|
Processo n.º 263/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério Público e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social - Braga, o relator proferiu decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso, nos seguintes termos:
«[…] 2. O presente recurso vem interposto do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9.12.2009, que, negando provimento ao recurso interposto pela arguida A., confirmou integralmente a decisão recorrida que condenou a arguida, pela prática de um crime continuado de abuso de confiança em relação à Segurança Social, p. e p. pelos artigos 30.º do Código Penal, com referência ao artigo 105.º, n.º 5, do RGIT, na pena de 260 dias de multa à taxa diária de 6 euros, perfazendo o total de 1.560 euros; e ainda no pagamento de 31.316,01 euros ao Instituto da Segurança Social.
3. Verifica-se que não estão reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do objecto do recurso, o que justifica a prolação de decisão sumária ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
Na verdade, a recorrente não suscitou atempadamente, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (cfr. artigo 72.º, n.º 2, da LTC). Não o fez nas alegações, e respectivas conclusões, apresentadas no recurso para o Tribunal da Relação do Porto, onde se limita a afirmar que a sentença aí recorrida “fez da norma legal uma interpretação violadora de normas e princípios constitucionais” (cfr. conclusão 36, a fls. 849 dos autos), sem, contudo, enunciar minimamente que interpretação seria essa.
Aliás, a própria recorrente admite, no requerimento de interposição do presente recurso, que só suscitou a alegada questão de constitucionalidade no requerimento que dirigiu ao Tribunal da Relação do Porto (fls. 875/881 dos autos) já depois de ter sido notificada do acórdão de que agora pretende recorrer, ou seja, em momento em que tal já não era possível, uma vez que não se verificava qualquer circunstância excepcional que a tivesse impedido de suscitar a questão antes de o Tribunal ter proferido decisão.
Sem prejuízo, acrescente-se, ainda, que a alegada interpretação normativa que a recorrente reputa inconstitucional não foi adoptada pelo acórdão recorrido, como sua ratio decidendi, como resulta claro da respectiva leitura.
4. Pelo exposto, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, decide-se não conhecer do objecto do recurso.[…]»
2. Notificada da decisão, a recorrente veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, nos seguintes termos:
«[…]1º
A douta decisão sumária proferida a fls. dos autos profícua e sabiamente fundamentada, merece todo o respeito da recorrente.
2º
No entanto, e sempre salvo o devido e merecido respeito, não pode a Recorrente concordar com a douta decisão proferida quanto ao não conhecimento da questão de inconstitucionalidade invocada pela Recorrente no requerimento de interposição de recurso para este Venerando Tribunal.
3º
Invoca o MM.º Juiz Relator que “(…) a recorrente não suscitou atempadamente, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (cfr. artigo 72.° n.º 2, da LTC). (...)”
4º
Todavia, no modesto modo de ver da Recorrente não se verificou, propriamente, uma falta de suscitação de tal questão — como o impõem os citados artigos da Lei do Tribunal constitucional — pois a suscitação da inconstitucionalidade da norma interpretativa exarada na decisão recorrida, a nosso ver, foi realizada de forma instrumental e processualmente adequada.
Vejamos,
5º
No caso “sub judice”, a Recorrente recorreu da decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª Instancia, para o Tribunal da Relação do Porto, lançando mão do exercício, constitucionalmente consagrado, do direito ao Recurso, que cada cidadão e em especial os cidadãos que são partes, como arguidos, num. processo criminal, inalienavelmente têm.
6º
Notificada que foi do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, verificou a Recorrente que, a douta decisão recorrida acabou por ratificar e apropriar-se do normativo interpretativo que foi utilizado pelo tribunal de 1.ª Instância, não se pronunciando sobre as questões invocadas pela Recorrente.
7º
Surpreendida com tal decisão, foi a Recorrente constrangida a apresentar Reclamação daquele Acórdão, invocando o vício de omissão de pronúncia, bem como, a inconstitucionalidade da norma interpretativa exarada na Sentença de l.ª Instancia e adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto.
8º
Ali alegou e invocou, designadamente, que:
(...) Na motivação apresentada pela arguida/recorrente foi razoavelmente explicado que a arguida/recorrente, se opôs ao douto despacho proferido pelo Tribunal de 1ª. Instancia, alegando resumidamente, que a factualidade descrita na acusação pública não foi dirigida à arguida, aqui recorrente, mas antes à “suposta” pessoa colectiva que constava da acusação.
O que, no entendimento da arguida/recorrente, configurou “falta” de “acusação” propriamente dita, que impute à arguida/recorrente os factos de índole criminal - que sempre foram imputados e dirigidos à “suposta” pessoa colectiva — pelos quais foi condenada nos presentes autos.
A respectiva “acusação publica “, do ponto de vista formal, estava estribada no respectivo preceito legal e no princípio de responsabilização criminal de pessoas colectivas e entidades equiparadas.
Ora, constitucionalmente, a acusação pública deduzida pelo M.ºP.º delimita o objecto do processo.
Daí que, o seu conteúdo haverá de manter-se substancialmente igual até ao trânsito em julgado da decisão.
Se o mencionado objecto do processo não contiver a descrição fáctica susceptível de conduzir à aplicação de pena ou medida segurança deve ser rejeitado sendo certo que, nessa sequência, não pode ser objecto de aperfeiçoamento.
As consequências da omissão na acusação da correcta identificação da arguida encontram-se expressamente previstas no Código de Processo Penal - art.º 283.º nº. 3 do C.P.Penal.
Está consagrado no n.º 5 do art.º 32.º da C.R.P.: “O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios subordinados ao princípio do contraditório.”
Esta estrutura do processo penal significa que o seu objecto é fixado pela acusação que delimita a actividade cognitiva e decisória do Tribunal, tendo em vista assegurar as garantias de defesa da arguida, protegendo-a contra a alteração ou alargamento do objecto do processo — “vide gratiae”- Ac. da RL de 10/10/2002, C.J., ano 2002, TOMO IV, pág. 132 —.
Por esse motivo, no que à arguida/recorrente diz directamente respeito passaram a inexistir factos concretos, precisos e discriminados, para continuar a sujeitar a mesma, neste concreto e já há muito delimitado processo criminal, a julgamento.
Estando, assim, perante um caso de ausência de factos directamente imputáveis à arguida, pessoa singular, que gera a inexistência de factualidade bastante imputável à mesma para a invocada comissão/prática do crime de que vinha acusada.
Esta inexistência de factualidade imputável à arguida, pessoa singular, deveria ter obrigado o tribunal “a quo” a declarar, neste raro processo, o arquivamento dos autos.
O que foi, sem êxito, pedido pela arguida/recorrente na respectiva motivação de Recurso apresentada.
Daí que, salvo o devido respeito, o facto de se aceitar que, em violação da “vinculação temática” do Tribunal ao objecto do processo, se proceda à alteração e, ou, aperfeiçoamento da respectiva Acusação publica, em audiência de julgamento, em vez de determinar o arquivamento dos autos, significa que foi criada uma nova norma que arrancando do disposto no art.º 358.° do C.P.P. incorre em flagrante violação dos princípios fundamentais da Constituição e, designadamente dos princípios e dispositivos constitucionais contidos nos art.ºs 2.º, 20.º e 32.º n.º 5 da Constituição.
Pelo que, sempre será de julgar inconstitucional a norma extraída; dos art.ºs 283.º n.º3 e 358.º do C.P.Penal, quando interpretados no sentido de permitir ao Tribunal (julgador), depois de aberta a respectiva audiência de julgamento, reescrever toda a acusação, para que, sejam rectificados e incluídos factos que, relativamente à arguida, pessoa singular, nunca lá estiveram, por violação, entre outros, do princípio Constitucional das mais amplas garantias de defesa, do próprio Principio da “Proibição da indefesa”, do “Acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efectiva” e até do principio da Igualdade consagrados nos art.ºs 2, 20.º, 32.º n.º 5, 202.º e 205.º da Constituição da Republica Portuguesa.
O que pode e se pede seja declarado por V. Exas. Venerando Juízes Desembargadores, em ordem à justa e boa decisão da causa”.
Ou seja,
9º
Salvo o devido e muito merecido respeito, a Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade perante o Tribunal recorrido, na respectiva fase do processo em que foi possível invoca-la — na Reclamação do douto Acórdão — e em momento em que o Tribunal “a quo” dela pudesse tomar conhecimento, isto é, antes de esgotado o poder jurisdicional sobre a matéria em causa.
10º
Tanto assim foi, que o Tribunal “a quo” teve oportunidade de se pronunciar — mesmo que singelamente — sobre a questão invocada pelo Recorrente; em douto despacho proferido aos 7/2/2010.
11º
Naquele douto despacho proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, é exposto o seguinte:
“(…) — Não se vislumbra qualquer violação dos art.ºs 32.º, n.º 5, 2.º, 20.º, 20.º2 e 205.ºtodos da C.R.P.”.
12º
Ou seja, infelizmente, acabou por não se pronunciar de forma POSITIVA e expressa sobre a supra invocada inconstitucionalidade.
13º
Mas, como decorre do que se acha escrito naquele douto despacho, essa questão foi tida em conta e foi entendida como improcedente.
14º
Tudo para dizer que, ao proferir tal entendimento, verifica-se que a “norma” cuja inconstitucionalidade foi suscitada pela recorrente, teve aplicação — foi implicitamente negada — no plano decisório negativo da decisão recorrida.
15º
Em sentido similar do supra propugnado, foi decidido em douto Acórdão, deste venerando Tribunal Constitucional, o seguinte:
“I — A questão da inconstitucionalidade de uma norma só é suscitada durante o processo quando ele é proposta à decisão do tribunal a quo em tempo de este a poder decidir e, bem assim, em termos de ele ficar ciente de que tem de decidi-la — coisa ultima que, naturalmente, exige que possa saber qual a norma ou o segmento da norma cuja compatibilidade com a constituição se questiona -.
II — O modo mais adequado de suscitar a questão da inconstitucionalidade de uma determinada norma jurídica é, naturalmente, identificar o preceito legal que a contém, o diploma legal em que se inscreve e, bem assim, a norma ou principio constitucional que se entende que ela afronta e as razões de um tal entendimento.
III — Se, porém, perante o tribunal “a quo” identifica a norma que se considera inconstitucional apenas pelo seu conteúdo (em vez de indicar a forma que a contem) não há-de, necessariamente, concluir-se que a questão da inconstitucionalidade não foi suscitada durante o processo. Só haverá de concluir-se desse modo se, por via de assim se identificar a norma questionada, o tribunal a quo” não tiver podido saber que a norma se considerava inconstitucional e, assim podido decidir a questão (...)“.
IV — Assim, constatando-se que o tribunal a quo ficou a saber perfeitamente que o recorrente ao afirmar que não eram «conformes à Constituição os diplomas donde decorrem as actualizações que tem sido feitas das pensões por acidentes de trabalho» estava a referir-se ao art. 3.° n.°1 e 2 do D.L. n.º 688/75 de 24/11, há que considerar a questão da inconstitucionalidade destas normas suscitada pelo recorrente durante o processo e, por isso, deixar prosseguir o recurso.” — “vide gratiae” Acórdão n.° 180/90, in BMJ, 398- 548
16º
Por tudo isto, entende a Recorrente que a douta decisão, deverá ser reformada e, ou, alterada por forma a que seja determinada a admissão do recurso interposto no que directamente diz respeito à referida “questão de inconstitucionalidade”, bem como determinada a notificação da recorrente para apresentar neste Tribunal as respectivas alegações, também quanto a essa questão de inconstitucionalidade invocada no requerimento de interposição de Recurso para este Tribunal.
Por outro lado,
17°
Sempre salvo o devido e merecidíssimo respeito pela decisão reclamada, e, de acordo com jurisprudência publicada deste venerando Tribunal, nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade, o que está em causa é a constitucionalidade das normas tais como elas foram interpretadas e aplicadas aos casos submetidos a julgamento — Acórdão do Trib. Cons. de 9 de Novembro de 1990.
18°
Sendo que, o Recurso de Constitucionalidade, embora reportado necessariamente a normas, não exclui a apreciação — e portanto a suscitação — referida à constitucionalidade da interpretação ou sentido com que determinada -norma, vem sendo generalizada e, desse modo, tomada no caso concreto e aplicada na decisão recorrida — Acórdão do Tribunal Constitucional de 29 de Outubro de 1997
NESTES TERMOS E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS. VENERANDOS JUIZES CONSELHEIROS, SE REQUER SEJA DADO PROVIMENTO À PRESENTE RECLAMAÇÃO, REFORMANDO-SE E, OU, REVOGANDO-SE A DOUTA DECISÃO SUMÁRIA QUE NÃO ADMITIU O RECURSO INTERPOSTO, QUANTO À QUESTÃO IDENTIFICADA NO REQUERIMENTO DE INTERPOSIÇÃO DE RECURSO PARA ESTE TRIBUNAL, SUBSTITUINDO-SE, POR UMA OUTRA QUE ADMITA O PROSSEGUIMENTO DO RECURSO NO QUE A ESTA QUESTÃO DIRECTAMENTE CONCERNE, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou a seguinte resposta:
«[…]1º
Na Decisão Sumária de fls. 899 e 900, não se conheceu do recurso quanto à constitucionalidade relacionada com os artigos 283.º, n.º 3 e 358.º, do CPP, com base numa dupla fundamentação:
-não ter sido suscitada, durante o processo e de forma adequada uma questão de inconstitucionalidade normativa;
-a norma não ter sido aplicada na dimensão reputada de inconstitucional pelo recorrente.
2º
Quanto ao primeiro fundamento, é evidente que a recorrente teve oportunidade de, no momento próprio - a motivação do recurso para a Relação do Porto – suscitar a questão, uma vez que a decisão recorrida confirmou a proferida em 1ª Instância nada inovando, neste aspecto.
3.º
Aliás, é a própria recorrente que agora, na reclamação, vem falar de “inconstitucionalidade da norma interpretativa exarada na sentença de 1.ª instância e adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto” (fls. 905).
4.º
Vendo a motivação do recurso para a Relação, parece-nos evidente que aí, embora se refiram preceitos constitucionais, não vem enunciada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, sendo a transcrição levada a cabo na Decisão Sumária elucidativa.
5.º
Quanto ao segundo fundamento, o que diz o acórdão recorrido e é confirmado pela decisão de fls. 887, é que não se vislumbra qualquer violação dos preceitos constitucionais referidos pela recorrente, obviamente na interpretação e aplicação das normas, tal como tinha sido levada a cabo nas instâncias, diferente, portanto, da que vem questionada.
6.º
Sobre este ponto, a confusa argumentação adiantada pela recorrente na reclamação, não faz, pois, muito sentido.
7.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A decisão sumária ora reclamada pronunciou-se pelo não conhecimento do objecto do recurso, interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, com fundamento na não suscitação atempada, perante o tribunal recorrido, de uma questão de constitucionalidade normativa, bem como na não adopção, pela decisão recorrida, da interpretação normativa que a recorrente reputa inconstitucional.
A presente reclamação em nada abala os fundamentos da decisão sumária.
Como bem salienta o Ministério Público, é evidente que a ora reclamante não suscitou atempadamente – ou seja, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação do Porto – a questão de constitucionalidade. Sendo certo que o poderia ter feito, uma vez que, como a própria admite na presente reclamação, estava em causa a “inconstitucionalidade da norma interpretativa exarada na sentença de 1.ª instância e adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto” (artigo 7.º da Reclamação).
A falta de suscitação é, só por si, fundamento suficiente para a improcedência da reclamação.
Não obstante, refira-se, ainda, que é totalmente descabida a afirmação da reclamante de que o acórdão fez aplicação da “norma” cuja inconstitucionalidade foi (tardiamente) suscitada, na medida em que “foi implicitamente negada – no plano decisório negativo da decisão recorrida” (artigo 14.º da reclamação). Na verdade, no despacho de fls. 887, que decidiu o incidente pós-decisório suscitado pela reclamante, o tribunal recorrido limitou-se a afirmar que não vislumbrava qualquer violação de preceitos da Constituição por parte do acórdão questionado.
Pelo que a decisão sumária reclamada é de manter integralmente.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 17 de Junho de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos
|