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Processo n.º 346/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos de reclamação, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A., S.A., reclama para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do despacho de fls. 346 e s. que não admitiu o recurso, por si interposto, para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«Primeiro
É do seguinte teor o requerimento de interposição do recurso:
“A. S.A, notificada do douto Acórdão proferido nos autos à margem referenciados, vem recorrer para o Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 70 n.° 1 alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional, da douta decisão naquele proferida, na interpretação da norma do artigo 498 n° 2 do C. P. C., cuja inconstitucionalidade suscitou quer nas alegações para a Relação de Lisboa quer nas alegações para esse Venerando Tribunal, no corpo das mesmas, in fine, último parágrafo, e no conjunto das conclusões, e, nomeadamente na conclusão quinta.
De facto, a decisão que transitou em julgado, constante da certidão junta aos autos, decretou que a ali reconvinte A. SA não era credora da aqui recorrida, mas da B. SA, na data em que deduziu a contestação/reconvenção, naturalmente porque essa excepção, a consignar a hipótese de compensação, não existia à luz da matéria de facto, à data da contestação/reconvenção.
No decurso daquela transitada acção, já depois do Saneador, que considerou as partes legítimas, a C. S A, e a B. SA, fundiram-se sob a denominação daquela primeira.
Do facto, não vieram dar notícia nos autos, onde decorria a lide, em que a ora recorrente deduzira a sua reconvenção, autos onde a C. S.A demandava a ora recorrente, fundamentada na circunstância de ter contratado com a B. S.A a cobrança dos créditos desta.
Portanto, o que foi decretado, no Acórdão cuja certidão se encontra nestes autos, foi que a B. S.A não era a mesma pessoa sob aponto de vista da sua qualidade jurídica, já que afusão não tinha acontecido à data da proposição nem dos articulados, e foi isso que constituiu o antecedente lógico que conduziu aquela decisão constante da referida certidão.
O que agora se diz no Acórdão de que se pretende recorrer, interpretando o artigo 498.º n.°2 do C. P. C., interpretação de que suscitou a inconstitucionalidade, é que a B. S. A e a C. S.A são a mesma pessoa do mesmo ponto de vista da qualidade jurídica, como de facto são, depois daquele referido negócio, ocorrido no decurso daquela acção anterior, perante o silêncio desta última, nesses mesmos autos, acerca do dito negócio.
A questão é que o artigo 498.º n.° 2 do C. P C., com esta última interpretação, consistente em entender o “ponto de vista da qualidade jurídica” como abrangendo, na situação concreta, (portanto após o transito do Acórdão constante da certidão, que as considerou duas pessoas distintas, sob aquele ponto de vista da qualidade jurídica), da união de duas pessoas jurídicas, em uma só, com a denominação social da recorrida C. S A, em momento posterior aos articulados, para efeitos de caso julgado, ou seja, a impedir que a recorrente possa demandar a recorrida, porque esta é a mesma pessoa, quer naqueles autos onde foi proferida a decisão que o contrário decidiu, reportando-se aos momentos da marcha do processo ocorrida pelo menos até ao Saneador, quer nos presentes autos, portanto, estendendo a interpretação “sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” para antes e depois da fusão, é, salvo o devido respeito, inconstitucional por violar o artigo 27.º n.°1 da Constituição.
Pois a interpretação do artigo 498.º n.°2 do C. P. C., no caso concreto, implica que a identidade dos sujeitos, sob o dito ponto de vista, tem como limite temporal a consideração dos factos existentes (excluída a fusão das sociedades, em momento muito posterior, portanto) à data em que foi proposta a acção e, maxime, a data em que foi deduzida a contestação/reconvenção e proferido o Saneador.
Com o alegado negócio da fusão das sociedades aqui referidas a ora recorrente passou a ter a faculdade de demandar a ora recorrida por aquela dívida da B. S.A, que antes não tinha, como foi decidido no Acórdão junto em certidão. E a ora recorrida, ao assumir o activo e o passivo da B. SA passou, desde então, a ter a obrigação de a pagar à recorrente, o que não fez.
Isto é, a existência de identidade de sujeitos, do ponto de vista da qualidade jurídica, nasceu num qualquer momento posterior à marcha do processo que justificou que na decisão proferida no aresto anterior, considerasse a existência de duas pessoas distintas.
Vir agora dizer-se, na interpretação do artigo 498.º n.° 2 do C. P. C., que para reclamar o seu crédito a ora recorrente, já não pode fazê-lo porque é a mesma pessoa sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica quando, agora, a qualidade jurídica se alterou em função e razão da fusão da C. S. A com a B. S. A, é interpretar o referido artigo em termos de extrair dele uma norma inconstitucional que põe em causa a certeza e a segurança jurídicas.
Assim.
1. Foi suscitada a inconstitucionalidade, por violação dos artigo 27.º n.° 1 da Constituição (certeza e segurança jurídicas - ver anotação de Vital Moreira e Canotilho) da interpretação dada à norma já indicada do artigo 498.º n.°2 do C.P.C.:
2. Essa suscitação teve lugar nomeadamente nas alegações para o Supremo Tribunal de Justiça, como se indicou.
3. Estão pois indicadas: 1) as normas inconstitucionais aplicadas; 2) A peça onde a inconstitucionalidade foi suscitada; 3) a norma ao abrigo da qual recorre (artigo 70.º n.° 1 alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional).
Deve pois o recurso ser admitido para o Tribunal Constitucional, a não ser que V. Exa entenda poder dever submeter a questão à Conferência, se for o caso de entender também dever subordinála a uma reforma, nos termos do artigo 669 n° 2 do C. P. C., e essa reforma vier de facto a ter lugar”.
Segundo
Mais do que a falta de preenchimento das formalidades do preenchimento dos requisitos processuais adequados, a levar a cabo na suscitação de inconstitucionalidades, apurados pela jurisprudência, de resto supríveis a convite, nos termos do artigo 75.º-A n.° 5 da LTC, do que se trata é que o Alto Tribunal de que se pretende recorrer, com fundamento na aplicação de norma inconstitucional, expressamente indicada, entende, como consta do Acórdão, sob a pretensão do recurso, que não houve nenhuma violação do artigo 27.º n.° 1 da Constituição porque ele se aplica (explica-se agora no douto despacho de indeferimento) tão só (“referindo- se ao «Direito à Liberdade e à Segurança»” a dispor que «todos têm direito à liberdade e à segurança») ao direito penal pois «tem a ver com matéria não atinente ao direito civil»
Terceiro
Ao contrário do que entende a recorrente e o entendem os Prof. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição Anotada, Coimbra Editora, 1978, página 95, anotação sob o n.° VII, assim, como a seguir se transcreve:
“Além do direito à liberdade, o n°1 garante o direito à segurança.
Trata-se de uma figura com assento constitucional desde as revoluções liberais. Não se restringe à protecção contra detenções arbitrárias: significa também garantia da segurança jurídica, da certeza quanto ao exercício dos direitos e da protecção contra os abusos das autoridades”
É aliás elementar e pacífico que um dos valores inerentes a todo o direito é o da certeza e da segurança jurídicas, incompatível com normas que se possam extrair de preceitos legislativos permissivas da violação de “caso julgado”
Quarto
(Da adequação processual de esclarecimentos adicionais de concretização da norma aplicada e da norma conforme com a Constituição, no requerimento de interposição)
Aliás a questão do caso julgado é do conhecimento oficioso, sobretudo por essa razão, da necessidade de observar o que respeita à questão da certeza e da segurança jurídicas.
Daí as normas que executam, nessa questão de caso julgado, esse valor e principio, consagrado no artigo 27.º n.° 1 da Constituição, que a decisão de que pretende recorrer-se entende por bem não estar contemplada nesse mesmo artigo 27.º n.° 1 da Constituição — são elas as normas do Código de Processo Civil — artigo 494.º alínea i, combinada com os artigos 495.º e 675.º.
E isso significa que foi processualmente adequado que no seu requerimento de interposição a requerente deixasse mais clara e inequívoca a sua posição de como a decisão recorrida só era possível com uma interpretação desconforme do artigo 498.º do C.P.C., e qual a conforme, a permitir o conhecimento oficioso da questão pela aplicação dos aqui citados artigos do C.P.C., levando o caso à Conferência, o que se faz, nos parágrafos 5.° e seguintes, nomeadamente, do requerimento de interposição transcrito em “Primeiro”.
Isto num contexto em que não houve — pelas razões já indicadas da errada interpretação do artigo 27.º n.° 1 da Constituição, aliás mesmo depois de conhecer a interpretação em concreto esclarecida no requerimento de interposição — a preocupação de saber, por parte do Alto Tribunal, de que se pretende recorrer, em que consistia a violação, em concreto, ou seja qual a norma aplicada, no Acórdão sob recurso, que era inconstitucional, quer por força dos artigos que se citam — o dever de conhecer oficiosamente da questão cuja inconstitucionalidade estava a ser suscitada, quer por força de uma aplicação preventiva do artigo 75.º-A n.° 5 e 6 da LTC, quer nos termos do artigo 265.º n.° 1, 2 e 3, quer por força do artigo 266.º n.° 1 e 2, entendendo a recorrente, ainda no âmbito do processualmente adequado quer o “devem” consignado no n.° 1 do artigo 266.º do C.P.C., para a condução e intervenção no processo, inquina, necessária e decisivamente, o “pode” do n.º 2 do mesmo artigo, com o “deve” quando esteja em causa o cumprimento de questões a que respeita ou alude o n.° 1 do mesmo artigo 266.º do C.P.C., e tudo isto por força do artigo 13.º e 20.º n.° 4 da Constituição, que o n.° 3-A do C.P.C. executa. Trata-se de que ao não proceder cm conformidade com o dever de cooperação se está, ou pode estar, injustamente, a beneficiar a outra. A doutrina do Professor Lebre de Freitas em anotação ao Código de Processo Civil sob os n.º 2 e 3 vai em parte nesse sentido dos deveres do tribunal para com as partes e distinguindo entre a cooperação formal e a substancial e aludindo ao poder do juiz para o pedido de prestação de esclarecimentos sobre a matéria de facto ou a matéria de direito.
Termos em que reclama e requer a V. Ex.ª faça seguir a reclamação, pelas razões e nos termos que antecedem.»
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se nos termos que se seguem:
«Vindo interposto recurso para este Tribunal Constitucional do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Novembro de 2009, que negou provimento ao recurso interposto do Acórdão da Relação de Lisboa, o momento processualmente adequado para suscitar a questão da inconstitucionalidade era nas alegações apresentadas naquele recurso.
2. Aí, no texto das alegações, diz-se:
“Foram erradamente interpretadas, aliás em violação da Constituição, por violação do princípio da certeza e segurança do direito, as seguintes normas cuja interpretação no sentido de que são as mesmas partes, quando foi decidido – com trânsito em julgado – que o não são, conduz à violação do caso julgado, da decisão proferida no Acórdão junto aos autos em certidão: artigo 498.º, n.º 2, do CPC”.
Por sua vez, diz-se nas conclusões:
“Assim, ao decidir que as partes são as mesmas, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o Acórdão, ora recorrido, tal como aliás a douta sentença que ele confirma, deram errada interpretação ao artigo 498.º, n.º 2, do CPC, a qual viola a constituição no seu artigo 27.º, n.º 1”.
3. Parece-nos claro que esta não será a forma de suscitar adequadamente uma questão de inconstitucionalidade normativa.
4. O que a recorrente A., S.A. questiona é o facto de se ter considerado que, quanto ao pedido reconvencional por ela deduzido, havia caso julgado, face ao decidido em outro processo, porque se verificavam todos os requisitos, designadamente identidade de sujeitos.
5. Portanto, é a própria decisão ao decidir dessa forma e não como pretendia a recorrente - que entendia não haver identidade de sujeitos – que é objecto de impugnação.
6. Por outro lado, para chegar ao entendimento que havia identidade de sujeitos e, consequentemente, caso julgado, o Supremo Tribunal de Justiça (tal como as outras instâncias) fez uma interpretação do alcance do decidido no outro processo e seus reflexos neste.
7. Assim, para se questionar tal interpretação, teria sempre de se incluir na dimensão normativa, atribuindo-lhe necessariamente carácter geral e abstracto, as circunstâncias que levaram àquele resultado interpretativo, bastando recordar a relevância que foi dada ao facto de se ter omitido, na outra acção, que a C. S.A. tomara a posição da B. S.A..
8. Como tal nunca foi feito pela recorrente, o que constituiu verdadeiramente a ratio decidendi da decisão, esteve sempre ausente da interpretação reputada de inconstitucional.
9. Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
3. A reclamante pretende recorrer para este Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fls. 325 e s., com vista à apreciação da inconstitucionalidade da norma do artigo 498.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, na interpretação segundo a qual «para reclamar o seu crédito a ora recorrente, já não pode fazê-lo porque é a mesma pessoa sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica quando, agora, a qualidade jurídica se alterou em função e razão da fusão da C. SA com a B. SA, é interpretar o referido artigo em termos de extrair dele uma norma inconstitucional que põe em causa a certeza e a segurança jurídicas».
O recurso não foi admitido por despacho de fls. 346/348, com fundamento, em síntese, na falta de suscitação da questão de constitucionalidade.
Efectivamente, o recurso em causa não pode ser admitido.
Desde logo porque, como é manifesto, a “interpretação” que a reclamante reputa inconstitucional carece de carácter normativo, não sendo autonomizável das particularidades do caso concreto. Como tal, é inidónea para constituir objecto do recurso de constitucionalidade, o que, só por si, é suficiente para indeferir a presente reclamação.
Sem prejuízo, acrescente-se ainda que a reclamante também não suscitou adequadamente, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de constitucionalidade. Pois, como é salientado pelo representante do Ministério Público junto deste Tribunal, o que a reclamante questiona não é um critério normativo que tenha sido aplicado à decisão do caso, mas sim o próprio sentido da decisão, que foi contrário ao entendimento por si defendido.
Conclui-se, assim, que o recurso não pode ser admitido.
5. Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação do despacho que não admitiu o recurso de constitucionalidade.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Lisboa, 17 de Junho de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
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