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Processo n.º 241/101ª SecçãoRelator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Por acórdão proferido pelo Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, foi o
ora recorrente, A., condenado, pela prática de um crime de resistência e coacção
sobre funcionário, na pena de três anos e oito meses de prisão. Inconformado,
interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por acórdão de 18
de Maio de 2009, confirmou a decisão.
2. Inconformado, o recorrente apresentou reclamação, arguindo a nulidade do
aludido acórdão por omissão de pronúncia, alegando que “1 - O Recorrente
suscitou, no seu recurso, a questão da sucessão de leis criminais no tempo,
resultante da alteração operada pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro do texto do
artº 347º do Código Penal, pugnando pela tese de que a conduta descrita nos
factos provados só passou a ser punível após a entrada em vigor desse diploma
legal.2 – O douto acórdão reclamado não se debruçou sobre as implicações
decorrentes dessa modificação do tipo legal do crime de resistência e coacção
sobre funcionário […][...] 7 - Se a omissão de pronúncia é intencional, o douto
acórdão optou por uma interpretação do conjunto normativo formado pelos arts.
368º, nº2 do CPP, e 2º, nº4 do CP, que ofende os nºs 1 e 4 do artº 29º da CRP8 -
inconstitucionalidade essa que fica invocada, porque se trata duma interpretação
inesperada, que, de todo em todo, o Recorrente não podia sequer figurar como
hipótese e, por isso, só agora pode suscitar.9 – Ademais, porque a conduta
descrita nos factos provados apenas foi criminalizada pela Lei 59/2007, de 4 de
Setembro, ao condenar o Recorrente, o Tribunal fez uma aplicação retroactiva da
lei penal, integrando essa conduta na versão anterior do artº 347º do Código
Penal e, portanto, fazendo uma interpretação inconstitucional deste preceito,
por ofensa dos mencionados nºs 1 e 4 do artº 29º da CRP (…).
3. Por acórdão de 8 de Fevereiro de 2010, o Tribunal da Relação de Guimarães
julgou improcedente a arguição de nulidade, afirmando – além do mais – que “com
a adesão expressa ao enquadramento jurídico feito na 1ª instância, não tinha
este Tribunal que ir para além disso, pronunciando-se sobre uma sucessão de leis
penais no tempo que não ocorreu”.
4. O recorrente veio, então, interpor recurso para este Tribunal:“[...] do douto
acórdão proferido no dia 18 de Maio de 2009 pelo Tribunal da Relação de
Guimarães;- e, bem assim, do douto acórdão proferido em sede de reclamação do
anterior, no dia 8 de Fevereiro de 2010.“[…] para apreciação da
inconstitucionalidade do artº 347º do Código Penal, na versão anterior à Lei
nº59/2007, de 4 de Setembro, interpretado no sentido de que a respectiva norma
prevê e pune as condutas (como a que foi imputada ao Recorrente) hoje integradas
no nº2 da versão do mesmo preceito resultante da referida Lei nº 59/2007,
praticadas antes da entrada em vigor deste diploma, por ofensa dos nºs 1 e 4 do
artº 29º da CRP.A questão de inconstitucionalidade que o Recorrente pretende
submeter ao escrutínio do Tribunal Constitucional foi por ele suscitada no
requerimento de reclamação por nulidade que formulou, no dia 4 de Junho de 2009,
contra o referido acórdão de 18 de Maio de 2009,e não antes por a interposição
normativa em causa se revelar de todo inesperada e imprevisível (“decisão
surpresa”). [...]”
5. Na sequência, foi proferida pelo relator neste Tribunal, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na
redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decisão
sumária de não conhecimento do objecto do recurso. É o seguinte, na parte agora
relevante, o respectivo teor:
“[...] cumpre, antes de mais, decidir se se pode conhecer do seu objecto, uma
vez que a decisão que o admitiu não vincula este Tribunal (artigo 76º, n.º 3, da
Lei do Tribunal Constitucional - LTC). Vejamos.5.1. Em relação ao segundo dos
acórdãos sindicados, é desde logo manifesto que tal não pode ocorrer. Na
verdade, resumindo-se o objecto de tal acórdão ao conhecimento da questão da
nulidade do primeiro, por omissão de pronúncia, e tendo o mesmo concluído pelo
indeferimento dessa arguição, é manifesto que a sua razão de decidir só se pode
fundar nas normas sobre a nulidade dos acórdãos e nunca no “artigo 347º do
Código Penal, na redacção anterior à Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro”, em
interpretação alegadamente “violadora dos n.ºs 1 e 4 do artigo 29º da
Constituição”. Tanto basta para que este Tribunal esteja impossibilitado de
conhecer do objecto do recurso, nesta parte, já que, como é sabido, este
Tribunal só tem poderes para apreciar a constitucionalidade de normas aplicadas,
como ratio decidendi, nas decisões recorridas.5.2. No que se refere ao recurso
do Acórdão de 18 de Maio de 2009, alega o recorrente que o mesmo constituiu uma
“decisão-surpresa”, razão pela qual não suscitou a questão de
constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida, como é exigido pelo
artigo 72º, n.º 2, da LTC, mas apenas no requerimento de arguição de nulidade.
Ora, conforme jurisprudência uniforme deste Tribunal, deve considerar-se, em
princípio, inidónea a invocação da inconstitucionalidade em requerimentos de
arguição de nulidades, de pedido de aclaração ou de reforma de sentenças ou
acórdãos. Não obstante tal princípio, deverão excepcionar-se os casos em que o
recorrente não haja tido oportunidade para suscitar a questão da
inconstitucionalidade até ao momento em que a decisão foi proferida, por esta
última ter um conteúdo imprevisível ou objectivamente inesperado. Invoca o
recorrente ser esse o caso no presente recurso. Sem razão como, sumariamente, se
verá.Na verdade, como o próprio recorrente afirma, a questão da sucessão de leis
criminais no tempo foi por ele suscitada nas alegações do recurso apresentado
contra a decisão da 1ª instância, defendendo que essa decisão não atendeu a tal
sucessão e que, se o houvesse feito, outro deveria ter sido o desfecho
decisório. Ora, independentemente da questão de saber se tal se pode configurar
como uma questão de constitucionalidade normativa, o facto é que o vício
imputado ao acórdão de 18 de Maio de 2009 – omissão de pronúncia em relação à
referida sucessão de leis – em nada se afasta do que o recorrente já atribuíra à
decisão da 1ª instância. Assim sendo, como claramente o é, não se vislumbra como
possa o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, ao aplicar o artigo 347º do
Código Penal, nos termos em que havia sido feito desde a 1ª instância,
constituir uma situação de todo imprevisível ou inesperada, que concretize uma
das hipóteses, de todo em todo excepcionais ou anómalas, em que ao recorrente
não é exigível que cumpra o ónus de suscitar a questão antes da prolação da
decisão.Assim, não pode o Tribunal conhecer do objecto do recurso, [...] nesta
parte.6. Acresce, que, ainda que assim pudesse não ter sido, nem por isso a
presente decisão poderia ser diversa.Com efeito, como o Tribunal tem
reiteradamente afirmado, o recurso previsto na alínea b), do n.º 1, do artigo
70º da LTC pressupõe, designadamente, que, não obstante a arguição de
inconstitucionalidade, a decisão recorrida tenha aplicado a norma questionada,
como ratio decidendi, no julgamento do caso. Sustenta o recorrente que o artigo
347º do Código Penal, na versão anterior à introduzida pela Lei nº 59/2007, foi
interpretado em violação dos n.ºs 1 e 4 do artigo 29º da CRP, por alegada
aplicação retroactiva da nova redacção, designadamente do actual n º 2. Da
própria formulação da questão pode, contudo, inferir-se que o recorrente
pretende, em rigor, sindicar a subsunção jurídica dos factos operada pelo
tribunal a quo, o que está vedado a este Tribunal conhecer. Mas ainda que se
entendesse ser a questão de constitucionalidade normativa, continuaria a não
poder-se conhecer do objecto do recurso.Na verdade, entende o recorrente que os
factos imputados não constituíam crime à data dos mesmos, posto que apenas foram
objecto de criminalização através da introdução do actual n.º 2 do citado artigo
347º. Analisadas, porém, as decisões recorridas, claramente se constata que em
momento algum se interpretou o artigo citado no sentido alegado. Ao contrário, o
segundo dos acórdãos esclareceu inclusivamente que “não foram meramente
intimidatórias, de modo a poderem, eventualmente, caber na previsão do nº 2 do
art. na redacção actual e, antes sim, preenchem o tipo previsto no art.347º da
redacção anterior e no nº1 da redacção actual, que nesta matéria não sofreu
qualquer alteração de relevo: [...].”, daqui retirando não ter existido qualquer
sucessão de leis penais relevante para o caso dos autos. Em suma, as instâncias
entenderam que os factos eram subsumíveis ao anterior corpo do artigo 347º,
actual nº1 do mesmo preceito, na redacção da Lei nº59/2007, subsunção que a este
Tribunal não compete sindicar.Não tendo qualquer das decisões recorridas
interpretado a norma questionada no sentido alegado, falecem também aqui os
pressupostos de admissibilidade do recurso.”
6. Inconformado, o recorrente reclama agora para a Conferência, reproduzindo os
argumentos que expendera no recurso apresentado para este Tribunal. Em concreto,
quanto à recorribilidade do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de
Guimarães, alega o recorrente que:“O douto acórdão da Relação de Guimarães
proferido no dia 8.2.2010, ao indeferir a arguição da nulidade por omissão de
pronúncia, só pode ser interpretado no sentido de que a decisão reclamada se
pronunciou sobre a questão da aplicação do art.º 347° do CP equacionada em
função da alteração legislativa de que este preceito foi objecto, e que se
pronunciou no mesmo exacto sentido em que o fez a primeira instância (por, como
nele se diz, “adesão expressa ao enquadramento feito na 1ª instância”).
No que toca à adequada suscitação da questão de inconstitucionalidade, afirma
que:“(…) nem sequer equacionou a hipótese de o Tribunal [da Relação de
Guimarães] confirmar uma decisão de aplicação retroactiva da lei penal, como
sustenta ter-se verificado. A ser verdadeiro o pressuposto em que assenta o seu
raciocínio — aplicação retroactiva da lei penal, a consagração dessa solução por
um Tribunal de recurso representa uma hipótese tão inesperada que só pode ser
considerada uma total surpresa. Daí considerar, com o devido respeito pelo
decidido, que o Tribunal Constitucional pode e deve tomar conhecimento do
recurso”.
No mais, limita-se o reclamante a referir que:“Quanto ao fundo da questão, de
saber se houve ou não aplicação retroactiva do art° 347º, o Requerente,
brevitatis causa, remete, para efeitos desta reclamação e sem prejuízo de
posterior desenvolvimento da sua argumentação, remete, com a devida vénia, para
o que, a propósito, sustentou no requerimento de nulidade que formulou contra o
douto acórdão proferido pela Relação de Guimarães no dia 18 de Maio de 2009.“
7. Notificado para responder, o Ministério Público pugnou pelo indeferimento da
reclamação, sublinhando que na decisão reclamada se decidiu com base em dois
argumentos – falta de adequada suscitação da questão de constitucionalidade e
não aplicação, na decisão recorrida, da norma reputada inconstitucional, na
interpretação que o reclamante invoca -, nada tendo o reclamante aditado ao que
já antes afirmara, antes insistindo na surpresa de uma decisão que conheceu de
uma questão – retroactividade, ou não, da lei – que já havia sido suscitada na
motivação do recurso da sentença de 1ª instância, e insistindo também na
sucessão de leis, quando as instâncias afirmaram, perante os factos provados,
que a conduta já era punível, sendo irrelevantes as alterações entretanto
introduzidas ao art.347º do Código Penal.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
II – Fundamentação
6. Na decisão sumária reclamada, decidiu-se não conhecer do objecto do recurso
que o ora reclamante interpôs, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1, do
art. 70º da LTC, para este Tribunal. Para assim concluir, considerou-se, no
essencial, que nem o reclamante suscitou adequadamente uma questão de
(in)constitucionalidade normativa, nem, mesmo que assim não fosse, a decisão
recorrida tinha aplicado, como ratio decidendi, a norma na interpretação que
pretendia ver apreciada. Com a presente reclamação, o ora reclamante pretende
contestar que assim seja. Velamos.
7. O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade previsto na alínea
b) do n.º 1 do artigo 280º da Constituição e no artigo 70º da LTC tem por
objecto admissível, única e exclusivamente, a apreciação da constitucionalidade
de normas jurídicas – ou, se for o caso, de uma determinada interpretação
normativa. Está, por conseguinte, constitucionalmente vedada a este Tribunal a
apreciação das decisões judiciais em si mesmas consideradas, ainda que venha
invocada a sua inconstitucionalidade, e, naturalmente, a apreciação da matéria
de facto objecto de pronúncia na decisão judicial para ele recorrida. Além
disso, o recurso em causa – previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280º da
Constituição e no artigo 70º da LTC – pressupõe, nomeadamente, não só que o
recorrente tenha suscitado “de modo processualmente adequado perante o tribunal
que proferiu a decisão recorrida” (cf. artigo 72º, n.º 2, do mesmo diploma) a
exacta questão de constitucionalidade normativa que pretende ver apreciada mas
também que, não obstante, a decisão recorrida tenha aplicado tal norma ou
interpretação normativa, como ratio decidendi, no julgamento do caso. Ao que
acresce que, dada a natureza da intervenção do Tribunal Constitucional no âmbito
do processo de fiscalização concreta, restrita à apreciação da questão de
constitucionalidade da norma ou interpretação normativa efectivamente aplicada
na decisão recorrida, tal norma surge a este Tribunal como um dado, não estando
em causa no recurso para ele interposto, nem podendo estar, a determinação de
qual a “melhor interpretação” das normas infraconstitucionais questionadas. Ao
Tribunal Constitucional cumpre apenas aferir a compatibilidade com a
Constituição da interpretação normativa efectivamente aplicada pela decisão
recorrida. Ora, tudo isto inviabiliza a apreciação não só dos elementos de facto
referidos mas também dos argumentos de direito infraconstitucional aduzidos pelo
ora reclamante, conduzindo, nessa parte, à manifesta improcedência da
reclamação.
8. Dito isto, é, por outro lado, patente que o reclamante nada de novo
argumenta, repetindo apenas o que já alegara anteriormente e que foi objecto da
Decisão Sumária ora sindicada.
8.1. No caso, defende o reclamante que, ao pronunciar-se sobre o requerimento de
nulidade por omissão de pronúncia, o acórdão proferido em 8 de Fevereiro de 2010
só pode ser entendido como se tendo pronunciado “sobre a questão da aplicação do
art.º 347° do CP equacionada em função da alteração legislativa de que este
preceito foi objecto”, pois que aderiu expressamente ao enquadramento feito na
1ª instância, sustentando ainda que a decisão da mesma Relação foi surpreendente
e que nunca poderia ter contado com a mesma. Tal entendimento não pode, porém,
colher, como bem se assinalou na decisão reclamada. Tendo o acórdão do Tribunal
da Relação de Guimarães acolhido expressamente o entendimento perfilhado na 1ª
instância, fica claro que o caso em apreço não configura qualquer situação
excepcional ou anómala em que ao reclamante não era exigível que cumprisse o
ónus de suscitar a questão antes da prolação da decisão.
8.2. Acresce, como igualmente se afirmou na decisão ora reclamada, que tão-pouco
corresponde à verdade que, na decisão recorrida, se tenha afirmado, como
pretende o reclamante, a aplicabilidade do actual n.º 2 do artigo 347º do Código
Penal a situações anteriores à sua entrada em vigor. O que as instâncias
entenderam foi que os factos eram subsumíveis ao anterior corpo do artigo 347º,
actual nº1 do mesmo preceito, na redacção da Lei nº59/2007, assim concluindo o
Tribunal da Relação de Guimarães pela inexistência de qualquer sucessão de leis
relevante para o caso. Isto é, a norma em causa não foi aplicada com o sentido
questionado.
III – DecisãoNestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação e, em
consequência, confirmar a decisão reclamada no sentido do não conhecimento do
objecto dos recurso.Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.Lisboa, 12 de Maio de 2010Gil GalvãoJosé Borges
SoeiroRui Manuel Moura Ramos
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20100184.html ]
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