Público, de quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido;
b) O arguido e o assistente, de decisões contra ele proferidas;
c) As partes civis, da parte das decisões contra cada uma proferidas;
d) Aqueles que tiverem sido condenados ao pagamento de quaisquer importâncias, nos termos deste Código, ou tiverem a defender um interesse afectado pela decisão.
2. Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir».
No caso dos autos, a recorrente A., RL., é parte no processo de reclamação onde foi proferida a decisão ora recorrida, deduzida para salvaguarda do segredo profissional, nos termos do artigo 72.º do EOA, tendo ficado vencida na sua pretensão. Não se discutiu no âmbito da reclamação, designadamente na decisão recorrida, a legitimidade da ora recorrente para intervir no procedimento em causa, pelo que, apenas se coloca a questão de saber se a reclamante tem ou não legitimidade e interesse na interposição do recurso de constitucionalidade.
Ora, face à posição que a reclamante assume no procedimento em causa, tendo ficado vencida na decisão recorrida, que indeferiu o direito que pretendia fazer valer no processo, e sendo o presente recurso o modo adequado de impugnação do acto que a recorrente considera lesivo dos direitos que defende, é manifesto que “tem legitimidade e interesse para recorrer da decisão nos termos da 2ª parte da alínea d) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 401.º do Código de Processo Penal”.
7.2. A admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação das normas cuja conformidade à Constituição se pretende que o Tribunal aprecie.
Alega o Ministério Público que os recorrentes não suscitaram durante o processo as questões de constitucionalidade que agora pretendem ver apreciadas em termos de o Tribunal a quo estar obrigado a delas conhecer – salientando que na reclamação inicial, a única referência legislativa feita, pela sociedade recorrente, é aos artigos 71.º e 72.º do EOA, que na fundamentação posterior da mesma reclamação apenas no número 85º se faz referência a disposições constitucionais, e que nas conclusões de tal fundamentação não consta qualquer referência às referidas disposições constitucionais (cfr. artigos 99.º, 100.º e 101.º das alegações) – e que a decisão recorrida não fez aplicação das dimensões arguidas de inconstitucionalidade pelos recorrentes.
Na resposta apresentada, sustentam os recorrentes que suscitaram a primeira questão de constitucionalidade na reclamação e respectiva fundamentação. Procuram ainda demonstrar que a dimensão normativa em causa foi efectivamente aplicada pela decisão recorrida.
7.3. A primeira questão de constitucionalidade reporta-se à interpretação das normas dos artigos 176.º, 177.º, 178.º, 179.º e 180.º do CPP, e do artigo 71.º do EOA, no sentido de que “salvo casos clamorosos e flagrantes, o juiz de instrução criminal pode sempre tomar conhecimento dos elementos apreendidos em escritório de advogado, avaliando a respectiva relevância probatória, ainda que entre tais documentos se possa encontrar correspondência que respeite ao exercício da advocacia em processos ou dossiers distintos do processo ou dossier em causa no mandado de busca e apreensão, que estejam a cargo de advogado diferente do advogado constituído arguido e que aquele mesmo juiz seja competente ou esteja a exercer de facto funções jurisdicionais nesses distintos processos ou dossiers”.
Quanto a esta questão, já os recorrentes haviam referido no requerimento de interposição de recurso e repetido nas alegações (cfr. ponto 17 e conclusão III, respectivamente) que aquele sentido normativo fora antecipado e a inconstitucionalidade invocada na diligência de busca e apreensão, “com invocação do princípio da proporcionalidade e invocação genérica da Constituição (cfr. pp. 2 e 3 do Auto de Busca e Apreensão em Sociedade de Advogados, de 29 de Setembro de 2009, relativo à diligência nessa dia realizada na A., RLl)”, e na fundamentação da reclamação, “com invocação directa dos artigos 26.º e 34.º, n.º 4 da Constituição (cfr., em especial, artigos 84.º e 85.º)”.
Na resposta ora apresentada alegam, além do mais, que o Ministério Público “confunde suscitação da questão de constitucionalidade com a invocação de concretas disposições constitucionais” (ponto 42), que “[o] que é necessário para se suscitar uma questão de constitucionalidade é apontar a relevância constitucional da decisão – designadamente invocando a inconstitucionalidade de uma das decisões previsivelmente possíveis –, por forma a que o Tribunal esteja ciente que, ao decidir, tem pela frente uma questão de constitucionalidade” (ponto 46), e que “[p]ortanto, o facto de se terem invocado ou não disposições constitucionais – e quais – é irrelevante para o efeito da questão de suscitação”, concluindo que, no essencial, a questão foi suscitada, pois “[a]nteciparam que o Presidente do Tribunal da Relação interpretasse o EOA num sentido que conduzisse à tomada de conhecimento dos documentos pelo Juiz do TCIC” e “[a]legaram a inconstitucionalidade de uma tal interpretação invocando – com indicação expressa de disposições constitucionais – que ela traduzia uma compressão dos direitos fundamentais co-envolvidos em violação da Constituição” (cfr. ponto 54).
É certo, como afirmam os recorrentes, que a indicação expressa dos preceitos da Constituição que se consideram violados não é condição necessária para que se considere suscitada uma questão de constitucionalidade, podendo bastar a referência aos princípios constitucionais infringidos. Mas já não é correcta a afirmação constante do ponto 16 de que “[o] que é necessário para se suscitar uma questão de constitucionalidade é apontar a relevância constitucional da decisão – designadamente invocando a inconstitucionalidade de uma das decisões previsivelmente possíveis –, por forma a que o Tribunal esteja ciente de que, ao decidir, tem pela frente uma questão de constitucionalidade”, afirmação que pressupõe que se tem por adequada a suscitação da inconstitucionalidade da decisão sem referência precisa às normas ou interpretações normativas que se considerem inconstitucionais.
Ora, do cotejo das peças processuais mencionadas pelos recorrentes não se retira a suscitação de qualquer questão de constitucionalidade incidente sobre a dimensão normativa que agora se pretende ver apreciada.
De facto, no requerimento da reclamação (apresentado aquando da apreensão), deduzido para preservação do segredo profissional, apenas se invoca o regime legal respeitante à apreensão de documentos em escritório de advogado, decorrente do artigo 71.º do EOA, e se questionam os “critérios de busca informática” utilizados – referindo-se que «os critérios de busca informática, consistindo em nomes de Advogados ou Clientes ou outras pessoas ou em palavras (como “contrapartida” ou “financiamento”) de uso frequente da prática negocial são susceptíveis de provocar uma busca e subsequente apreensão desproporcionadas e violando assim a lei e a Constituição». Daí não resulta a invocação de qualquer questão de constitucionalidade normativa.
E na fundamentação da reclamação também não cumpriram este ónus de modo satisfatório.
Destacam os recorrentes como especialmente relevantes para o efeito os artigos 84.º e 85.º da fundamentação da reclamação, do seguinte teor:
“84.º
Pelo que, no caso concreto, é evidente que só o Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação se pode pronunciar sobre a documentação selada, de modo a garantir a preservação do segredo profissional.
85.º
Sob pena de – caso não venha a selecção dos documentos a apreender a ser feita pelo Exmo. Senhor Presidente do Tribunal da Relação – se violar o regime consagrado no EOA, violação que se traduz numa compreensão, designadamente, do direito à reserva da vida privada (artigo 26.º da Constituição), co-envolvido no segredo profissional, e ainda do direito À inviolabilidade de correspondência, não autorizada no confronto da hierarquia axiológica constitucional, sendo violado, assim, também, o disposto no artigo 34.º, n.º 4, da Constituição.”
Estes artigos da fundamentação surgem na sequência da argumentação dos recorrentes no sentido de obstar a que o juiz que emitiu o mandato de apreensão possa ter acesso aos elementos apreendidos – designadamente, por poder vir a ser o juiz de instrução do processo e, sendo o único juiz a desempenhar aquelas funções no Tribunal Central de Instrução Criminal, ter intervenções em diversos outros processos em que intervêm advogados e sócios da 1ª recorrente, questionando também a abrangência das palavras-chave utilizadas na busca, por poder levar à localização de ficheiros relacionados com a preparação da defesa nesses outros processos –, e entender que, no caso concreto, deve ser o Presidente da Relação, como garantia da preservação do segredo profissional, a pronunciar-se sobre a documentação selada.
É neste contexto que se invoca a violação do direito à reserva da vida privada, co-envolvido no segredo profissional, e do direito à inviolabilidade da correspondência, previstos nos artigos 26.º e 34.º, n.º 4, da Constituição. Para a sua preservação, terá de ser o Presidente da Relação e não o juiz de instrução a proceder à selecção do que deve manter-se apreendido e do que deve ser restituído.
Porém, esta argumentação dos recorrentes, nomeadamente nos artigos da fundamentação da reclamação que referem e se transcreveram, não ultrapassa o patamar da censura à decisão que aceite a intervenção do juiz de instrução no processo. Não constitui modo idóneo para colocar uma questão de inconstitucionalidade relativamente às normas ou interpretações normativas que a decisão adopte, designadamente com referência aos preceitos da lei processual penal e do Estatuto da Ordem dos Advogados que mencionam no requerimento de interposição do recurso.
Efectivamente, suscitar uma questão de constitucionalidade “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC) significa colocá-la de forma expressa, directa, clara e perceptível, de modo a criar para esse tribunal um dever de pronúncia autónoma sobre a matéria a que tal questão se reporta. Para tanto não basta aduzir argumentos extraídos de normas ou princípios constitucionais ao fio do discurso, porque essa invocação tanto pode ser entendida como referida à lei, como à validade da decisão (cfr. artigo 3.º da Constituição). Embora sem exigir fórmulas sacramentais, impõe-se que a peça processual coloque o juiz da causa perante o dever de recusar aplicação a uma norma precisamente identificada (ou a um dado sentido dela) se chegar à conclusão de que essa norma (ou esse sentido normativo) seria determinante na solução da questão que lhe é submetida. Para este efeito, a Constituição não se bastou com a imposição aos tribunais de, nos feitos submetidos a julgamento, não aplicarem normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados (artigo 204.º da CRP). Fez depender o recurso para o Tribunal Constitucional de a decisão ter aplicado norma “cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo” [artigo 280.º, n.º 1, alínea b) da CRP]. Impõe, claramente, um questionamento prévio da constitucionalidade da norma perante o tribunal da causa como pressuposto do acesso ao Tribunal Constitucional, pressuposto este que o n.º 2 do artigo 72.º da LTC se limita a regular.
Em termos práticos, suscitar adequadamente uma questão de constitucionalidade normativa é colocá-la em termos tais que a sua não apreciação qua tale pelo tribunal da causa possa ser verberado como nulidade da decisão [artigo 668.º, n.º1, alínea d) do CPC; sem que isto signifique que a arguição da nulidade por omissão de pronúncia deva integrar o ónus de exaustão dos meios ordinários]. É uma exigência, propiciadora de racionalidade no exercício da função judicial, que não pode considerar-se ónus desproporcionado. Ora, os artigos 84.º e 85.º da reclamação, mesmo no contexto da peça processual em que se inserem, não convocam o órgão judicial ao qual são dirigidos a uma ponderação da constitucionalidade da norma cuja apreciação os recorrentes querem agora deferir ao Tribunal Constitucional de tal modo que pudesse dizer-se que não apreciar o problema nesse plano seja susceptível de constituir nulidade processual. Efectivamente, pede-se ao Presidente da Relação que decida o caso em determinado sentido, sob pena de inconstitucionalidade. Mas em lugar algum se indica, mediante a formulação de uma regra com vocação para uma aplicação potencialmente genérica, a norma que impede essa solução e que, por isso, se pretende ver afastada da decisão do caso com fundamento em inconstitucionalidade. Na repetida afirmação do Acórdão n.º 367/94, a questão de constitucionalidade háde ser enunciada (e desde logo suscitada) em termos tais que “ o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição”.
Deste modo, não pode tomar-se conhecimento do objecto do recurso relativamente à 1ª questão colocada no requerimento de interposição de recurso, ficando prejudicada a apreciação da falta do 2º pressuposto da admissibilidade do recurso – o da não aplicação pela decisão recorrida da dimensão normativa impugnada –, invocado pelo Ministério Público, quanto a esta questão.
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Declarar a inutilidade superveniente do recurso quanto à 2.ª questão de constitucionalidade identificada no requerimento de interposição;
b) Não tomar conhecimento do objecto do recurso quanto à 1.ª questão de constitucionalidade identificada nesse mesmo requerimento.
c) Condenar os recorrentes nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 12 unidades de conta.
Lisboa, 14 de Julho de 2010 – Vítor Gomes – Ana Maria Guerra Martins – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão
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