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Processo n.º 852/09
1.ª Secção
Relator – Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A., SA, interpôs acção ordinária no Tribunal Judicial de Aveiro contra B.,
Lda., pedindo a sua condenação no pagamento do montante em dívida referente a
energia e potência fornecidas e não pagas. Tendo visto a sua pretensão
indeferida, recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou o
julgado.
Inconformada, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que confirmou,
na íntegra, o acórdão da Relação.
Mais uma vez inconformada, a A., SA recorre agora para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal
Constitucional (LTC), através de requerimento com o seguinte teor:
“1 — O mencionado Acórdão, aliás, na esteira do Tribunal da Relação de Coimbra,
e da 1.ª Instância, professa uma interpretação do n° 3 do artigo 10° da Lei n°
23/96 segundo a qual apenas o fornecimento em Alta Tensão (AT) — e, por
interpretação extensiva, o fornecimento em Muito Alta Tensão (MAT) — se encontra
excluído do âmbito do eficácia desse normativo, postulando que o mesmo abrange
quer os fornecimentos em Baixa Tensão (BT), quer os fornecimentos em Média
Tensão (MT). Por outras palavras, o legislador entende que só a AT ‘foi excluída
do abrigo protector do regime do artigo 10° da Lei’ (i.e., da Lei n° 23/9k).
2 — Nessa interpretação/aplicação, a norma em causa viola o disposto no artigo
13° da Constituição da República Portuguesa (CRP), i.e., viola o princípio da
igualdade.
3 — Com efeito, na determinação do âmbito material de exclusão previsto no n° 3
do artigo 10° da Lei n° 23/96 devem imperar argumentos de índole substancial,
justificando os clientes de BT e os clientes de AT protecções distintas, uma vez
que todos estes últimos (incluindo MT e MAT) são fornecidos de energia eléctrica
entregue num posto de transformação, propriedade desses clientes,
transformando-a e consumindo-a da forma que melhor entenderem. Aquilo que
distingue a MT da BT é o que aproxima a primeira da AT, designadamente, quanto
ao licenciamento, quanto às condições e termos contratuais e à estrutura de
facturação, conforme resulta da factualidade alegada e/ou provada nos autos,
‘maxime’, dos artigos 9° a 41° da PI e 26° a 39° da réplica, que se dão aqui por
reproduzidos.
4 — Em abono dessa teste, expende o Ilustre Professor Doutor Jorge Miranda, em
Parecer elaborado em 7 de Março de 2009 (e portanto de elaboração superveniente)
que se junta e dá por integralmente reproduzido como doc. 1, ver infra — que
‘(...) admitir que as regras sobre prescrição e caducidade do pagamento da
energia eléctrica pudessem estender-se aos consumidores de média tensão
equivaleria a atribuir-lhes uma protecção não justificada e, portanto, excessiva
no confronto dos consumidores de baixa tensão e a diminuir, não menos
injustificadamente, a capacidade financeira do prestador de serviço, com
previsíveis consequência na qualidade desse serviço e no interesse geral do
país’; ‘E, assim, por se vir a tratar igualmente o que é desigual ou não
semelhante — a média e a baixa tensão — ou desigualmente ou que é igual ou
semelhante — a média e a alta tensão — tal interpretação colidiria, de modo
ainda mais frontal, com o princípio da igualdade’.
5 — A questão da constitucionalidade da interpretação/aplicação da norma foi
suscitada pela recorrente nas suas alegações de apelação junto do Tribunal da
Relação de Coimbra, cf. fls. 57 das alegações, pontos 67 a 71, que se dão aqui
por integralmente reproduzidos.
6 — Acresce que a decisão deste Alto Tribunal põe termo ao processado, nos
termos e para os efeitos do disposto no art° 70°, n° 2, b) da LTC.
7 — Requer-se ainda, ao abrigo do disposto no artigo 706°, n° 2, do CPC, a
junção aos autos do sobredito Parecer subscrito pelo Exm° Senhor Professor
Doutor Jorge Miranda, como doc. 1, tanto mais que tal documento se revela útil
em função da posição expendida por este Alto Tribunal.”
2. Notificada para produzir alegações, a Recorrente concluiu as mesmas do
seguinte modo:
“1. A decisão proferida pelo STJ está ferida de inconstitucionalidade.
2. A decisão recorrida decide pela caducidade do direito da A. dado que entende
que o n° 3 do art°10° da Lei n° 23/96 não inclui os fornecimentos em média
tensão.
3. Trata-se duma interpretação inconstitucional da referida norma.
4. O preceito assim interpretado deve considerar-se inconstitucional por
desconforme com os princípios da proporcionalidade e da igualdade consignados na
Constituição.
5. Admitir que as regras sobre prescrição e caducidade do pagamento de energia
da Lei n° 23/96 possam estender-se aos consumidores de média tensão, admitir que
eles não se achem compreendidos no n° 3 do art° 10°, equivale a atribuir-lhes um
excesso de protecção em confronto com a protecção conferida aos consumidores em
baixa tensão, aos clientes domésticos e aos consumidores finais.
6. Equivale a infringir o princípio da proporcionalidade nas suas três vertentes
de adequação, necessidade e racionalidade. E, como logo resulta, tal implica
outrossim ofender o princípio da igualdade.
7. De resto pode ver-se o problema do prisma da lesão, porquanto o excesso da
protecção dado a uns consumidores — os da média tensão, na hipótese de não
estarem abrangidos pela ressalva do art° 10.º, n.º 3 — redunda indirectamente em
prejuízo dos consumidores de baixa tensão.
8. Com efeito, as vantagens de carácter financeiro, que àqueles são conferidas
no domínio da prescrição e da caducidade do pagamento acabam por diminuir a
capacidade do prestador de serviço de fornecimento de energia eléctrica para o
prestar com a máxima qualidade como exige a lei.
9. Circunscrita à alta tensão, no estrito sentido técnico do termo, a ressalva
da prescrição e da caducidade constante do art° 10°, n° 3 da Lei 23/96 padece de
inconstitucionalidade, por tratar desigualmente a alta e a média tensão (e, sem
se esquecer a muito alta tensão), quando é certo que coincidem, como atrás se
patenteou ad abundantiam, nos aspectos básicos que importam para a aplicação do
regime jurídico.
10. Significa isto então que os tribunais, em obediência ao art° 204° da
Constituição, julgando inconstitucional o preceito com essa interpretação, não
deve mais fazer do que deixar de a aplicar-
11. Não pode ser. Seria, de todo em todo, contraditório com o objectivo precípuo
do legislador e com a coerência do princípio: os consumidores em alta tensão
acabariam por também beneficiar da prescrição e da caducidade do pagamento do
preço do serviço ao fim de seis meses.
12. Esse resultado acarretaria, por outra banda, um significativo sacrifício
financeiro do prestador do serviço de energia eléctrica, desproporcionado,
injusto e com possíveis consequências na qualidade do serviço e no interesse
geral do País.
13. O encargo dos tribunais, recte do Tribunal Constitucional, apenas pode ser
outro: não afastar a alta tensão, mas sim adjuntar-lhe a média tensão,
acrescentar, por via interpretativa e integrativa ao art° 100 n° 3, o segmento
que falta de modo a cobrir a média e a muito alta tensão; em suma, proceder
àquilo a que se chama uma decisão aditiva, seguindo a prática que o próprio
Tribunal Constitucional (à semelhança dos de outros países) tem várias vezes já
adoptado.
14. Assim, o Tribunal Constitucional deve considerar a interpretação dada pelo
STJ ao art° 10° da Lei n° 23/96 inconstitucional e invocando os valores e
interesses constitucionais conferir à norma uma interpretação que restabeleça o
respeito pelo princípio da igualdade e da proporcionalidade em conformidade com
o Parecer do Prof. Jorge Miranda.
15. Se assim não se entender sempre se refere que a A. invoca na sua PI e na sua
Réplica que o fornecimento de energia eléctrica à tensão de 15.000 volts
efectuado à Ré tem asa características próprias de um fornecimento de energia
eléctrica em alta tensão.
16. Por outro lado, a A. invoca tais características próprias de fornecimento de
energia eléctrica em alta tensão como distintas dos fornecimentos em baixa
tensão.
17. Atentemos sobretudo aos factos invocados nos art°s 26 a 39 da Réplica mas
também aos factos 9 a 22 e 31 a 40 da PI.”
3. A Recorrida apresentou contra-alegações pugnando pela não procedência da
inconstitucionalidade suscitada.
4. Na sequência das alegações e contra-alegações, o Relator proferiu o seguinte
despacho:
“O conhecimento de recursos de constitucionalidade interpostos para este
Tribunal pressupõe que se encontrem devidamente observados e cumpridos os
pressupostos enunciados na Constituição e na Lei do Tribunal Constitucional
(LTC). Desde logo, assumindo o recurso de constitucionalidade, em qualquer das
suas modalidades, um carácter exclusivamente normativo, apenas cabe conhecer da
constitucionalidade de normas ou dimensões normativas, não havendo lugar a
qualquer apreciação ou sindicância da decisão judicial que antecede e fundamenta
a pronúncia deste Tribunal Constitucional.
De igual modo, o conhecimento de recursos interpostos ao abrigo do artigo 70.º,
n.º 1, alínea b), da LTC pressupõe que, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, do
mesmo diploma, a questão de inconstitucionalidade haja sido suscitada pelo
recorrente em moldes processualmente adequados.
Notifique, por conseguinte, a Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 704.º,
do CPC, aplicável ex vi artigo 69.º da LTC, para, no prazo de 10 (dez) dias, se
pronunciar sobre a eventualidade de o recurso não ser objecto de conhecimento
pelo facto de não ter ocorrido suscitação adequada da questão da
inconstitucionalidade e, adicionalmente, de o objecto do recurso se relacionar
com a qualificação dos factos e a adequada interpretação do direito ordinário
efectuado pelas instâncias recorridas, tratando-se assim de matérias que escapam
à competência deste Tribunal.”
5. A Recorrente apresentou a seguinte resposta quanto a estas questões prévias:
“Com todo o devido respeito — que muito é! — entende a recorrente que o recurso
de constitucionalidade por si interposto obedece, integralmente, ao preceituado
nos artigos 70°, n° 1 b) e n° 2, 71° e 72°, n° 2, todos da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, i,e., Lei n° 28/82, de
15.11, revista, ‘brevitatis causa’, LTC.
Seguindo os ensinamentos de GUILHERME DA FONSECA e INÊS DOMINGOS (in ‘Breviário
de Direito Processual Constitucional, Recurso de Constitucionalidade’, 2 Edição,
Coimbra Editora, 2002, pág. 43 e ss), o recurso (‘rectius’, o conhecimento do)
de constitucionalidade interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do n° 1 do
artigo 70° da LTC obedece aos seguintes pressupostos:
a) que a decisão recorrida tenha aplicado norma arguida de inconstitucional
durante o processo;
b) que tenha sido o (ora) recorrente a suscitar essa inconstitucionalidade no
decurso do processo (cf. artigos 280°, n° 4, da CRP e 72°, no 2, da LTC);
c) que a decisão recorrida não seja passível de recurso ordinário, por se terem
esgotado todos os meios de reacção legalmente admissíveis (regra da exaustão dos
meios ordinários de recurso).
Como bem refere GUILHERME DA FONSECA — e por argumento ‘a pari’ relativamente ao
disposto na al. a) do n° 1 do artigo 70.º da LTC —, o objecto cognitivo do
recurso prende-se com a aplicação efectiva de norma cuja inconstitucionalidade
tenha sido suscitada no decurso do processo.
De acordo com o A. retro, e como é jurisprudência curial desse Alto Tribunal, é
necessário que a norma arguida de inconstitucional — ou a dimensão, trecho ou
interpretação da mesma (cf. ob. cit., pág. 45, e a alusão a um acervo
significativo de Arestos do Tribunal Constitucional) — constitua o fundamento
material, a ‘ratio decidendi’ do julgamento da causa.
A aplicação da norma pode ser expressa ou implícita, cf. resulta do Ac. 318/90
do Tribunal Constitucional, de 12.12.1990, relatado pelo (então) Exm° Senhor
Juiz Conselheiro Alves Correia, disponível em www.tribunalconstitucional.pt.
Assim,
Nas alegações de revista apresentadas junto do Supremo Tribunal de Justiça, STJ,
a fls., a ora recorrente, vide conclusões 67 e ss., suscitou a
inconstitucionalidade (‘maxime’, por violação do princípio da igualdade) da
interpretação conferida ao n° 3 do artigo 10° da Lei n° 23/96 no sentido de
integrar, no âmbito de exclusão (e protecção) da referida norma apenas os
fornecimentos em alta tensão ‘strico sensu’, excluindo os fornecimentos em muito
alta tensão e média tensão.
O STJ confirmou a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, de fls., que, no
respectivo dispositivo, exarou que ‘Face a todo o exposto, pode concluir-se que
os consumos em ‘média tensão’ não se integram na excepção prevista no n° 3 do
artigo 10.º da Lei n° 23/96 pelo que lhes é aplicável o regime de caducidade do
direito ao recebimento da diferença de preço constante do n° 2 do mesmo artigo.
Não merece, pois, o Sr. Juiz censura por ter conhecido da excepção peremptória
de caducidade no despacho saneador, em obediência ao preceituado no artigo
510.º, n.º 1, al. b) do Cod. Proc. Civil, uma vez que do prosseguimento do
processo não depende a aquisição de mais e melhores argumentos para a decisão
desta questão’.
Assim, e em sede de revista, o STJ validou a interpretação conferida pelas
Instâncias ao n.º 3 do artigo 10.º da Lei n° 23/96, servindo-se da mesma, em
sede de qualificação jurídica dos factos apurados pelas Instâncias, para negar
provimento ao recurso interposto pela A..
Acresce que, e pronunciando-se ‘expressis verbis’ a respeito da arguição de
inconstitucionalidade da interpretação conferida à referida norma, o STJ refere,
no Acórdão de revista, e entre o mais, o seguinte:
‘Nem isto viola qualquer principio constitucional, maxime o princípio da
igualdade. Porque nada impede, antes exige, que se possa tratar desigualmente
aquilo que é desigual (...)’, cf. pág. 10 do Acórdão do STJ, a fls.
Assim, a ‘ratio decidendi’ do Acórdão do STJ — na esteira do Acórdão do Tribunal
da Relação de Coimbra (e da 1.ª Instância) — assenta no provimento da excepção
peremptória de caducidade do direito da A., com fundamento na interpretação
conferida ao n.º 3 do artigo 10.º da Lei n° 23/96.
Isto é, a interpretação que se reputou de inconstitucional nas alegações de
Revista.
Com todo o devido respeito, a aplicação de tal normativo é, de facto, a ‘ratio
decidendi’ da causa.
Dito isto,
Cabe-nos assinalar que a arguição de inconstitucionalidade teve lugar ‘no
decurso do processo’.
Com efeito, entende-se (e uma vez mais seguindo de perto os ensinamentos
práticos de GUILHERME DA FONSECA et allii) que a questão é levantada no decurso
do processo quando o seja antes de o Tribunal recorrido proferir a decisão
final.
‘In casu’, foi o que se verificou (a questão é suscitada nas alegações de
revista, sendo que o STJ se pronunciou a respeito de tal questão, de modo
expresso, ainda que rejeitando o argumentário aduzido pela A.).
Sendo que, e para os efeitos do n° 2 do artigo 72.º da LTC, ‘parte final’, ao
suscitar tal questão nas conclusões do recurso (que estabelecem o âmbito
cognitivo do Tribunal de recurso), a A. criou para o STJ a obrigação de se
pronunciar sobre tal questão (‘rectius’, ainda que o seu silêncio a esse
respeito, como supra afirmado, conduzisse à conclusão de que haveria aplicação
implícita de tal normativo ou interpretação, reputado de inconstitucional).
Obrigação que o STJ claramente interpretou, não enjeitando pronunciar-se sobre a
questão da (in)constitucionalidade.
Assim,
Cremos que a questão da inconstitucionalidade foi adequadamente suscitada
perante o STJ (que é, ‘in casu’, o Tribunal recorrido), em face do disposto no
artigo 72°, n° 2, da LTC.
Outrossim, a questão foi colocada ao STJ antes deste proferir a decisão final
(que, no caso dos autos, corresponde, e em face da regra da ‘exaustão dos meios
ordinários de recurso’, à decisão final do processo, cf. artigo 70.º, n° 2, da
LTC).
Por último, dúvidas não haverá de que foi a ora recorrente a suscitar a questão
da inconstitucionalidade, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos
72°, n° 2 e 280.º, n° 4 da CRP.
Deste modo, cremos que a questão da inconstitucionalidade foi adequadamente
suscitada, i,e., em moldes processualmente adequados.
Dito isto,
Cumpre afirmar, e no que concerne ao facto do objecto do recurso ‘(...) se
relacionar com a qualificação dos factos e a adequada interpretação do direito
ordinário efectuado pelas instâncias recorridas, tratando-se assim de matérias
que escapam à competência (...)’ do Tribunal Constitucional,
Que crê a recorrente que tal avulta não do seu requerimento de interposição de
recurso, ou do ‘iter’ processual respectivo,
Mas do teor das suas alegações de recurso de constitucionalidade, de fls., nas
quais, a título subsidiário, e apenas para o caso de o Tribunal Constitucional
não julgar inconstitucional a interpretação conferida ao n° 3 do artigo 10° da
Lei n° 23/96 pelo Tribunal recorrido (no sentido de excluir os fornecimentos de
energia eléctrica em média tensão, como melhor resulta das alegações de fls.),
Se alude à eventual baixa do processo, a fim de apurar a factualidade
controvertida desconsiderada peras Instâncias e pelo STJ.
Ora, em face ao ora suscitado pelo Exm° Senhor Juiz Conselheiro-Relator, a
recorrente desiste expressamente, para todos os legais efeitos, de tal segmento
das alegações de recurso de constitucionalidade.
O qual, de resto, não tem eco nem respaldo no âmbito cognitivo estabelecido pelo
requerimento de interposição de recurso que naturalmente antecede as referidas
alegações.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
Questão prévia
6. No seu requerimento de recurso a Recorrente, nas alegações que formulou
perante o Supremo Tribunal de Justiça, invocou o seguinte:
“67. Que esbarraria na ‘estranha’ não autonomização da MAT.
68. 0 âmbito de exclusão do n° 3 do artigo 10° da Lei n° 23/96 apenas pode ser
traçado por apelo à concepção bipolar BT/AT, integrando esta a AT em sentido
estrito, a MT e a MAT.
69. O entendimento contrário, é inconstitucional, inconstitucionalidade
— por violação, entre outros, do princípio da igualdade — que se invoca, para
todos os legais efeitos.
70.Sobretudo, perante as reservas que se colocam quanto ao tratamento a dar aos
casos de ‘erro’ que impliquem o fornecimento de energia em MAT.
71.Estranha-se, outrossim, que o Tribunal da Relação de Coimbra faça tábua rasa
desta similitude substancial.”
6.1. Como é sabido, o sistema português de fiscalização concreta da
constitucionalidade, de que o Tribunal Constitucional constitui a respectiva
cúpula, assenta numa arquitectura exclusivamente normativa. Deste modo, os
recursos de fiscalização concreta apenas podem ter por objecto normas ou
dimensões normativas. O Tribunal Constitucional aprecia, deste modo, o preceito
ou preceitos legais ou a interpretação que dos mesmos haja sido feita em termos
de da mesma decorrer um critério normativo perfeitamente destacável da decisão e
susceptível de aplicação a outros casos. Quando se sustenta a
inconstitucionalidade de determinada dimensão normativa ou critério normativo,
os quais hajam sido aplicados enquanto ratio decidendi, a suscitação de tal
questão em moldes processualmente adequados – nos termos do artigo 72.º, n.º 2,
da LTC – impõe ao respectivo sujeito processual a enunciação desse mesmo
critério ou padrão normativo. A satisfação deste ónus processual em tais
situações implica, assim, um esforço acrescido de concretização, em termos
claros e perceptíveis, da norma que, em concreto, fundará a decisão recorrida.
Atendendo a que tal norma não se identificará com o conteúdo objectivo ou
literal de determinados preceitos legais, resultando antes da respectiva
interpretação ou aplicação ao caso concreto, o sujeito processual em causa, se
pretender posteriormente lançar mão da fiscalização concreta da
constitucionalidade nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, incorre
no ónus de enunciar, durante o processo, a “(…) regra abstractamente enunciada e
vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica (…)” (cfr. Lopes do Rego,
“O objecto idóneo dos recursos de fiscalização da constitucionalidade: as
interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional, in
Jurisprudência Constitucional, n.º 3, Julho-Setembro de 2004, p. 7). Como se
afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 367/94 (publicado no Diário da República,
II Série, n.º 207, de 7 de Setembro de 1994): “(…) esse sentido (essa dimensão
normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser
julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos
de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem
a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não
deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição.”
6.2. Não constitui modo adequado de identificação da interpretação normativa que
se reputa inconstitucional afirmar-se que determinado preceito deve ser
interpretado de determinado modo e que o entendimento contrário será
inconstitucional, pretendendo bastar-se com esta afirmação a satisfação do ónus
de suscitação adequada durante o processo da questão de constitucionalidade. O
facto de o critério normativo em causa vir perfeitamente identificado no
requerimento de recurso de constitucionalidade evidencia, aliás, a perfeita
exequibilidade do cumprimento de tal ónus. Tal não é suficiente, no entanto,
para que se possam tomar como preenchidos pressupostos processuais cuja
observância se impõe, salvo situações excepcionais e anómalas – que não se
verificam nos autos –, em momento anterior à prolação da decisão final.
Tanto basta para não conhecer do objecto do recurso.
III – Decisão
7. Nestes termos acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional, em não tomar
conhecimento do recurso.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 uc.
Lisboa, 13 de Abril de 2010
José Borges Soeiro
Gil Galvão
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira – com a
declaração em anexo.
Rui Manuel Moura Ramos. Vencido, nos
termos da declaração junta
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevo a solução, mantendo o entendimento de que, conforme se decidiu no
Acórdão n.º 321/09, a norma impugnada não foi a norma efectivamente aplicada na
decisão recorrida.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Discordei da presente decisão na medida em que nela se sustenta não haver sido
satisfeito o ónus de suscitação adequada, durante o processo, da questão de
constitucionalidade, previsto no artigo 72º, nº 2, da LTC. Afirmando que “o
critério normativo em causa [se encontra] perfeitamente identificado no
requerimento do recurso de constitucionalidade”, o acórdão considera
insuficiente tal circunstância, pretendendo que a suscitação anterior à decisão
final (perante o tribunal recorrido portanto) seria deficiente. Só que, para
assim concluir, recorre ao critério que o Tribunal Constitucional tem utilizado
para apreciar a suficiência da enunciação da interpretação normativa no
requerimento de interposição do recurso (dever ela “ser enunciada de forma que,
no caso de vir a ser julgada inconstitucional, o Tribunal a possa apresentar na
sua decisão em termos de se ficar a saber (…) qual o sentido com que o preceito
em causa não deve ser aplicado por, deste modo, afrontar a Constituição”)
transpondo-o para a suscitação perante o tribunal recorrido. Sendo certo que tem
de haver identidade entre a questão previamente suscitada e a questão formulada
no requerimento do recurso, daí não resulta que ambas estejam sujeitas aos
mesmos requisitos de enunciação. Quanto à primeira basta que o tribunal que
deve decidir a causa seja confrontado com a necessidade de resolver uma questão
de constitucionalidade que se apresente em termos perceptíveis.
Tal sucede com o que se afirma nos pontos 68 e 69 das conclusões (fls. 559) das
alegações apresentadas perante o tribunal recorrido (o Supremo Tribunal de
Justiça) ao dizer-se que é inconstitucional o entendimento do âmbito da exclusão
do regime da caducidade que se contem no nº 3 do art.º 10 da Lei nº 23/96 que
nela integre apenas a energia em alta tensão (e não também em média tensão). O
que se afirmara já na citação de fls. 537 e no remate do discurso de fls. 538:
que a concepção (dita puramente mecânica) da alta tensão contida no nº 3 daquele
artigo 10º (a que não inclui a média tensão) seria violadora do princípio da
igualdade.
Rui Manuel Moura Ramos
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