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Processo n.º 279/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, foram interpostos dois recursos de constitucionalidade ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
No primeiro, é recorrente o Ministério Público e recorrido A., e, no segundo, é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, ambos para apreciação da mesma questão, assim enunciada:
apreciação da constitucionalidade da norma do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (na versão original) correspondente à norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), após a revisão de 1995 (operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), interpretada em termos de a pendência de recurso para o Tribunal Constitucional constituir causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, prevista no segmento normativo «sentença a proferir por tribunal não penal».
2. Dos autos emergem os seguintes elementos, relevantes para a presente decisão:
- A. foi, por sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, condenado pela prática de um crime de participação económica em negócio, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos e em 65 dias de multa, no montante total de €1.040.
- No decurso do processo, o arguido interpôs dois recursos para o Tribunal Constitucional (excluindo o presente recurso), em 3.5.2002 e 31.3.2005, tendo, em consequência, os autos estado pendentes de decisão neste Tribunal.
- Ainda inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença condenatória para o Tribunal da Relação de Coimbra, invocando, designadamente a prescrição do procedimento criminal.
- Por acórdão de 23.4.2008, o Tribunal da Relação de Coimbra, declarou extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido A., pelo decurso do prazo de prescrição previsto no artigo 117.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal vigente à data da prática dos factos. A fundamentação deste acórdão assentou, além do mais, na consideração de que o Tribunal Constitucional não pode ser considerado um “tribunal não penal” para efeitos do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1992 (120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1995). E que a ser assim «e porque entre o período que transcorreu entre 12 de Janeiro de 1998 e 12 de Janeiro de 2008 – período de dez (10) anos exigidos pela lei para que opere a prescrição do tipo de crime pelo qual o arguido se encontra acusado – não ocorreu qualquer período de suspensão, haver-se-á de ter por prescrito o crime pelo qual ao arguido foi condenado».
- Deste acórdão foi interposto, pelo magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, invocando-se, além do mais, que a decisão da Relação era contrária ao acórdão do STJ de 21.03.2001 (acórdão fundamento), no que respeita à questão de saber se o Tribunal Constitucional deve ser considerado “tribunal não penal” para efeitos da suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, prevista no citado preceito do Código Penal.
- O recurso para uniformização de jurisprudência foi decidido por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.03.2009, que, com 6 votos de vencido, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«A pendência de recurso para o Tribunal Constitucional constitui causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal prevista no segmento normativo “dependência de sentença a proferir por tribunal não penal”, da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal de 1982, versão original, ou da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal de 1982, revisão de 1995».
- É deste acórdão que vêem interpostos os presentes recursos.
3. Após convite ao aperfeiçoamento do requerimento de recurso do recorrente particular, foram as partes convidadas a alegar em ambos os recursos.
4. No recurso interposto pelo Ministério Público, o Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1) o Acórdão, em apreciação, do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Março de 2009, que veio fixar jurisprudência relativamente ao art. 120 nº 1 alínea a) do Código Penal (revisão de 1995), assenta numa visão orgânica sobre a natureza do Tribunal Constitucional, parcelar e redutora;
2) o Acórdão recorrido qualificou indevidamente a natureza do Tribunal Constitucional e, consequentemente, interpretou, igualmente de forma indevida, a qualidade funcional e processual em que o mesmo Tribunal intervém nos processos de recurso que lhe são submetidas pelas diversas jurisdições nacionais;
3) não importa, tanto, com efeito, a análise organizacional sobre a posição do TC, relativamente aos tribunais da organização judiciária, mas sim a posição funcional e processual, do mesmo TC, na decisão das questões que lhe são submetidas para apreciação (cfr., a este propósito, infra, conclusões nºs 9 e segs.);
4) o procedimento criminal traduz a afirmação instrumental do jus puniendi do Estado, definindo as condições de início e de desencadeamento da acção penal, enquanto modo de realização, afirmação e concretização do direito penal;
5) o processo, esse, constitui instrumentalmente a forma e o espaço de tornar efectivo o procedimento; o processo penal é, formalmente, o espaço de garantia para a efectivação do procedimento criminal, segundo regras predeterminadas, formuladas no respeito por princípios estruturantes – como as garantias de defesa -, incluindo, por isso, no seu âmbito, a matéria do recurso;
6) num sistema como o português, a fiscalização concreta e difusa da constitucionalidade é desconcentrada e pertence, desde logo, a todos os tribunais (nessa medida, todos os juízes são, potencialmente, juízes constitucionais);
7) não pode, nessa medida, o juiz nacional eximir-se a não decidir em matéria de inconstitucionalidade, designadamente deferindo a apreciação da questão a outro tribunal – tem de decidir e, quando o faz, age com competência própria, autónoma, primária e inalienável;
8) fá-lo, no entanto, no próprio processo em que a questão de constitucionalidade é suscitada, ou seja, um tribunal penal, por exemplo, aprecia essa questão no processo penal em curso;
9) muito embora não seja um tribunal judicial penal, em termos de organização da hierarquia dos tribunais judiciais, o Tribunal Constitucional integra-se no conjunto dos tribunais nacionais, exercendo, em conjunto com eles, a função jurisdicional;
10) o TC intervém como instância de recurso das decisões de outros tribunais, sendo sempre necessária, por isso, a intermediação de um outro tribunal; para o efeito, o TC intervém no quadro de um concreto recurso de constitucionalidade e age no âmbito do próprio processo em que o recurso é suscitado;
11) com efeito, nos casos de fiscalização concreta, a questão de constitucionalidade apresenta-se como uma questão incidental da questão principal (por exemplo de natureza criminal), não se autonomizando desta; permanece, nessa medida, delimitada pelo caso concreto em que surgiu, pelo que os efeitos das decisões do TC são limitados, compreensivelmente, ao caso concreto, apenas neste fazendo caso julgado;
12) o recurso para o Tribunal Constitucional, ao ter lugar no quadro da instância processual penal, carece de ser apreciado sob o ângulo das garantias de defesa em processo penal, previstas no art. 32º nº 1 da Constituição;
13) ao decidir um recurso de constitucionalidade num processo criminal, em que não há autonomia entre a questão criminal subjacente e a questão de constitucionalidade suscitada, o TC age, para todos os efeitos, como um tribunal criminal;
14) o recurso de decisões judiciais, para o Tribunal Constitucional, não deve constituir, pois, causa de suspensão de prescrição do procedimento criminal, ao abrigo do segundo segmento normativo previsto na alínea a) do nº 1 do artigo 120º do CP, uma vez que a decisão do TC não deve ser considerada, para este efeito, como uma sentença proferida “por tribunal não penal”;
15) por esse motivo, o Acórdão recorrido do STJ, de 12 de Março de 2009, ao interpretar, da forma como o fez, o disposto na alínea a) do nº 1 do art. 120 do Código Penal de 1982 (revisão de 1995) - disposição essa relativa às causas de suspensão da prescrição do procedimento criminal -, ampliou inovatoriamente a tipologia das causas de suspensão nela previstas;
16) afigura-se materialmente inconstitucional, por ofensa aos princípios da proporcionalidade e das garantias de defesa, a interpretação normativa que – sem qualquer limite temporal – amplie os prazos de prescrição do procedimento criminal, como consequência de os mesmos se suspenderem enquanto estiverem pendentes, perante o Tribunal Constitucional, recursos de constitucionalidade;
17) abre-se, com efeito, por esta via, a possibilidade de suspensão da prescrição do procedimento criminal por tempo ilimitado, com a consequente ampliação eventual do prazo máximo de prescrição do procedimento criminal, previsto no art. 121 nº 3 do Código Penal (revisão de 1995)
18) afigura-se, igualmente, como materialmente inconstitucional, por violação do art. 280 da Constituição, a interpretação da norma constante do art. 120 nº 1 alínea a) do Código Penal (revisão de 1995) no sentido de integrar, na sua previsão, o recurso para o Tribunal Constitucional;
19) com efeito, o segundo segmento normativo do referida disposição (“sentença a proferir por tribunal não penal”) - bem como o terceiro (“devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal”), aliás -, parece inculcar a ideia de que se está perante uma questão prejudicial, o que é, conceptualmente, incompatível com a ideia de recurso, prevista no referido art. 280 da Constituição;
20) muito embora o Tribunal Constitucional nunca tenha apreciado, ex professo, a questão sub judice, designadamente no âmbito do Acórdão 529/08, a argumentação expendida no Acórdão 596/03 revela-se, em grande parte, aplicável no âmbito da apreciação do presente recurso.
21) no sentido da solução interpretativa proposta nas presentes alegações aponta, também, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, anteriormente citada, ao considerar que a intervenção do TC se verifica no âmbito de um recurso, por isso, no âmbito do processo concreto em que tal recurso é interposto - o que parece afastar a ideia de o recurso de constitucionalidade ser um “mecanismo de reenvio a título prejudicial”, ou uma mera “questão prejudicial” –, adquirindo, por isso, a decisão proferida, força de caso julgado no processo a que respeita.»
5. No recurso interposto por A. o recorrente apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1ª. Está em causa um conjunto normativo formado, no âmbito do Código Penal de 1982 pelos artigos 119º, n.º 1, alínea a) e 120º, n.º 3 e no domínio do Código Penal de 1995 pelos artigos 120º, n.º 1, alínea a) e 121º quando prevêem [como decorre do aresto de uniformização de jurisprudência recorrido] que seja causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal o recurso para o Tribunal Constitucional.
2ª. Essa dimensão normativa concreta, que foi aplicada nos autos – como já foi demonstrado – ofende os artigos 20º, n.º 4, 32º, n.º1 e 280º da CRP, pelo que as normas jurídicas que a prevêem estão feridas de inconstitucionalidade material.
3ª. Prolonga injustificadamente a duração do processo penal, legitimando a sua viabilidade, apesar de estar sujeito a uma jurisdição em que o procedimento criminal continua a desenrolar-se, como se os prazos legalmente fixados para a sua viabilidade pudessem estender-se, prorrogando-se sem prescrição, o que significa a violação do artigo 20º, n.º 5 da Constituição.
4.ª Lesa o direito de defesa e de recurso, previstos no artigo 32º, n.º 1 da Constituição, na medida em que a sujeição do caso a um juízo de constitucionalidade – quantas vezes não suscitada pelo arguido – ao mesmo tempo que é configurado não como um verdadeiro recurso antes como uma mera questão de cunho incidental em lógica de devolução, acaba por traduzir uma diminuição estatutária do arguido que fica penalizado pela suspensão do prazo prescricional numa lógica que não tem fundamento proporcionado aos fins que levam à consagração do instituto da suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.
5.ª Configura, enfim, um sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade que não traduz a lógica jurídica subjacente ao artigo 280º da CRP, que assim é violado, esvaziando a sua natureza de verdadeiro recurso e configurando-o como mero incidente de devolução de questão prejudicial ao Tribunal Constitucional.
Nestes termos deve ser decretada a inconstitucionalidade material das normas citadas, ordenando a reforma dos autos para que seja expurgada do vício respectivo a decisão judicial que as aplicou como é de JUSTIÇA».
6. No recurso interposto pelo Ministério Público, o recorrido A. contra-alegou da seguinte forma:
«O recorrente mantém quanto afirmou na sua alegação de recurso.
Na verdade é seu entendimento que a dimensão normativa em apreço ofende os artigos 20.º, n.º 4 [por lapso na conclusão menciona-se o n.º 5], 32.º, n.º 2 e 280.º da Constituição (i) prolongando injustificadamente a duração do processo penal (ii) lesando o direito defesa pois que a sujeição de um caso a um juízo de constitucionalidade é configurada não como um recurso antes como um mero incidente com a concomitante suspensão do prazo prescricional numa lógica de desproporcionada compressão de direitos (iii) configura um sistema de fiscalização de constitucionalidade ao arrepio do modelo estatuído no artigo 280.º da CRP
Ante o ora propugnado doutamente pelo MP junto desse Tribunal o recorrente limita-se a, com modéstia e aplauso, aderir ao que aí melhor se fundamenta, cujo provimento é de JUSTIÇA».
7. No recurso interposto por A., o Ministério Público não apresentou contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
8. O artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (na versão original) tem a seguinte redacção:
«ARTIGO 119.º
(Suspensão da prescrição)
1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial para juízo não penal;
b) (…);
c) (…).
2 – (…).
3 – (…)» (Destacado nosso.)
Após a revisão do Código Penal de 1995 (operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), o artigo 120.º, n.º 1, alínea a), continuou a dispor sensivelmente o mesmo, da forma seguinte:
«Artigo 120.º
Suspensão da prescrição
1 - A prescrição do procedimento criminal suspende-se, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal ou de sentença a proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal;
b) (…);
c) (…); (…)
d) (…).
2 – (…).
3 – (…).» (destacado nosso)
Nos presentes autos está em causa apenas a norma da alínea a) do n.º 1 deste preceito legal (artigo 119.º, correspondente ao artigo 120.º, na versão de 1995), quando interpretada em termos de a pendência de recurso para o Tribunal Constitucional constituir causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, prevista no segmento normativo «sentença a proferir por tribunal não penal».
A referida alínea prevê três situações de suspensão da prescrição do procedimento criminal: (i) o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de autorização legal; (ii) o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por falta de sentença a proferir por tribunal não penal; (iii) o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se ou continuar por efeito da devolução de uma questão prejudicial a juízo não penal.
São estes os três casos que o legislador tipificou como impeditivos do início ou continuação do procedimento criminal e, como tal, justificativos da suspensão do respectivo prazo prescricional.
Como salienta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, ora recorrido, os «três segmentos normativos são autónomos, prevendo situações diferentes de impossibilidade de instauração ou paralisação do processo penal e correspondendo, cada um, a uma causa diversa de suspensão do prazo de prescrição».
Não pode, por isso, transpor-se para o presente caso, sem mais, o juízo de inconstitucionalidade formulado no Acórdão n.º 596/2003, na medida em que este se pronunciou sobre o terceiro segmento da norma em questão (“devolução de questão prejudicial para juízo não penal”).
Neste Acórdão n.º 596/2003, entendeu-se, em síntese, que a interpretação segundo a qual aquele terceiro segmento da norma (“devolução de questão prejudicial para juízo não penal”) compreende o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em processo crime, é inconstitucional, por violação do artigo 280.º da Constituição, na medida em que esta norma constitucional prevê com clareza, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, a existência de um recurso para o Tribunal Constitucional e não de uma espécie de mecanismo de reenvio a título prejudicial para este Tribunal, para resolução de questões de constitucionalidade que surjam na pendência de processos judiciais.
Também no sentido de que o “processo de fiscalização abstracta sucessiva” pendente no Tribunal Constitucional não constitui uma “acção” na qual se controverte “questão prejudicial própria” já se tinha pronunciado o Acórdão n.º 200/98 (que julgou inconstitucional a norma contida no artigo 3.º do Código de Processo Penal de 1929, quando interpretada no sentido dessa qualificação).
A diferença apontada foi salientada no Acórdão n.º 529/2008, onde se decidiu não tomar conhecimento do objecto de recurso, interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por se ter entendido não haver coincidência entre a norma julgada inconstitucional pelo já citado Acórdão n.º 596/2003 (invocado como acórdão fundamento) e o acórdão aí recorrido, que fundamentava a decisão sobre a suspensão do prazo de prescrição, não no terceiro segmento da norma em questão mas, tal como no presente recurso, no segundo segmento da mesma norma.
Em suma, nos presentes autos a questão colocada não é a da qualificação do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade como uma “questão prejudicial” (questão apreciada no referido Acórdão n.º 596/2003), mas sim a qualificação do Tribunal Constitucional como “tribunal não penal”, para efeitos do segundo segmento da norma questionada, ou seja, para efeitos de suspensão do prazo de prescrição por o procedimento criminal “não poder legalmente iniciar-se ou continuar” por estar pendente de “sentença a proferir por tribunal não penal”.
9. Como é sabido, não cabe ao Tribunal Constitucional interpretar o direito ordinário ou sindicar a bondade da interpretação feita pelas instâncias, no plano do direito infraconstitucional.
A interpretação sufragada no acórdão recorrido – segundo a qual a «pendência de recurso para o Tribunal Constitucional» constitui uma causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal prevista no segmento normativo “falta de sentença a proferir por tribunal não penal” – constitui um dado adquirido, no âmbito do presente recurso, cabendo apenas ao Tribunal Constitucional confrontar tal interpretação com as normas e princípios constitucionais aplicáveis.
Assim, no presente recurso cabe apenas averiguar a constitucionalidade da qualificação do Tribunal Constitucional como “tribunal não penal” para efeito de se suspender o prazo de prescrição durante a pendência de um recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, interposto em processo crime.
10. Os parâmetros constitucionais convocados nas alegações dos recorrentes, são os seguintes:
(i) violação do artigo 280.º da CRP, na medida em que contraria a natureza do recurso de constitucionalidade, como verdadeiro recurso, configurando-o como mero incidente de devolução de questão prejudicial ao Tribunal Constitucional, sendo esta configuração como “questão prejudicial” conceptualmente incompatível com a ideia de “recurso” prevista nesta norma constitucional (invocada pelo Ministério Público e pelo recorrente particular);
(ii) violação do artigo 20.º, n.ºs 4 e 5, da CRP, na medida em que prolonga injustificadamente a duração do processo penal (recorrente particular);
(iv) violação do princípio da proporcionalidade e das garantias de defesa, na medida em que amplia os prazos de prescrição do procedimento criminal sem qualquer limite temporal (Ministério Público);
(v) violação do direito de defesa e de recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, na medida em que o uso do mecanismo do recurso de constitucionalidade, ao ser configurado como questão de cunho incidental em lógica de devolução, penaliza o arguido pela suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal (recorrente particular).
A invocação do artigo 20.º, n.ºs 4 e 5, da Constituição, não se mostra pertinente para a questão de constitucionalidade em apreço. Na verdade, a garantia constitucional de uma decisão jurisdicional final em “prazo razoável” tutela interesses diversos dos que subjazem à garantia do prazo de prescrição, não havendo uma recíproca implicação necessária das exigências que cada um dos parâmetros comporta. E, contrariamente ao que sucede com o prazo de prescrição, a duração constitucionalmente “razoável” do processo judicial carece de ser concretizada, estando dependente das circunstâncias concretas do caso e devendo respeitar as exigências de um processo justo e equitativo e ser proporcionada à complexidade do processo (cfr. a este respeito JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, I, Coimbra, 2005, 192). A diversidade entre estas duas situações é bem patente se pensarmos, por hipótese, na possibilidade de uma decisão judicial ser tomada em prazo “irrazoável”, não obstante ter cumprido o prazo de prescrição do procedimento criminal. Não traz, por isso, qualquer valoração útil para o problema em apreço, a invocação do direito à decisão da causa em prazo razoável.
Também distante do problema em apreço se situa o n.º 5 do artigo 20.º, que consagra o direito à tutela jurisdicional efectiva, pois o problema não se situa na relação entre direitos materiais e direitos processuais, não estando em causa a inexistência de acções ou recursos adequados que o princípio da efectividade postula.
Não se mostra igualmente adequada a convocação do princípio da proporcionalidade, cuja violação, aliás, em qualquer das várias suas dimensões, o recorrente não concretiza minimamente.
Por último, as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso, em processo penal (artigo 32.º, n.º 1), não compreendem directamente o recurso de constitucionalidade. Na verdade, o recurso de constitucionalidade não é um mecanismo de defesa específico do processo penal, ou cuja configuração tenha recebido inspiração de quaisquer particularidades do processo criminal. É sim um mecanismo de tutela da ordem jurídico-constitucional, que, como tal, recebeu tratamento próprio e autónomo na Constituição.
Em síntese, para a solução da questão em apreço apenas se mostram úteis as normas da Constituição, nomeadamente o artigo 280.º, que regulam a competência do Tribunal Constitucional e o recurso de constitucionalidade. Ou, dito de outro, modo, o que importa é saber se a configuração constitucional do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade permite, ou não, o entendimento de que este recurso constitui uma situação que pode obstar ao prosseguimento do procedimento criminal, sendo, por isso, causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
11. Vejamos, em primeiro lugar, o papel que a Constituição atribui ao Tribunal Constitucional.
O Tribunal Constitucional não fazia parte da versão originária da Constituição, tendo sido introduzido na revisão constitucional de 1982, (sucedendo à Comissão Constitucional prevista no texto de 1976). A Lei do Tribunal Constitucional, que regula a sua organização, funcionamento e processo, foi aprovada em Novembro de 1982 (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro).
O Tribunal Constitucional goza de um estatuto próprio, fixado na própria Constituição. Nos termos do artigo 221.º da CRP, é “o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional».
Esta fórmula ampla não o confina a órgão de fiscalização da constitucionalidade e da legalidade (assim, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, III, 2007, Coimbra, 248). No âmbito dessa actividade nuclear, é o “órgão superior” da justiça constitucional e um tribunal especificamente dedicado a ela (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed. revista, 1993, Coimbra, 834).
Apresenta um conjunto de singularidades, naturalmente decorrentes do papel que desempenha na ordem jurídico-constitucional, tais como merecer tratamento em título autónomo da Constituição (Título VI); ser a própria Constituição a especificar, no essencial, a sua competência (artigo 223.º), a estabelecer a sua composição (artigo 222.º, n.ºs 1 e 2); ser o seu presidente membro do Conselho de Estado (artigo 142.º, alínea c)); ser a sua organização, funcionamento e processo, matéria da reserva absoluta de competência da Assembleia da República, que, além disso, deve revestir a forma de lei orgânica (artigos 164.º, aliena c), 166.º, n.º 2).
Atendendo à sua específica função, o Tribunal Constitucional apresenta-se “separado, no seu enquadramento orgânico, dos restantes tribunais” (CARDOSO DA COSTA, A jurisdição constitucional em Portugal, 3.ª ed., Coimbra, 2007, 15). «Ele escapa – acrescenta o mesmo Autor (ob. cit., 23) – ao «sistema» ou «sub-sistema judiciário» (à «organização dos tribunais»), pois que antes verdadeiramente se perfila como um sub-sistema a se, no quadro do sistema político global: a Constituição, de facto, ao autonomizá-lo em título próprio (o Título VI) da sua Parte III (relativa à «Organização do poder político»), não o trata simplesmente como uma outra ordem de jurisdição, ao lado ou em paralelo com as restantes (v. g., a jurisdição comum e a jurisdição administrativa), mas como um outro órgão de soberania, a par (ou para além dos classicamente enunciados (…)».
Nesta linha, há quem sustente que o Tribunal Constitucional, embora seja um tribunal em sentido verdadeiro e próprio, não é um tribunal como os outros, nem é apenas um tribunal, sendo um “órgão constitucional autónomo de regulação do processo político-constitucional” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. cit., 834).
12. A questão de constitucionalidade que dos presentes autos emerge, com apelo à competência do Tribunal em matéria de fiscalização concreta da constitucionalidade (artigo 280.º da CRP), suscita, pela configuração do seu objecto, uma avaliação sobre a natureza e o modo de ser operativo do controlo concreto ou incidental, no âmbito do processo em que decorre. O recurso de constitucionalidade a decidir postula, na verdade, uma tomada de posição reflexiva, sobre si próprio, quanto à forma como este tipo de recursos se posiciona em relação ao processo que o motivou e à forma como a decisão que sobre ele recaia se projecta na decisão do “feito submetido a julgamento”.
Em causa está, concretamente, a interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de considerar que a pendência de uma questão de constitucionalidade no Tribunal Constitucional constitui “pendência de sentença a proferir por tribunal não penal”, obstativa da continuação do procedimento criminal, e, como tal, causa de suspensão do decurso da prescrição.
Sem poder sindicar – frise-se mais uma vez – a bondade desta interpretação, no plano do direito ordinário, ao Tribunal Constitucional cabe apenas ajuizar se ela é compatível com o tratamento que a Constituição dá ao recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade e ao papel que lhe reserva, na ordem jurídico-constitucional.
13. O sistema português de controlo de constitucionalidade é único no panorama europeu. É um sistema complexo que, de forma singular, combina a existência de um tribunal constitucional com competências separadas em matéria de fiscalização de constitucionalidade (próprio do modelo Kelseniano europeu), com o modelo da judicial review, que atribui essa competência à generalidade dos tribunais (modelo americano).
No sistema português de fiscalização concreta, todos e cada um dos tribunais têm competência para conhecer e decidir as questões de constitucionalidade, apreciando a conformidade com a Constituição das normas que hajam de aplicar e devendo recusar a aplicação daquelas que considerem inconstitucionais (artigo 204.º da Constituição).
Simplesmente, as decisões dos tribunais em matéria de constitucionalidade não são definitivas, delas cabendo recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos previstos nos artigos 280.º da Constituição e 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
É ao Tribunal Constitucional que a própria Constituição atribui o papel de “guarda” ou garante último da conformidade de normas jurídicas com a Constituição. Ele funciona, nesta matéria, como um órgão de cúpula, uma vez que detém competência cassatória das decisões de todos os outros tribunais, quanto a questões de constitucionalidade das normas.
Para além de acolher uma mistura de “fiscalização concentrada” no topo (Tribunal Constitucional) e de “fiscalização difusa” na base (tribunais), o sistema português de fiscalização também diverge da generalidade dos modelos europeus por não contemplar o mecanismo do reenvio prejudicial. Como refere MARIA LÚCIA AMARAL (“Problemas da Judicial Review em Portugal”, Themis, Ano VI, N.º 10, 2005, 67-90, 74), este mecanismo do reenvio prejudicial é «um meio estruturante de todos os processos de controlo concreto de tipo concentrado ou europeu (…) A “essência do paradigma Kelseniano exprime-se nele, visto que é precisamente o instrumento da suspensão da instância que assegura o cumprimento do princípio da separação.» Segundo a mesma Autora, a “absoluta singularidade” do sistema português de fiscalização da constitucionalidade decorre do facto de, entre nós, «a figura do reenvio prejudicial ter sido substituída pela do recurso para o Tribunal Constitucional», o que, além do mais, demonstra que, «em Portugal, a judicial review não se estrutura nem em torno do princípio da unidade nem em torno do princípio da separação».
Em anteriores arestos, o Tribunal Constitucional já teve oportunidade de salientar que o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade não pode ser confundido com o mecanismo de reenvio nem encarado como uma “questão prejudicial”.
Fê-lo no já citado Acórdão n.º 596/2003, que julgou inconstitucional a norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1995, ou no artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão de 1982, na interpretação segundo a qual, na devolução de questão prejudicial para juízo não penal, aí prevista, se compreende o recurso de fiscalização concreta interposto para o Tribunal Constitucional, em processo crime, para apreciação de uma questão de constitucionalidade nele suscitada. Neste aresto entendeu-se, em síntese, que esta interpretação era incompatível com o artigo 280.º da Constituição, no qual se «prevê com clareza, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, a existência de um recurso para o Tribunal Constitucional e não de uma espécie de mecanismo de reenvio a título prejudicial para este Tribunal, para resolução de questões de constitucionalidade que surjam na pendência de processos judiciais».
14. Do exposto retira-se, sem margem para dúvidas, que o acesso ao Tribunal Constitucional não se faz por intermédio do envio de questão prejudicial, mas sim por meio de recurso, a interpor nos próprios autos.
Mas, contrariamente ao que parece vir defendido pelos recorrentes, a não configuração do recurso de constitucionalidade como envio de questão prejudicial não resolve o problema em apreço. Resolveria – e resolveu, no citado Acórdão 596/2003 – se estivesse em causa o terceiro segmento normativo da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º (anterior artigo 119.º).
Mas o segundo segmento dessa norma, aqui em causa, não contempla na sua previsão uma “questão prejudicial”. Este segundo segmento há-de ter um âmbito próprio, precisamente fora do universo das “questões prejudiciais”, sob pena de não ter qualquer autonomia em face da terceira alternativa aí consagrada, o que o intérprete está impedido de presumir (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil).
Qual seja, em concreto, o espaço de aplicação própria deste segundo segmento é questão de difícil resposta, para a qual não encontrámos indicado, nem na doutrina nem na jurisprudência, um exemplo concreto. A dificuldade em descortinar hipóteses em que o processo não possa legalmente iniciar-se sem uma “sentença prévia” foi salientada no âmbito da Comissão encarregue de rever o Projecto da Parte Geral do Código Penal, sem que a essa dificuldade fosse dada qualquer resposta (cfr. Acta da 32.ª Sessão, do dia 28.4.1964, in Actas das Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, I, Lisboa, s.d., 211 e s.)
Mas a eventual falta (ou, pelo menos, dificuldade) de concretização prática da previsão normativa não pode conduzir a uma assimilação entre o segundo e terceiro segmentos da norma.
A resposta à questão em apreço deve, antes, concentrar-se exclusivamente no segmento normativo em apreciação, a saber, “falta de sentença a proferir por tribunal não penal”. Mas, dentro do campo problemático assim delimitado, não pode perder-se de vista que a qualificação do Tribunal Constitucional, como sendo ou não de natureza não penal, não pode ser encarada isoladamente e com abstracção do ponto de vista relevante para a determinação do efeito estatuído pela norma em que o segmento se insere. Essa qualificação não pode ser desligada do contexto normativo que funcionalmente a requere, pois está presa ao preenchimento das condições materialmente justificativas do efeito que a norma produz: a suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Deste ângulo de impostação da questão, a natureza do Tribunal é um mero predicado qualificativo da sentença por ele emitida, em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade. É a qualificação da sentença que verdadeiramente importa, e importa para determinar se a sua falta é geradora da situação que substancialmente justifica a suspensão da prescrição: a impossibilidade legal de o procedimento criminal se iniciar ou continuar.
Na verdade, o segmento normativo em questão não vale por si, mas como causa - uma das três causas possíveis - da fattispecie desencadeadora do efeito suspensivo.
Essa ligação de sentido não pode ser desfeita por uma valoração da natureza do Tribunal abstractizante dos concretos efeitos desta qualificação que, no caso, se traduzem na qualificação do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade como situação impeditiva do fluir da acção penal. Essa qualificação constitui o verdadeiro nó problemático da questão de constitucionalidade posta, que, assim, se vem a traduzir na avaliação da sua compatibilidade com o figurino que a Constituição dá ao recurso de constitucionalidade.
A perspectiva funcionalmente adequada à natureza da questão a decidir não é, pois, uma perspectiva organizatória, de atendimento da posição do Tribunal Constitucional na cartografia do conjunto dos tribunais judiciais. Dessa perspectiva, é inquestionável que o Tribunal Constitucional é, não só “um tribunal não penal”, mas um tribunal separado e diferente de todos os demais, como já foi dito.
Mas, se a questão é saber se a pendência do recurso de constitucionalidade “impede a continuação do procedimento criminal”, constituindo, por isso, fundamento de suspensão do prazo de prescrição, não é essa a perspectiva ajustada, mas antes uma que privilegie a caracterização funcional e processual daquele recurso, na ordem jurídico-constitucional portuguesa.
15. O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade (e de certas formas de ilegalidade) pode ser interposto de decisões judiciais que recusem a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade, que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, ou que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional ou pela Comissão Constitucional (artigo 280.º, n.ºs 1 e 5).
É este recurso que abre, aos cidadãos em geral, a possibilidade de acesso ao Tribunal Constitucional, pois não há recurso directo de inconstitucionalidade. Na fiscalização concreta, o Tribunal Constitucional só intervém a título incidental, enquanto instância de recurso das decisões de outros tribunais (proémio do n.º 1 do artigo 280.º da CRP).
O juízo de constitucionalidade proferido pelo Tribunal Constitucional no recurso de fiscalização concreta só tem efeitos no caso concreto (salvo os efeitos indirectos referidos no artigo 280.º, n.º 5, e 281.º, n.º 3). Ou seja, só tem efeitos na decisão recorrida, proferida pelo tribunal a quo, que ficará obrigado a reformar essa decisão na parte respeitante à questão de constitucionalidade para a conformar, quando necessário, com aquele juízo de constitucionalidade (o tribunal recorrido ou qualquer outro tribunal que intervenha em recurso naquele processo não pode deixar de recusar a aplicação de norma que o Tribunal Constitucional tenha julgado inconstitucional; assim como não pode desaplicar norma que o Tribunal Constitucional tenha julgado não inconstitucional).
É certo que o recurso de constitucionalidade apenas tem por objecto a questão de constitucionalidade e não a questão de fundo discutida em juízo (artigo 280.º, n.º 6, da CRP). Neste sentido, a questão de constitucionalidade aparece destacada (separada) do litígio de onde emerge. Mas essa separação – que, no fundo, corresponde à separação de competências entre o Tribunal Constitucional e o tribunal da causa – não permite dizer que o recurso de constitucionalidade é estranho ao processo que lhe deu origem.
Pelo contrário, como salientam GOMES CANOTILHO/ VITAL MOREIRA, ob. cit., 1029, os «recursos de constitucionalidade (ou de ilegalidade) estão incindivelmente ligados aos processos que lhes deram origem. Eles são recursos instrumentais em relação à decisão da causa em que o incidente de constitucionalidade (ou de ilegalidade) surgiu». Por isso, as vicissitudes do processo originário reflectem-se no recurso de constitucionalidade podendo, por exemplo, conduzir à sua inutilidade superveniente.
O Tribunal Constitucional já afirmou que o recurso de constitucionalidade nem sequer tem a natureza de um recurso extraordinário. Como se escreveu no Acórdão n.º 1166/96, «o recurso de constitucionalidade, no domínio da fiscalização concreta (art. 280º da Constituição; art. 70º da Lei do Tribunal Constitucional), não pode qualificar-se como uma modalidade de recurso extraordinário. De facto, e nos termos da sua regulamentação constitucional e legal, ele tem de ser interposto no prazo legal, antes do trânsito em julgado da decisão recorrida. Por outro lado, sendo o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 223º da Constituição, 'o tribunal ao qual compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional', daí decorre que o mesmo não é um 'corpo estranho', com uma diferente natureza, no conjunto dos tribunais das diferentes ordens, razão por que a própria Constituição tem o cuidado de ressalvar as suas competências quando se refere á posição hierárquica do Supremo Tribunal de Justiça na ordem dos tribunais judiciais: 'o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da hierarquia dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional' (art. 212º, nº 1). E o mesmo vale para o Supremo Tribunal Administrativo (STA), na respectiva ordem, como decorre do artigo 214º, nº 1, da Constituição. (…) Acresce que a circunstância de a decisão do Tribunal Constitucional ter, no caso de o recurso de constitucionalidade ser procedente, uma mera eficácia revogatória (artº 8º, nºs 1 e 3, da Lei do Tribunal Constitucional) não implica a natureza 'extraordinária' daquele recurso. De facto, nem sempre as decisões dos Tribunais superiores se substituem às dos tribunais hierarquicamente subordinados, estando previstos casos no processo civil em que, sem haver anulação da decisão recorrida, se ordena que a mesma seja reformada pelo tribunal a quo (bastará recordar, como exemplo, o previsto nos arts. 729º, nº 3, e 730º, nº 1, do Código de Processo Civil).»
Com base, além do mais, nas considerações transcritas, o Acórdão n.º 1166/96 decidiu «julgar inconstitucional a norma da alínea e) do nº 1 do artigo 214º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que ocorre o trânsito em julgado, embora sujeito a condição resolutiva, logo que é proferida decisão condenatória pelo Supremo Tribunal de Justiça, ao conhecer do mérito do recurso interposto do tribunal colectivo ou de júri, quando dessa decisão haja sido interposto recurso para o Tribunal Constitucional, admitido com efeito suspensivo, por violação das normas dos artigos 223º, 225º, nº 1, e 280º, nºs 1 e 6, conjugados com a parte final do nº 1 do artigo 212º, 28º, nº 4 e 32º, nº 2, todos da Constituição.»
Em suma, a questão de constitucionalidade, sendo separável da questão de fundo, não deixa de constituir um «elemento da questão a decidir no “feito submetido a julgamento”», que não é «exterior nem jurídica ou processualmente autónoma do “feito submetido a julgamento”» (nas palavras de um dos votos de vencido apostos no acórdão recorrido).
As considerações expostas levam a concluir que o legislador constitucional desenhou o recurso constitucional como um mecanismo incidental, enxertado num concreto processo judicial, para permitir o controlo último, pelo Tribunal Constitucional, da fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, inicialmente atribuída, de forma difusa, a todo e qualquer tribunal. Assim, o recurso de constitucionalidade é um incidente do próprio processo judicial, penal ou outro, correspondendo a mais uma das suas fases.
E a questão de constitucionalidade que é objecto do recurso de constitucionalidade não é uma questão “estranha” à questão de fundo. E tanto não é que, se o for, não estarão reunidos os pressupostos necessários ao conhecimento do objecto do recurso.
Forçoso é, por isso, concluir que, da natureza e regime constitucional do recurso de constitucionalidade não se lhe pode extrair o efeito que lhe é assacado pela interpretação normativa em apreço, isto é, não pode dizer-se que o recurso de constitucionalidade, por si, obsta necessariamente ao prosseguimento do procedimento criminal.
O que significa, noutro plano, que ao interpretar o segundo segmento da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º (anterior artigo 119.º) do Código Penal como incluindo o recurso de constitucionalidade, o tribunal recorrido está a criar ex novo uma causa de suspensão do prazo de prescrição, que o legislador não contemplou (questão diversa, que aqui não cabe apreciar, seria a apreciação da constitucionalidade de norma, até agora inexistente, que expressamente contemplasse o recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade como causa de suspensão da prescrição).
16. Concluiu-se, até aqui, que a pendência de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade no Tribunal Constitucional não pode ser havido como um caso de suspensão da prescrição especialmente previsto na lei: não está expressamente referido pelo legislador, nem pode ser incluído entre as situações de “sentença a proferir por tribunal não penal”, previstas no segundo segmento da alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º (anterior artigo 119.º) do Código Penal. Tendo em conta o recorte constitucional do mecanismo processual do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, a norma actualmente vigente não pode ser interpretada no sentido de que a decisão a proferir pelo Tribunal Constitucional, no âmbito desse recurso, é uma “sentença a proferir por tribunal não penal”, cuja falta impede a “continuação do procedimento criminal”. A tal obstam, na verdade, as acrescidas exigências de determinabilidade decorrentes do princípio da legalidade criminal.
Mas, com esta conclusão, apenas se censura um determinado modo de previsão de um resultado interpretativo, não, a se, a solução em que ele se corporiza. Noutros termos: não se está a decidir se o sistema de direito ordinário podia prever a pendência de recurso para o Tribunal Constitucional como causa de suspensão da prescrição, mas antes se podia prevê-lo deste modo, através da inclusão desta hipótese no campo semântico de significação da norma questionada.
A resposta negativa que demos implica considerar que a interpretação sub judicio criou uma nova causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal, não expressamente contemplada na lei.
Este Tribunal Constitucional já considerou inconstitucional a criação de causas de suspensão e de interrupção da prescrição pelo facto de não estarem previstas na lei, ou seja, por violação do princípio da legalidade.
No Acórdão n.º 183/2008, o Tribunal declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma extraída das disposições conjugadas do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
E no Acórdão n.º 412/2003 decidiu julgar inconstitucionais as normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de contumácia pode ser equiparada, como causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de ausentes, aí prevista; e não toma conhecimento do objecto do recurso na parte relativa à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987, conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código de Penal de 1982 (redacção originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no 'Assento' n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Os fundamentos constantes nestes arestos são mutatis mutandis transponíveis para o caso em apreço, onde igualmente está em causa a criação, por via interpretativa, de uma causa de suspensão do prazo de prescrição não contemplada pelo legislador.
À semelhança do decidido no Acórdão n.º 183/2008, também no presente caso o Tribunal Constitucional está habilitado a tomar conhecimento da questão de constitucionalidade, tomando como parâmetro constitucional o princípio da legalidade criminal. Na verdade, o “recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade” constitui uma “figura processual abstracta normativamente prevista” (nas palavras do Acórdão n.º 183/2008, embora aí referindo-se à declaração de contumácia). Saber se ele integra ou não a previsão do segmento questionado não importa, pois, um acto casuístico de subsunção de um facto concreto na previsão de uma certa norma legal, dado que o referente desta é uma outra norma. A sindicância da interpretação aqui questionada incide num “acto normativamente inventariado em termos gerais e abstractos pela lei”, susceptível de aplicação a uma pluralidade de situações concretas (o recurso de constitucionalidade), estando em causa a sua susceptibilidade de “ser assimilado” por uma previsão legal (a “sentença a proferir por tribunal não penal”). Tal como com a declaração de contumácia, “trata-se apenas de saber se – em abstracto – será possível incluir o conteúdo normativo constante de uma norma” – o artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional – “no conteúdo normativo constante de outra norma” – o artigo 120.º. n.º 1, alínea a), segundo segmento.
Como vimos, a pendência de recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade não está legalmente prevista como causa de suspensão da prescrição, nem está essa suspensão prevista como um efeito necessário desse recurso. Assim, dentro dos limites do princípio da legalidade, não se poderá considerar que o recurso constitucional constitui, à luz do disposto no segundo segmento da alínea a) do n.º 1 do artigo 119.º (actual artigo 120.º) do Código Penal, uma causa legalmente prevista de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Conclui-se, assim, pela violação do princípio-garantia da legalidade criminal, cujo âmbito de protecção, como este Tribunal já afirmou, nomeadamente, nos arestos citados, abrange as causas de suspensão da prescrição.
III - Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição, a norma do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal de 1982 (na versão original) correspondente à norma do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), após a revisão de 1995 (operada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março), interpretada em termos de a pendência de recurso para o Tribunal Constitucional constituir causa de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal, prevista no segmento normativo «sentença a proferir por tribunal não penal».
b) Consequentemente, conceder provimento aos recursos, devendo a decisão recorrida ser reformulada em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Maio de 2010
Joaquim de Sousa Ribeiro
Catarina Sarmento e Castro
Benjamim Rodrigues (com declaração anexa)
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei a decisão, mas com diferente arrimo constitucional.
Na verdade entendemos que, a ver-se a questão nos termos em que o acórdão a recortou, não se está perante uma questão de constitucionalidade normativa (confronto de um critério de decisão com normas ou princípios constitucionais), como no voto de vencido aposto ao Acórdão n.º 183/08 pensamos ter demonstrado, mas de constitucionalidade da decisão, esta traduzida num controlo do concreto juízo interpretativo levado a cabo pelo STJ sobre a norma de direito infraconstitucional do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
E tanto assim é que o labor do acórdão para decidir a questão não se desenrola em torno da interpretação do parâmetro constitucional do princípio da legalidade penal, na sua vertente de exigência de determinabilidade dos elementos complexos da norma, e da subsunção a esse parâmetro da norma concretamente aplicada, mas da determinação do sentido da norma infraconstitucional.
De qualquer jeito, não podemos deixar de considerar que a dimensão normativa do artigo 119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, nos termos da qual, segundo o entendimento do STJ, a decisão do Tribunal Constitucional, proferida em recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade interposto no processo penal e para conhecimento de norma nele aplicada como ratio decidendi da decisão penal, é uma decisão proferida por tribunal não penal viola o artigo 280.º da Constituição.
Quanto intervém na decisão dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade de normas aplicadas por outros tribunais, nos termos do artigo 280.º da CRP, o Tribunal Constitucional está a administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional (artigo 221.º da Constituição).
Mas essa justiça é feita sobre a norma que regula a situação jurídica concreta e por aplicação da qual o tribunal recorrido ditou a decisão do caso.
E mais, sobre norma de direito infraconstitucional cuja questão de validade constitucional o tribunal recorrido não podia deixar de pronunciar-se, se suscitada por alguma das pessoas com legitimidade para a causa (artigo 204.º da CRP), segundo o sistema de controlo difuso da constitucionalidade adoptado pela nossa Lei fundamental (cf. José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª edição revista e actualizada, p.42 e segs.).
Quer isto dizer que a questão de constitucionalidade, sob o ponto de vista da relação jurídico-material a que respeita a norma constitucionalmente sindicada e que foi aplicada para a decisão do caso, transporta essa mesma natureza.
Daí que o recurso de constitucionalidade seja meramente instrumental: ele é um instrumento através do qual se resolve definitivamente a questão da validade da norma que foi aplicada pelo tribunal recorrido para proferir a decisão que proferiu.
O Tribunal Constitucional limita-se a reexaminar o juízo feito, ou que devia ter sido feito, pelo tribunal recorrido sobre a validade constitucional dessa norma, como pressuposto para poder depois elaborar o juízo subsuntivo-decisório do caso.
Assim sendo, a decisão do Tribunal Constitucional comunga da natureza própria da norma de direito constitucional que sindica: civil, penal, processo-penal, administrativo, fiscal, etc.
Nesta perspectiva, o Tribunal Constitucional é um tribunal penal, administrativo, cível, etc. e não, como ajuizou o acórdão recorrido, um tribunal não penal.
A natureza da concreta relação jurídica a que respeita a norma constitucionalmente sindicada continua a manter-se presente.
Por outro lado, o recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade está constitucionalmente conformado de modo a casar-se harmoniosamente com os recursos previstos em cada um dos regimes de processo a que respeitam as normas constitucionalmente impugnadas, podendo falar-se de um sistema harmonizado e sincronizado dos recursos.
Expressão máxima dessa simbiose é a interrupção dos prazos de interposição de outros recursos, se interposto recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, prevista no artigo 75.º da Lei do Tribunal Constitucional: o recurso para o Tribunal Constitucional está previsto como meio processual de se resolver de vez a questão de constitucionalidade da norma de direito infraconstitucional.
Assim sendo, a interpretação adoptada pelo acórdão recorrido viola este figurino do recurso constitucional previsto no artigo 280.º da Constituição, tendo a decisão do mesmo sobre matéria jurídico-constitucional de norma de direito penal ou processo penal ou outra, também, a natureza dessa norma.
Benjamim Rodrigues
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