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Processo n.º 986/09
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
I - Relatório
1. O Presidente da Relação da Guimarães decidiu, em 15 de Outubro de 2009, indeferir a reclamação apresentada por A. e manteve a rejeição do recurso decidida pela juiz de instrução do Tribunal Judicial de Barcelos, na parte em que indeferiu o pedido formulado no requerimento de abertura de instrução para que lhe fosse concedida a suspensão provisória do processo, ao abrigo do disposto nos artigos 281.º e 307.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
No despacho do Presidente da Relação de Guimarães decidiu-se, essencialmente, que com a revisão do Código de Processo Penal, através da Lei n.º 48/2007 de 29 de Agosto, em vigor desde 15 de Setembro de 2007, o legislador quis pôr fim à controvérsia acerca da recorribilidade da decisão instrutória, proibindo o seu recurso. Ora, ainda que restrito à parte que rejeita a suspensão provisória do processo, o recurso não seria compatível com a simplificação e celeridade processual que foi pretendida. Por outro lado, dada a insindicabilidade da decisão instrutória, o recorrente achar-se-ia irreversivelmente pronunciado, pelo que a admissão do recurso se traduziria na prática de acto inútil.
Diz a decisão:
«(…)
O Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos (…), imputando-lhes a prática de crimes de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo art. 105º, de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103º, nº 1 alínea a) e de fraude qualificada, p. e p. pelo art. 104º, nºs 1 e 2, todos da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias - RGIT).
Os aqui Reclamantes (…) apresentaram requerimento conjunto dirigido à Mma juiz de instrução, onde pedem, para além da abertura da instrução – alegando não ser punível criminalmente a factualidade referente ao 4º trimestre de 2004, por ser inferior a € 15.000,00 a indevida dedução de IVA – também a suspensão provisória do processo, ao abrigo do disposto nos arts. 104º do RGIT e 281º, nº 1 do CPP.
A Mma Juiz de Instrução proferiu decisão instrutória em que pronunciou todos os arguidos «pelos factos e enquadramento jurídico constantes da acusação de fls. 709 a 736», que deu como reproduzida, indeferindo, no mesmo despacho, o pedido formulado pelos Reclamantes no sentido da suspensão provisória do processo, por entender que «as circunstâncias concretas do caso, designadamente a ilicitude elevada, patenteada nos valores titulados pelas facturas e a culpa manifestada nos factos atenta a simulação da conduta, não permitir a cabal satisfação das exigências de prevenção geral e especial que o caso reclama».
(…)
Nos termos do artigo 307º, nº 2 do mesmo Código (que versa sobre a decisão instrutória) é correspondentemente aplicável o disposto no art. 281.º, obtida a concordância do Ministério Público, ou seja, é admissível requerer a suspensão provisória do processo no próprio requerimento de abertura de instrução, doutrina aliás já firmada nos Acórdãos do STJ de 13.02.2008 (processo 07P7561 e do TRP de 18.02.2009 (processo 0847495), em www.dgsi.pt.
Destes autos e nomeadamente da decisão instrutória, não consta, todavia, que o Ministério Público se tenha pronunciado favoravelmente (ou desfavoravelmente) pela suspensão provisória do processo, sendo pois de presumir, para os efeitos do nº 2 do art. 307º, que não foi obtida a sua concordância.
(…)
Na situação em apreço, nem o Ministério Público, nem a Juiz de Instrução, se mostraram favoráveis à suspensão provisória do processo, o que, naturalmente, não cabe aqui sindicar, muito embora não se possa deixar de compreender à luz dos factos constantes do libelo acusatório a que já se fez referência.
O objecto da presente reclamação é apenas o de saber se cabe recurso, ou não, da decisão instrutória na parte em que recusou a requerida suspensão provisória do processo, uma vez rejeitado o recurso dela interposto, nessa parte, pelos arguidos ora reclamantes.
Pretendem os arguidos reclamantes que não são incindíveis a decisão instrutória, por um lado, que pronunciou todos os arguidos pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, e a decisão que rejeitou a suspensão provisória do processo, por outro lado, afirmando não poder admitir-se que esta última fosse passível de recurso se proferida no decurso do inquérito e já o não seja em sede de instrução, ou melhor, de despacho de pronúncia.
Com o Acórdão nº 6/2000, do Plenário das Secções Criminais, de 19.01.2000 (publicado no DR série I-A, nº 56, de 07.03.2000), fixou o Supremo Tribunal de Justiça jurisprudência (ainda assim não obrigatória, conforme se estabelecia no art. 445.º, nº 3 do CPP, na redacção que lhe foi dada pela Lei nº 59/98, de 25.08) no sentido da recorribilidade do despacho de pronúncia, na parte em que conheça de nulidades, questões prévias ou incidentais, não obstante o legislador ter vincado, já no art. 2º, nº 2, alíneas 1, 2 e 53 da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86, de 26.09 (cfr. ademais a pág. 11 da Exposição de Motivos da Proposta de Lei nº 109/X), a sua intenção de promover a simplificação e celeridade processual, ao optar pela solução da irrecorribilidade do despacho de pronúncia.
Efectivamente, que sentido faria a recorribilidade do despacho de pronúncia, designadamente na parte em que indefere a arguição de nulidades ou conhece de questões prévias ou incidentais, se essa matéria pode voltar a ser conhecida em sede de audiência de julgamento, de sentença final em 1.ª instância ou até no recurso que desta venha a ser interposto-
A malha normativa do Código de Processo Penal português (CPP), com todo o seu indispensável, mas excessivamente complexo, conteúdo garantístico, não pode consentir numa solução que dê azo a uma constante e sucessiva reiteração de requerimentos e arguições, que acabam por prejudicar os próprios arguidos no que respeita às exigíveis celeridade, simplicidade, transparência e linearidade do processo penal, a não ser que o fim (inconfessável) em vista, por eles, seja a prescrição do procedimento criminal ou a ultrapassagem dos prazos de prisão preventiva, com os graves custos que tal acarreta para a boa imagem e eficiente funcionamento da Justiça e dos Tribunais.
Conhecedor da controvérsia jurídica suscitada na sequência do Acórdão 6/2000 do STJ, veio o legislador mais uma vez (...), agora mais claramente e sem margem para tergiversões, aquando da Revisão do CPP pela Lei nº 48/2007, de 29.08, vigente desde 15.09.2007, consagrar a solução de que «a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias e incidentais», determinando a imediata remessa dos autos ao tribunal competente para o julgamento (actual art. 310º, nº 1 do CPP).
Regressando ao caso concreto que importa decidir, tal como acontece no inquérito, onde o Ministério Público, que é o seu titular, tem o poder vinculado de optar pela dedução da acusação, havendo indícios suficientes da prática do crime, ou pela suspensão provisória do processo, carecendo, neste caso, da concordância do juiz de instrução (art. 281º, nº 1), também em sede de instrução o juiz, ou pronuncia os arguidos ou, verificados os respectivos pressupostos legais e obtida a concordância do Ministério Público, determina a suspensão provisória do processo (art. 307º, nº 2).
Até pela inserção sistemática dos arts. 281º, 282º e 307º, situados imediatamente antes das normas que regulam a acusação (art. 283º) e o despacho de pronúncia (art. 308º), respectivamente, se pode perceber que o que não faria sentido seria o MP acusar, ou o juiz de instrução pronunciar, e só depois, subsequentemente, ainda que na mesma peça processual, determinar a suspensão provisória do processo, o que de modo algum contende com a possibilidade do arguido ou do assistente requererem essa suspensão, faculdade essa introduzida com a revisão operada pela Lei nº 59/98. Deverão é requerê-lo antes da dedução da acusação, ou então, subsequentemente, antes de ser proferido o despacho de pronúncia. Só por isso se justificará, aliás, o alargamento dessa possibilidade à fase da instrução e, já agora, ao próprio processo sumário (art. 384º).
Daí que seja espúria a tese, defendida pelos Reclamantes, acerca da cindibilidade do despacho de pronúncia propriamente dito e da decisão que denega a suspensão provisória do processo, integrada materialmente naquele despacho.
Decidindo-se o juiz de instrução pela pronúncia do arguido, nos precisos termos da acusação formulada pelo Ministério Público, como é aqui o caso, como compatibilizar essa realidade com a suspensão provisória do processo requerida pelos arguidos-
Pronunciados os arguidos nesses termos e sendo essa decisão irrecorrível, mesmo na parte em que aprecia nulidades e outras prévias ou incidentais (art. 310.º, nº 1), como podem aqueles esbracejar ainda com o direito ao recurso na parte em que lhes é negada a suspensão provisória do processo... Será compatível com a estrutura e actual sistemática do processo penal português o recurso da decisão instrutória restrito à parte que rejeita aquela suspensão- E o que aconteceria então ao despacho de pronúncia propriamente dito que, não sendo passível de recurso, poderia ver-se contrariado por decisão posterior, eventualmente da Relação, que deferisse a suspensão do processo- Já basta o que basta. A resposta àquelas duas perguntas só pode ser indubitavelmente negativa.
A resposta positiva levar-nos-ia necessariamente à estranha situação jurisprudencialmente criada, anterior à vigência da Lei nº 48/2007, traindo as amplamente sublinhadas (e reiteradas) intenções do legislador (vide Exposição de Motivos da proposta de Lei nº 109/X e art. 2º, nº 2, ais. 1, 2 e 53 da Lei de Autorização Legislativa nº 43/86, de 26.09) no sentido da promoção da simplificação e celeridade processuais (…).
Não se diga, como alvitram os Reclamantes, que a irrecorribilidade da decisão que nega a suspensão provisória do processo, integrada no despacho que pronuncia os arguidos pelos factos constantes da acusação, viola o princípio do estado de direito, designadamente nas suas vertentes da igualdade, do acesso ao direito e do direito ao recurso.
Convém realçar que, assumindo os direitos e as garantias de defesa do arguido um lugar de primacial importância na jurisprudência do Tribunal Constitucional, não deixa ela de recordar que nenhum direito de defesa é absoluto (Ac. TC 109/99) e que a possibilidade de interposição de recursos – configurando-se o direito ao recurso como um direito de defesa (Acs. TC 375/2000, 371/2000 e 435/2000) – também não pode ser ilimitada, sob pena de um protelamento sem regras e de, consequentemente, se pôr em crise o princípio da celeridade processual, com guarida no art. 20º, nº 4 da Constituição.
Ora determinando a decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento, não deixará esse mesmo arguido de, nessa fase processual subsequente, beneficiar dos direitos e garantias de defesa que com tanta amplitude aí são consagrados, quer nos termos do CPP quer da Constituição, como seja o de contraditar todas as provas e o do próprio direito ao recurso duma eventual decisão condenatória, inclusive na vertente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto [arts. 401º, nº 1, alínea b), 410º e 411º, nº 4 do CPP].
Por outro lado, dada a insindicabilidade da concreta decisão instrutória, por força do estatuído no art. 310º, nº 1, encontrando-se os arguidos, ora reclamantes, já irreversivelmente pronunciados, sempre a admissão do recurso por eles interposto – e rejeitado, e bem, pela Mma Juiz de Instrução – se traduziria na prática de um acto inútil (senão mesmo absurdo), que a lei taxa de proibido (art. 137º do Código de Processo Civil, ex vi do art. 4º do CPP).
(…)
Em face do exposto, nos termos do artigo 405º do CPP, desatende-se a reclamação.
(…)»
2. É desta decisão que A. interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º n.º 1 alínea b) da Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro (LTC), nos seguintes termos:
«(…)
O recurso vem interposto nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 70.º da LTC, sendo que a decisão não admite recurso ordinário (cfr. o art. 70.º n.º 2 da citada Lei).
O recorrente tem legitimidade (cfr. o art. 72.º n.º 1 al. b)), está em tempo (art. 75.º n.º 1) e suscitou a questão de constitucionalidade perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida (cfr. art. 72.º n.º 2 da LTC).
O recurso vem, assim, interposto da interpretação que a decisão recorrida fez das disposições conjugadas dos arts. 281.º n.º 5, 307.º n.º 2, 310.º n.º 1 e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo proferida em instrução quando inserta na decisão instrutória de pronúncia, é inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito nas suas vertentes de igualdade e do acesso ao Direito e do direito ao recurso previstos nos arts. 13.º n.º 1, 20.º, n.º 1, 4 e 5 e 32.º n.º 1 da Constituição.
A sobredita questão de constitucionalidade foi suscitada no requerimento de reclamação para o Exm.º Sr. Presidente da Relação de Guimarães, nos termos do art. 405.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
(…)»
3. O recurso foi admitido. O recorrente alegou e concluiu:
«(…)
1.ª É recorrível a decisão judicial que denega a aplicação ao arguido da suspensão provisória do processo em sede de instrução, ainda que esta se encontre integrada na decisão instrutória proferida que pronuncia o arguido pelos factos e qualificação jurídicas vertidas na acusação.
2.ª De facto, nos termos do disposto no art.º 281.º nº 5 do Código de Processo Penal, sob a epígrafe suspensão provisória do processo, diz-se que a decisão de suspensão, em conformidade com o n.º 1, não é susceptível de impugnação, o que quer dizer a contrario sensu que, de acordo com o princípio geral – art.º 399.º do Código de Processo Penal e 32.º nº 1 da Constituição –, a decisão que denegue a suspensão provisória do processo é passível de recurso.
3.ª Isto porque, o art. 307.º nº 2 do Código de Processo Penal remete para todo o clausulado no art.º 281.º do mesmo Código sem fazer qualquer exclusão, nem sequer fazendo uso da sacramental menção 'com as devidas adaptações'.
4.ª Discutir se se deve ou não aplicar a suspensão provisória do processo nada tem a ver com a consagração legal de uma atípica 'dupla conforme' que se plasmou no art.º 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
5.ª E, por outro lado, o fito da alteração legal ao art. 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal foi o de promover a celeridade processual, tornando inadmissível o recurso da decisão instrutória mesmo quanto ao conhecimento de nulidades, questões prévias e incidentais, e foram precisamente as mesmas razões de celeridade processual que levaram o legislador de 2007 a alargar a aplicabilidade do instituto da suspensão provisória do processo a outros tipos legais não abrangidos (cfr. neste sentido a citada Proposta de Lei).
6.ª Acresce que, a possibilidade de interpor recurso da decisão que denega a suspensão provisória do processo não colide com a decisão de pronúncia do arguido como decorre do entendimento da decisão recorrida, porquanto quando se decide pela suspensão provisória do processo parte-se já do pressuposto de que existem indícios suficientes da prática do crime e da culpa do arguido, exigindo-se, tão-só, para que a aplicação do instituto seja tomada realidade, a ausência de um grau de culpa elevado (cfr. o art. 281.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Penal).
7.ª Não faz qualquer sentido que a decisão que denega a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo seja irrecorrível por integrar a decisão instrutória e se for proferida durante o inquérito já o ser.
8.ª Com efeito, para além do mais, o requerimento do arguido solicitando a aplicação da suspensão provisória do processo não pode ser havida como arguição de nulidade, questão prévia ou incidental, nos termos do disposto no art. 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
9.ª A tudo isto acresce que as alterações introduzidas no art. 281.º do Código de Processo Penal através da Lei 48/07 e a entrada em vigor da Lei da Política Criminal (vigente à data do requerimento de abertura da instrução) – Lei n.º 51/07 de 31 de Agosto – foram, claramente, no sentido de alargar a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo e não no sentido de restringir a sua aplicação, pelo que não faria sentido alargar o âmbito de aplicação do instituto, por um lado, e restringir o direito ao recurso da decisão que denegue a sua aplicação, por outro.
10.ª A decisão instrutória e a decisão que denega a aplicação da suspensão provisória do processo não são incindíveis, pelo que nada impede, como acontece no caso vertente, que existam dois despachos corporizados num só documento e que incidam sobre duas questões distintas, isto apesar de o tribunal a quo ter errado ao decidir o requerimento de suspensão provisória do processo em sede de decisão instrutória, não podendo o recorrente ser prejudicado pelo facto de a decisão que lhe denega a suspensão provisória do processo se encontrar integrada na decisão instrutória.
11.ª Nem se diga em favor da tese da irrecorribilidade de tal decisão que o recorrente sempre poderia ver o processo suspenso provisoriamente na fase processual do julgamento, porquanto essa faculdade não está legalmente prevista.
12.ª Não é aqui de aplicar a jurisprudência recentemente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça – Acórdão 16/09 – no sentido de que “A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 281.º do Código de Processo Penal, não é passível de recurso.”
13.º Isto porque a intervenção do Juiz de Instrução não é de mera 'concordância', nem essa foi a intenção do Tribunal Constitucional ao intervir quanto a esta matéria. O JIC, concordando ou discordando, não exprime uma vontade pessoal, livre, ou incondicionada, antes está vinculado aos pressupostos de natureza material e de política criminal que estão subjacentes à criação do instituto da suspensão provisória do processo. Ele decide (não emite uma opinião ou um parecer, mas sim uma decisão) se estão ou não verificados os pressupostos formais e materiais de aplicabilidade da suspensão, pelo que se trata de um verdadeiro acto decisório do Juiz de Instrução (cfr. o voto de vencido do Exmo. Conselheiro Maia Costa).
14.ª No entanto, independentemente de não se aceitar a jurisprudência fixada pelo S.T.J. nesta matéria, tal jurisprudência não se aplica ao caso sujeito no presente recurso, porquanto o requerimento de suspensão provisória do processo foi da iniciativa do arguido, por um lado, e, por outro, o despacho do Juiz de Instrução nos termos do disposto no art. 307.º nº 2 do Código de Processo Penal não é de mera concordância, porquanto quem tem de dar a sua 'concordância' quando a suspensão provisória do processo é requerida pelo arguido na fase da instrução, é o Ministério Público, pelo que sendo a decisão do Juiz de Instrução que a denega uma decisão formal e materialmente jurisdicional, é recorrível nos termos gerais.
15.ª Sendo o direito a requerer a suspensão provisória do processo, 'um interesse jurídico digno de tutela, ainda que não configurado como um verdadeiro direito subjectivo, a Constituição garante o acesso aos tribunais', garantindo, além do mais, que esse direito se efective através do recurso (cfr. Constituição Portuguesa Anotada de Jorge Miranda e Rui Medeiros, pág. 188).
16.ª As limitações ao direito de recurso estão sujeitas ao princípio da igualdade e da proporcionalidade, pelo que as diferenciações legais não podem ser arbitrárias e as medidas restritivas do direito de recorrer não devem ser excessivas,
17.ª Pelo que, nenhuma razão existe para conceder ao arguido o direito ao recurso que requer, ou a favor do qual o Ministério Público promove, a suspensão provisória do processo na fase de inquérito e negar o direito ao recurso ao arguido que requer a suspensão provisória do processo na fase da instrução, apenas porque a decisão que denega a aplicação de tal instituto se encontra inserta na decisão instrutória.
18.ª Tal interpretação das normas aplicáveis é arbitrária e não coadunável com as razões de política criminal que levaram a que se restringisse o recurso da decisão instrutória, designadamente as de celeridade processual.
19.ª Acresce que, o direito ao recurso e às garantias de defesa do arguido 'não respeitam apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direitos ou possam condicionar a solução definitiva do caso' – cfr. Constituição Portuguesa Anotada, de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 354.
20.ª É, assim, de considerar inconstitucional por violação do princípio do Estado de Direito Democrático, do princípio da igualdade, do princípio da tutela jurisdicional efectiva, do acesso ao Direito e do direito ao recurso (cfr. art.s 2º, 13º nº 1, 20º nº 1, 4 e 5 e 32º nº 1) a interpretação que a decisão recorrida extraiu das disposições conjugadas dos artºs 281º nº 5, 307º nº 2, 310º nº 1 e 399º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo proferida em instrução quando inserta na decisão instrutória de pronúncia.
(…)»
4. O Ministério Público concluiu a sua contra-alegação do seguinte modo:
«(…)
1 - O recorrente foi pronunciado por todos os factos constantes da acusação do Ministério Público, entre os quais se incluindo, portanto, aquele em relação ao qual requerera a suspensão provisória do processo.
2 - Sendo aquela decisão incindível e não vindo questionada a constitucionalidade quer dessa incindibilidade quer da norma do nº 1 do artigo 310º do CPP enquanto determina a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, o juízo que o Tribunal Constitucional viesse a formular sobre a constitucionalidade da norma objecto de recurso, não teria qualquer influência na decisão recorrida.
3 - Isto porque, a admissão do recurso, como consequência da eventual inconstitucionalidade da norma, traduzir-se-ia, como se diz na decisão recorrida, “na prática de um acto inútil ou mesmo absurdo”.
4 - Atenta a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade, não deverá, pois, conhecer-se do objecto do presente recurso.
5- O Tribunal Constitucional, numa jurisprudência uniforme, tem entendido que a norma do nº 1 do artigo 310º do CPP, enquanto determina a irrecorribilidade de decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes de acusação do Ministério Público, não viola o direito ao recurso consagrado no artigo 32º, nº 1, da Constituição.
6 - Este entendimento jurisprudencial é perfeitamente transponível para as decisões que, não havendo concordância do Ministério Público, negam o pedido de suspensão provisória do processo, quando proferidas no despacho que pronuncia o arguido pelos factos constantes de acusação do Ministério Público.
7 - O facto de, no inquérito, a decisão do Juiz de Instrução de não concordar com a aplicação daquela medida ser recorrível, não viola o princípio de igualdade, porque são necessariamente diferentes, as circunstâncias em que tal decisão é proferida.
8 - Na verdade, naquela fase processual, a discordância do Juiz de Instrução incide sobre a decisão do Ministério Público – que, como titular da acção penal e dominus do inquérito, detém um papel fundamental e decisivo na aplicação da medida - que determinou a suspensão provisória do processo, e que pressupõe a existência de um entendimento com os restantes sujeitos processuais (artigo 281º, nº 1, alínea a) do CPP).
(…)»
II – Fundamentação
5. Impõe-se, em primeiro lugar, apreciar a questão da utilidade do recurso, levantada pelo Ministério Público, nos seguintes termos: sendo incindível a decisão instrutória e não estando questionada a norma que tal determina, ou a norma do n.º 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal (que impõe a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público), o juízo que o Tribunal Constitucional vier a formular não terá qualquer influência na decisão recorrida, por se ter entretanto alcançado uma fase processual em que é já legalmente inviável determinar a suspensão do processo.
O Tribunal Constitucional tem, na verdade, afirmado reiteradamente o carácter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta, exigindo interesse processual em apreciar a questão de inconstitucionalidade; o eventual julgamento de inconstitucionalidade deve ser susceptível de se repercutir, de forma útil e eficaz, na decisão recorrida, de modo a alterar, no todo ou em parte, a solução jurídica do caso concreto, e implicando a sua reponderação pelo tribunal a quo. Em consequência, não terá utilidade o julgamento do recurso quando a solução a dar pelo Tribunal Constitucional à questão de constitucionalidade, seu objecto, for insusceptível de influir na solução dada ao caso concreto.
No caso em apreço, apura-se que a decisão da Relação de Guimarães, que confirmou a decisão de rejeição de recurso, conclui que, por força do disposto no artigo 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal, não é passível de recurso a decisão que denega o pedido de suspensão provisória do processo quando proferida no despacho que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público. Ou seja, seria irrecorrível a decisão impugnada por ter sido proferida no despacho de pronúncia.
Ora, é exactamente tal entendimento que o recorrente questiona. E, por isso, pede que seja julgada inconstitucional, por violação do princípio do Estado de Direito Democrático, do princípio da igualdade, do princípio da tutela jurisdicional efectiva, da garantia de acesso ao Direito e ao recurso (artigos 2.º, 13.º n.º 1, 20.º, n.º 1, 4 e 5 e 32.º n.º 1 CR) a interpretação que se extrai das disposições conjugadas dos artigos 281.º n.º 5, 307.º n.º 2, 310.º n.º 1 e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo proferida em instrução quando inserta na decisão instrutória de pronúncia.
É certo que o pedido deve ser formulado de forma certa, clara, e congruente. Mas quando se pede a fiscalização da norma que impõe a irrecorribilidade da decisão denegatória da suspensão provisória do processo, por estar inserta na decisão instrutória, o pedido, do ponto de vista substancial, comporta necessariamente a questão da conformidade constitucional dessa incindibilidade.
Não procede, por isso, a questão.
6. Importa ainda analisar uma outra causa de eventual não conhecimento do objecto do recurso que se retira da peça processual do Ministério Público.
Não consta dos autos que tivesse sido obtida a concordância do Ministério Público, no tribunal a quo, para aplicação do instituto de suspensão provisória do processo.
E a decisão recorrida não deixa de o recordar ao dizer: «(…) Na situação em apreço, nem o Ministério Público, nem a Juiz de Instrução, se mostraram favoráveis à suspensão provisória do processo, o que, naturalmente, não cabe aqui sindicar, muito embora não se possa deixar de compreender à luz dos factos constantes do libelo acusatório a que já se fez referência.(…)».
Mas a mesma decisão reduziu o objecto da reclamação à questão «de saber se cabe recurso, ou não, da decisão instrutória na parte em que recusou a requerida suspensão provisória do processo, uma vez rejeitado o recurso dela interposto, nessa parte, pelos arguidos ora reclamantes (…)». É, assim, certo que a ratio decidendi desta decisão se centrou na irrecorribilidade do despacho de pronúncia, que não invalidaria as garantias de defesa consagradas no Código de Processo Penal e na Constituição, considerando ainda, por força do estatuído no artigo 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal, que os arguidos já estariam irreversivelmente pronunciados, razão pela qual a admissão do recurso se traduziria na prática de um acto inútil.
O eventual juízo de inconstitucionalidade levará a Relação de Guimarães a reformar a sua decisão e a admitir o recurso, não estando por isso excluída a eventualidade de o Ministério Público poder vir a dar a sua concordância à aplicação de suspensão provisória do processo.
O pedido conserva, por isso, plena utilidade.
7. Impõe-se agora precisar o objecto do presente recurso, questão que, igualmente, o Ministério Público suscita na sua alegação ao apontar para a não coincidência da norma impugnada com aquela que foi efectivamente aplicada.
O recorrente coloca em crise a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 281.º n.º 5, 307.º n.º 2, 310.º n.º 1 e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo proferida em instrução quando inserta na decisão instrutória de pronúncia por factos constantes da acusação do Ministério Público, enquanto que o Ministério Público sustenta que a decisão recorrida entendeu que, por força do disposto no artigo 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal, não é passível de recurso a decisão que denega o pedido de suspensão provisória do processo quando proferida no despacho que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º do Código de Processo Penal.
Conforme jurisprudência consolidada deste Tribunal, apenas pode conhecer-se das normas que hajam sido efectivamente aplicadas por parte do tribunal a quo. Mas a verdade é que da análise da fundamentação da decisão recorrida, resulta que a questão apreciada se cinge à interpretação das disposições conjugadas dos artigos 281.º n.º 5, 307.º n.º 2, 310.º n.º 1 e 399.° do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, proferida em instrução, quando inserta na decisão instrutória de pronúncia, pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º do Código de Processo Penal, norma que coincide no essencial com a formulação enunciada pelo recorrente.
8. A Constituição garante a todos “o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos” (artigo 20.º, n.º 1) afirmando, em matéria penal, que 'o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo, o recurso' (artigo 32.º, n.º 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o recurso quanto a todas as decisões proferidas em processo penal. A garantia do recurso é inequívoca quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Como se escreveu no Acórdão n.º 31/87 do Tribunal Constitucional:
«(...) se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido. (…) Ora, a salvaguarda desse direito de defesa impõe seguramente que se consagre a faculdade de recorrer da sentença condenatória, como se determina, aliás, de forma expressa no nº 5 do artigo 14º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, aprovado para ratificação pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho: «Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei»; como imporá, também, que a lei preveja o recurso dos actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Mas já não impõe que se possibilite o recurso de todo e qualquer acto do juiz (…)».
No mesmo sentido, pode ver-se o Acórdão nº 178/88, in AcTC, vol. 12º, págs. 569 e seguintes, e ainda os n.ºs 216/99, in DR, 2ª Série, de 6 de Agosto de 1999, 471/2000, 30/2001, in DR, 2ª Série, de 23 de Março de 2001, e 463/2002 [os acórdãos do Tribunal citados sem identificação do local da publicação podem ser consultados em www.tribunalconstitucional.pt.].
A faculdade de recorrer em processo penal constitui expressão das garantias constitucionais de defesa que impõem o recurso de sentenças condenatórias ou de actos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais. Todavia, sempre se aceitou que a Constituição não impõe a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal. Não o impunha antes, nem depois, da revisão de 1997, onde o segmento aditado ao artigo 32.º, n.º 1, explicita, afinal, o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia estar compreendido nas 'garantias de defesa em processo penal' (Acórdão n.º 300/98).
Em suma, o 'direito de recurso', como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das 'garantias de defesa' – só e quando estas garantias o exijam – o que, pelas apontadas razões, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia (veja-se também neste sentido o já citado Acórdão n.º 30/2001).
9. A suspensão provisória do processo, prevista no artigo 281.º do Código de Processo Penal, foi introduzida no ordenamento jurídico português pelo Código de Processo Penal de 1987, constituindo uma excepção ao dever de o Ministério Público deduzir acusação sempre que tenha indícios suficientes de que certa pessoa foi o autor de um crime (artigo 283.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). O princípio da legalidade na promoção do processo penal deixou de ser comandado por uma ideia de igualdade formal, para ser norteado pelas preocupações político-criminais do sistema penal assentes na ideia de que a intervenção penal visa a protecção de bens jurídicos e a ressocialização do delinquente. Do ponto de vista substantivo, é um dos casos de introdução de medidas de diversão e consenso na solução do conflito penal relativamente a situações de pequena e média criminalidade, para cuja consagração concorrem tanto razões de funcionalidade do sistema de justiça penal (desobstrução da máquina judicial e promoção da economia e celeridade processuais, com isso se fortalecendo globalmente a crença na efectividade dos mecanismos de reacção penal, com o que simultaneamente se realiza o objectivo de prevenção), como de prossecução imediata de objectivos do programa político-criminal substantivo (evitar a estigmatização e o efeito dessocializador, ligados à submissão a julgamento, relativamente a delinquentes ocasionais com prognóstico favorável, o que se insere no princípio de redução da aplicação das sanções criminais ao mínimo indispensável).
Trata-se de um instituto a utilizar sempre que as exigências de prevenção não justifiquem os custos do prosseguimento formal típico para os propósitos político-criminais da intervenção mínima, da não-estigmatização do agente, do consenso e da economia processual.
As injunções e regras de conduta não revestem a natureza jurídica de penas, embora se consubstanciem em medidas funcionalmente equivalentes, tratando-se de sanção a que não está ligada a censura ético-jurídica da pena nem a correspondente comprovação da culpa. Sobre a matéria já o Tribunal se pronunciou nos Acórdãos n.ºs 67/2006, 116/2006, 144/2006).
Aquando da revisão do Código de Processo Penal, o argumento literal resultante da alteração da redacção dos artigos 281º do Código de Processo Penal e os trabalhos preparatórios (Acta nº. 22 da Unidade de Missão para a Reforma Penal), fazem concluir que as alterações a introduzir em sede de processos especiais têm o objectivo de reforçar a aplicabilidade deste tipo de processos para promover uma realização célere da justiça e uma rápida reposição da paz jurídica. “(...) No âmbito da suspensão provisória do processo são introduzidas diversas alterações com vista ao aumento da aplicação deste regime, destacando-se a eliminação do carácter facultativo da sua utilização pelo Ministério Público, ao qual é determinado que aplique a suspensão, com a concordância dos restantes sujeitos processuais e do juiz, desde que estejam preenchidos os respectivos requisitos.
Assim, nem as injunções e regras de conduta são penas, nem a suspensão provisória do processo é um despacho condenatório ou assente num desígnio de censura ético-jurídica, mas através do qual o arguido aceita respeitar determinadas injunções, e regras de conduta, e o Ministério Público se compromete a, caso elas sejam cumpridas, desistir da pretensão punitiva e a arquivar o processo.
A decisão de suspensão, no âmbito do inquérito, é da responsabilidade do Ministério Público, condicionada à concordância do juiz de instrução criminal e, no âmbito da instrução, da responsabilidade do juiz de instrução criminal, condicionada à concordância do Ministério Público. Entende-se, por isso, a razão que conduziu o legislador a impor que essa decisão não seja susceptível de impugnação.
Mas, no presente recurso, está em causa a questão contrária. isto é, a decisão que negou a suspensão. Ora, as razões da irrecorribilidade mantêm-se escoradas em iguais considerações. Não pode esquecer-se que o legislador não desconhece a tramitação a que condicionou a decisão de suspensão provisória do processo, determinando, no artigo 307.º do Código de Processo Penal (sob a epígrafe decisão instrutória), que encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou não pronúncia, ditado para a acta, (podendo ser proferido no prazo de dez dias quando a complexidade da causa em instrução o aconselhar). Intercalou-se entre a regra e a excepção da leitura da decisão instrutória, a possibilidade de aplicação do artigo 281.º do Código de Processo Penal.
Ora, não havendo recurso da decisão de não concordância do Ministério Público acerca da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, não faria sentido possibilitar o recurso da decisão de não aplicação do mesmo pelo juiz de instrução criminal e fazer depender da concordância do Ministério Público a aplicação da medida.
Diga-se, ainda, que a situação não é exactamente a mesma, ao contrário do que sustenta o recorrente, quando o juiz de instrução criminal não concorda com a posição do Ministério Público em inquérito porque, nessa fase, é o Ministério Público o dominus do processo. No presente caso, já depois do Ministério Público não ter optado pela aplicação desse instituto (opção essa que não pode ser discricionária mas antes vinculada aos requisitos legais), foi o juiz de instrução criminal que entendeu não aplicar tal instituto.
Também no caso da eventual aplicação da suspensão provisória do processo, o Ministério Público e o juiz concluíram, ambos, pela não aplicação de tal instituto.
A razão de ser da solução legal é idêntica à da irrecorribilidade de despachos que decidam questões prévias ou incidentais constantes da decisão instrutória, tratada no já citado Acórdão n.º 216/99 que decidiu não julgar inconstitucional a interpretação dada ao artigo 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal, respeitante à matéria versada no artigo 308.º n.º 3 do mesmo Código, por considerar que não existe violação dos artigos 20.º e 32.º n.º 1 da Constituição.
Pondera-se, nesse Acórdão:
«O recorrente questiona a constitucionalidade da interpretação dos artigos 310º, nº 1, e 308º, nº 3, do Código de Processo Penal, adoptada na decisão recorrida, de que resulta a irrecorribilidade das decisões sobre questões prévias ou incidentais constantes do despacho de pronúncia.
Na perspectiva do recorrente, a irrecorribilidade consagrada no artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal refere-se tão somente à parte da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público e não aos despachos que decidam questões prévias ou incidentais de que se possa conhecer. A estes despachos deveria reconhecer-se autonomia, de modo a permitir a sua recorribilidade.
(…)
A fase da instrução – facultativa, no nosso actual sistema de processo penal (cfr. artigo 286º, nº 2, do Código de Processo Penal) –, visa permitir a reapreciação dos factos recolhidos na fase do inquérito, juntando-lhes eventualmente outros que surjam posteriormente, de modo a possibilitar um juízo de pronúncia (que fixará o objecto do processo na fase ulterior e final que se seguirá, o julgamento), ou de não pronúncia (que porá fim ao processo).
Nesta fase, o juiz, partindo dos dados recolhidos na fase do inquérito, tem a possibilidade de, a pedido das partes ou através dos seus poderes inquisitórios, ordenar as diligências necessárias ao esclarecimento da verdade material (artigos 287º, nº 3, e 288º, nº 4, e 290º e seguintes do Código de Processo Penal), acumulando assim mais elementos que lhe permitam formar uma convicção séria sobre a existência de indícios suficientes da prática da infracção; é assim razoável que o juiz condense na decisão instrutória os elementos até aí carreados para o processo, emitindo a partir da sua análise um juízo sobre o preenchimento dos elementos subjectivo e objectivo do tipo de crime de que o arguido vem acusado.
Por isso se compreende a articulação entre os nºs 1 e 3 do artigo 308º do Código de Processo Penal: 'se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos [...]' (nº 1), sendo certo que, neste despacho, 'o juiz começa por decidir todas as questões prévias ou incidentais de que possa conhecer' (nº 3). O juiz tem que estabelecer os pressupostos da sua decisão, lógica e cronologicamente (…).
Esta condensação em tudo concorre para a salvaguarda das garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição) e de celeridade, aconselhável nos processos em geral e especialmente exigível em processo penal (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Não há lugar a qualquer fraccionamento da apreciação dos dados já recolhidos – que poderia conduzir a uma dispersão nociva ao apuramento da verdade material –, nem a um arrastar do processo, que seria forçoso caso o juiz tivesse que decidir primeiro as questões incidentais, abrindo-se prazo de recurso.
Na opinião do recorrente, esta condensação, no despacho instrutório, da decisão de questões prévias (por exemplo, sobre a admissibilidade de certas provas) e da decisão final (de pronúncia ou não pronúncia), na medida em que, por força do artigo 310º, nº 1, é irrecorrível, seria inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.
Mas então coloca-se a seguinte alternativa:
ou se sustenta a existência de um despacho autónomo para decisão destas questões, que a lei não contempla e que o Tribunal Constitucional não poderá criar – estaríamos, nesta primeira hipótese, perante uma lacuna do sistema, a que o recurso de constitucionalidade não pode dar cobertura;
ou se pretende que o despacho de instrução, na parte em que decida questões incidentais, não gozando de autonomia formal relativamente à decisão instrutória, alcance autonomia material que justifique a sua eventual revisibilidade, em sede de recurso.
(…)
Importa averiguar se constitucionalmente se impõe uma interpretação dessas normas de que resulte a admissibilidade de recurso da parte do despacho instrutório (que não alargue o objecto do processo para além dos factos constantes da acusação do Ministério Público) que decida questões incidentais, em atenção a valores tais como o acesso à justiça, na vertente do direito a um duplo grau de jurisdição, e a plenitude das garantias de defesa em processo penal.
A procedência da pretensão do recorrente – e do presente recurso – depende da resposta a dar a esta interrogação.
(…) O problema da conformidade constitucional do artigo 310º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, em face dos princípios do duplo grau de jurisdição e da plenitude das garantias de defesa, foi já por diversas vezes abordado pelo Tribunal Constitucional, no que respeita à recorribilidade do despacho instrutório na parte em que pronuncia o arguido, tendo o Tribunal concluído no sentido da não inconstitucionalidade.
Entende-se que as razões então aduzidas são transponíveis para a questão agora em discussão.
(…) Começando por confrontar o artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal com o artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e com o direito, que o recorrente invoca, a um duplo grau de jurisdição, remete-se para a doutrina do acórdão nº 265/94 (in Diário da República, II, de 19 de Julho de 1994, p. 7239 ss):
'A Constituição da República não estabelece em nenhuma das suas normas a garantia de existência de um duplo grau de jurisdição para todos os processos das diferentes espécies.
É certo que a Constituição garante a todos o «acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interessas legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos» (artigo 20º, nº 1) e, em matéria penal, afirma que «o processo criminal assegurará todas as garantias de defesa» (artigo 32º, nº 1). Destas normas, porém, não retira a jurisprudência do Tribunal Constitucional a regra de que há-de ser assegurado o duplo grau de jurisdição quanto a todas as decisões proferidas em processo penal.
A garantia do duplo grau de jurisdição existe quanto às decisões penais condenatórias e ainda quanto às decisões penais respeitantes à situação do arguido face à privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais.
Sendo embora a faculdade de recorrer em processo penal uma tradução da expressão do direito de defesa (veja-se, nesse sentido, o Acórdão nº 8/87 do Tribunal Constitucional, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., p. 235), a verdade é que como se escreveu no Acórdão nº 31/87 do mesmo tribunal, «se há-de admitir que essa faculdade de recorrer seja restringida ou limitada em certas fases do processo e que, relativamente a certos actos do juiz, possa mesmo não existir, desde que, dessa forma, se não atinja o conteúdo essencial dessa mesma faculdade, ou seja, o direito de defesa do arguido».'
(…) A lei assegura, como lhe compete para dar cumprimento aos objectivos constitucionais, que o arguido tenha possibilidade de recorrer de uma decisão condenatória. Multiplicar as possibilidades de recurso ao longo do processo seria comprometer outro imperativo constitucional: o da celeridade na resolução dos processos-crime (artigo 32º, nº 2, in fine, da Constituição da República Portuguesa). Ou seja, entre assegurar sempre o duplo grau de jurisdição, arrastando interminavelmente o processo, e permitir apenas o recurso das decisões condenatórias, permitindo uma melhor fluência do processo, o legislador optou decididamente pela segunda via.
Esta opção foi aliás confirmada pela revisão constitucional de 1997, que aditou ao nº 1 do artigo 32º o segmento 'incluindo o recurso'. Como se escreveu no acórdão nº 101/98 (inédito) deste Tribunal, a intenção do legislador constituinte não foi 'significar que haveria de ser consagrada, sob pena de inconstitucionalidade, a recorribilidade de todas as decisões jurisdicionais proferidas em processo criminal, mas sim que do elenco das garantias de defesa que tal processo há-de assegurar se contará a possibilidade de impugnação das decisões judiciais de conteúdo condenatório, na esteira do que já era entendido pela jurisprudência deste órgão de fiscalização' (veja-se também, no mesmo sentido, o acórdão nº 299/98, inédito). O arguido pode sempre, pois, recorrer da decisão condenatória que lhe seja dirigida, e aí contestar todos os vícios que derivem de uma má apreciação de qualquer questão interlocutória.
(…) Quanto à compatibilidade entre a solução do artigo 310º, nº 1, do Código de Processo Penal, com o princípio da plenitude das garantias de defesa, mais uma vez em equação se colocam os princípios da celeridade e da protecção dos direitos do arguido. Afirmou-se, a este propósito, no acórdão nº 610/96 do Tribunal Constitucional (in Diário da República, II, de 6 de Julho de 1996, p. 9117 s):
'[...] o que se questiona no presente recurso é se o desígnio de celeridade, que é consagrado constitucionalmente, legitima a irrecorribilidade de certas decisões instrutórias: justamente os despachos de pronúncia que não alteram os factos constantes da acusação do Ministério Público. E a resposta a esta questão indica que a celeridade não só é compatível com as garantias de defesa, podendo coincidir com os fins de presunção de inocência, como é instrumental dos valores últimos do processo penal – a descoberta da verdade e a justa decisão da causa –, próprios de um Estado democrático de direito.
Apenas é irrecorrível, portanto, a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Ora, este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominus do inquérito, e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa da pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido [...].'
(…) Conclui-se, assim, que não existe na interpretação dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa aos artigos 310º, nº 1, e 308º, nº 3, do Código de Processo Penal qualquer violação do princípio da plenitude das garantias de defesa constitucionalmente consagrado.
A irrecorribilidade da parte do despacho de pronúncia que decide questões prévias ou incidentais não é portanto contrária à Constituição da República Portuguesa. (…)».
Idêntica solução adoptou o Tribunal no Acórdão n.º 387/99, cuja fundamentação é igualmente transponível para o presente caso. Para além do mais, a jurisprudência do Tribunal tem devidamente sublinhado que se está perante uma situação diversa daquela a que se reporta a sentença penal, visto que, ao menos quando se trate de uma decisão judicial de pronúncia, esta não pode ser deixada de ser considerada como um mero juízo indiciário, provisório, cujo conteúdo não tem carácter condenatório.
Não pode, pois, entender-se como contrário à Constituição a interpretação efectuada pela decisão recorrida da norma contida no artigos 281.º n.º 5, 307.º n.º 2, 310.º n.º 1 e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo proferida em instrução quando inserta na decisão instrutória de pronúncia.
Deve o recurso interposto ser, por isso, julgado improcedente.
III - Decisão
10. Assim, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a interpretação das disposições conjugadas dos artigos 281.º n.º 5, 307.º n.º 2, 310.º n.º 1 e 399.º do Código de Processo Penal no sentido de que é irrecorrível a decisão de denegação da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo quando inserta na decisão instrutória de pronúncia;
b) Julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em_25 UC.
Lisboa, 16 de Junho de 2010
Carlos Pamplona de Oliveira
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos termos da declaração de voto junta.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti do presente acórdão essencialmente por não poder fazer decorrer a conformidade constitucional da irrecorribilidade de uma decisão (que em princípio não poderia deixar de ser considerada como recorrível, face às consequências que tem para a situação do arguido) da sua mera inserção num acto processual (a decisão instrutória de pronúncia) ele próprio irrecorrível. Na verdade, as razões que tornam constitucionalmente aceitável a irrecorribilidade deste acto em certas circunstâncias (a existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo, pelo Ministério Público e pelo juiz de instrução) não se comunicam à decisão relativa à suspensão provisória do processo, que nele possa vir a ser inserida.
Independentemente do acerto da qualificação desta decisão como uma decisão sobre uma questão prévia para o efeito de a sujeitar à norma do artigo 310º, nº 1, do CPP, o certo é que a questão da suspensão provisória do processo sempre se distingue das demais questões prévias a que se refere este preceito por, ao contrário do que com estas em princípio sucede, não poder voltar a ser colocada ao tribunal no âmbito do processo, que se encontra constitucionalmente obrigado a assegurar ao arguido todas as garantias de defesa.
Rui Manuel Moura Ramos
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