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Processo n.º 642/09
2.ª Secção
Relator: Juiz Conselheiro Benjamim Rodrigues
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
A ? Relatório
1 ? O Ministério Público, junto do 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça,
recorre para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º
1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na sua actual versão (LTC),
da sentença daquele tribunal, de 07 de Abril de 2009, que recusou a aplicação do
n.º 7 do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 30/2008, de 20 de Fevereiro, com
fundamento na sua inconstitucionalidade orgânica e material, por violação do
disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa (CRP) e do princípio do acesso ao direito, na sua vertente do
princípio do contraditório e princípio da proporcionalidade (artigo 20.º, n.ºs 1
e 4, da CRP).
2 ? Alegando, no Tribunal Constitucional, o Procurador-Geral Adjunto concluiu a
sua argumentação com a seguinte síntese conclusiva:
«1- Nos termos do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, se
findo o contrato, o locatário não proceder à entrega do bem ao locador, este
pode requerer ao tribunal que esse bem lhe seja entregue imediatamente.
2- Dadas as características específicas do contrato de locação financeira, o
regime desta ?providência cautelar de entrega judicial?, afasta-se, em alguns
aspectos, do vigente para o processo cautelar comum, adequando-se àquelas
especificidades.
3- O n.º 7 do artigo 21.º, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008 de 25
de Fevereiro, veio permitir que, decretada a providência, o tribunal,
posteriormente, possa emitir um juízo sobre a causa principal, tornando-se,
dessa forma, desnecessário a propositura da acção, cujo objecto seria,
materialmente, o mesmo da providência.
4- No entanto, esse juízo sobre a causa principal, só pode ser emitido após
audição das partes, e se no processo se encontrarem todos os elementos
necessários à resolução definitiva do caso.
5- Sendo obrigatória a audição das partes, o locatário tem oportunidade de,
nessa audição, exercer plenamente o contraditório em relação à pretensão do
locador.
6- Esta circunstância aliada ao facto de o tribunal só poder decidir se tiver os
elementos necessários para tal, faz com que a norma daquele n.º 7 do artigo 21.º,
na dimensão em causa, não seja inconstitucional por violação do direito de
acesso aos tribunais e do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.ºs 1
e 4, da Constituição).
7- A norma também não é organicamente inconstitucional, porque tratando-se de
uma norma de processual civil e não levando à alteração de competências dos
tribunais, não viola o artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e p), da Constituição.
8 - Termos em que deverá proceder o presente recurso».
3 ? A recorrida não contra-alegou.
B ? Fundamentação
4 ? Na perspectiva da melhor compreensão da questão decidenda, importa dar conta
do quadro processual de que a mesma emerge.
O Banco A. S.A., propôs um processo de providência cautelar de entrega judicial
do bem locado, ao abrigo do disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95,
de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 340/2008, de 25 de
Fevereiro, alegando ter celebrado com a requerida B., Lda., um contrato de
locação financeira, que teve por objecto o veículo ligeiro de mercadorias, marca
Mitsibishi, modelo Fuso Canter, n.º ?-..-.., que foi entregue à requerida, sendo
que esta deixou de pagar as rendas e neste contexto, o requerente resolveu o
contrato, mas a requerida não procedeu à entrega do veículo.
5 ? Por sentença, de 17 de Novembro de 2008, proferida sem prévia audição da
requerida, o Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, decretou a providência
requerida, ordenando ? entrega imediata ao requerente do veículo automóvel atrás
identificado, devendo fazer-se tal entrega judicial de imediato e através de
funcionário judicial?.
6 ? Notificado para, no prazo de 10 dias, propor a acção da qual a providência
cautelar depende, o Banco A. veio requerer o prosseguimento dos autos de acordo
com o disposto no Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro e que o tribunal
decidisse a relação material ou a causa principal em litígio, com dispensa da
proposição de acção autónoma definitiva.
7 ? Esse pedido foi indeferido pela decisão recorria com base nas seguintes
considerações:
«II. Em síntese interpretativa do requerimento, o requerente pretende que, ao
invés de (impulsionar) acção autónoma definitiva, de que o presente procedimento
cautelar é dependente, nos termos gerais consagrados para a estrutura (processual)
dos procedimentos cautelares, conforme prescrito na norma do art. 389°, nº 2, do
CPC, o tribunal accione o disposto no art. 21°, do DI. 149/95, de 24 de Junho,
na redacção saída do DI. 30/2008, de 25 de Fevereiro.
De acordo com o dispositivo (saído da redacção conferida pelo recente DL. 30/2008)
em causa, e concretamente de acordo com o seu nº 7, ?decretada a providência
cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal,
excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do nº 2, os
elementos necessários à resolução definitiva do caso.? O nº 2, por seu turno,
prescreve que ?Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos
requisitos previstos no número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do
registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre
que as condições técnicas o permitam, por via electrónica?
Pode retirar-se do preâmbulo deste diploma que esta nova redacção dada ao art.
21°, do DL. 149/95, se insere/inseriu no ?esforço de racionalização da justiça
que foi iniciado em 2005 com a aprovação do Plano de Acção para o
Descongestionamento dos Tribunais (PADT), o XVII Governo Constitucional aprovou,
através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de Novembro, um
novo conjunto de medidas destinadas a reduzir a pressão da procura sobre os
tribunais e, assim, melhorar a sua capacidade de resposta.? E um dos propósitos
anunciados no mesmo preâmbulo foi, específica e concretamente, (...) a revisão
do regime de locação financeira, no sentido de evitar acções judiciais
desnecessárias.?
Assim e em primeiro lugar, o DL. em referência vem esclarecer que o cancelamento
do registo da locação financeira é independente de qualquer tipo de acção
judicial intentada para a recuperação da posse do bem locado. Por consequência,
clarifica que é desnecessária a propositura de qualquer acção judicial para o
cancelamento desse registo, que se pode efectuar pelas vias administrativas
normais. Ainda em matéria de cancelamento do registo da locação financeira, o
Decreto-Lei n.º 30/2008 prevê a apresentação destes pedidos por via electrónica,
estabelecendo, ademais, que o tribunal deve verificar o respectivo cancelamento,
em caso de acção judicial, através de consultas electrónicas, assim se
dispensando o envio de documentos e certidões em papel pelos requerentes ou
autores, bem como a comunicação entre tribunal e conservatória em suporte de
papel. Em segundo lugar, permite -se ao juiz decidir a causa principal após
decretar a providência cautelar de entrega do bem locado, extinguindo -se a
obrigatoriedade de intentar uma acção declarativa apenas para prevenir a
caducidade de uma providência cautelar requerida por uma locadora financeira ao
abrigo do disposto no artigo 21.° do Decreto -Lei n.º 149/95, de 24 de Junho,
alterado pelos Decretos -Leis n.ºs 265/97, de 2 de Outubro, e 285/2001, de 3 de
Novembro. Evita -se assim a existência de duas acções judiciais ? uma
providência cautelar e uma acção principal ? que, materialmente, têm o mesmo
objecto: a entrega do bem locado.?
Para tal, a lei expressa, então, que, como já dito, ?decretada a pro vidência
cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal?.
*
III. A interpretação do normativo em causa, na vertente de que pela mera ?audição
das partes?, após ter sido decretada, cautelarmente e com fim antecipatório, a
entrega do bem/objecto locado, se pode antecipar o julgamento/decisão definitiva
sobre a ?causa?, com ?antecipação do juízo sobre a causa?, afigura-se-me
ilegítima, por violação dos princípios constitucionais que enformam o processo
civil.
O art. 20º, da Constituição da República Portuguesa (doravante designada pela
sigla CRP), estatui, sob o a epígrafe ?acesso ao direito e tutela jurisdicional
efectiva?, que ?A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para
defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a
justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos? (nº 1). Por seu
turno, o nº 4, consagra que ?Todos têm direito a que numa causa em que
intervenham, seja objecto de decisão em prazo razoável mediante processo
equitativo?. -
O direito fundamental ao ?processo equitativo?, aliás, está igualmente
consagrado da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no seu art. 10º.
No que tange à componente do direito de acesso aos tribunais ? ou de acesso à
tutela jurisdicional ? o Tribunal Constitucional tem entendido que o mesmo
implica a garantia de uma eficaz e efectiva protecção jurisdicional, desdobrada:
no direito, para defesa de um direito ou interesse legítimo, de acesso a órgãos
independentes e imparciais por quem goza estatutariamente de prerrogativas de
inamovibilidade e irresponsabilidades quanto às suas decisões (neste sentido,
Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada,
3ª ed., pp 161 e seguintes).
Direito fundamental, o acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses
legítimos há-de imperativamente ser facultado pelo legislador em termos que
permitam uma tutela efectiva desses direitos e interesses.
Mas dispõe o legislador de uma considerável margem de liberdade na regulação
desse acesso. Liberdade que, no entanto, não pode configurar os meios utilizados
para atingir o desiderato constitucional, de modo tal que o acesso se torne
injustificada ou desnecessariamente complexo.
O acesso ao direito e aos tribunais é também elemento integrante do princípio
material da igualdade e do próprio princípio democrático, pois que este não pode
deixar de exigir a democratização do direito.
Para além do direito de acção, que se materializa através do processo,
compreendem-se no direito de acesso aos tribunais, nomeadamente: (a) o direito a
prazos razoáveis de acção ou de recurso; (b) o direito a uma decisão judicial
sem dilações indevidas; (c) o direito a um processo justo, baseado nos
princípios da prioridade e da sumariedade no caso daqueles direitos cujo
exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas; (d) o
direito a um processo de execução, ou seja, o direito a que, através do órgão
jurisdicional se desenvolva e efective toda a actividade dirigida à execução da
sentença proferida pelo tribunal.
Há-de ainda assinalar-se como parte daquele conteúdo conceitual «a proibição da
indefesa», que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do
particular perante os órgãos judiciais junto dos quais se discutem questões que
lhes dizem respeito. A violação do direito à tutela judicial efectiva, sob o
ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo
quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais de
processo acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de
alegar, daí resultando prejuízos efectivos para os seus interesses (cfr. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed.,
Coimbra, 1993, p. 163 e 164, e Fundamentos da Constituição, Coimbra, 1991, p. 82
e 83).
Entendimento similar tem vindo a ser definido pela jurisprudência do Tribunal
Constitucional, que tem caracterizado o direito de acesso aos tribunais como
sendo entre o mais um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se
deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e
independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das
regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas
razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do
adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras (cfr. os
Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 404/87, 86/88 e 222/90, Diário da
República, II Série, de, respectivamente, 21 de Dezembro de 1987, 22 de Agosto
de 1988 e 17 de Setembro de 1990).
Em todas estas decisões se concluiu que, à luz do sentido genérico atribuído ao
direito fundamental de acesso aos tribunais, que leva implicada/implícita a
proibição da indefesa.
O direito de acesso aos tribunais é ?o direito a ver solucionados os conflitos,
segundo a lei, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e
independência, e perante o qual as partes se encontrem em condições de plena
igualdade no que diz respeito à defesa dos respectivos pontos de vista? (neste
sentido, Ac. nº 346/92, do Tribunal Constitucional, publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, volume 23°, páginas 451 e seguintes).
E um tal direito de acesso aos tribunais é dominado por uma imanente ideia de
igualdade, um a vez que o princípio da igualdade vincula todas as funções
estaduais, a jurisdicional incluída (neste sentido, o Ac, n°.147/92, do Tribunal
Constitucional, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 21°,
páginas 623).
A vinculação da jurisdição ao princípio da igualdade, a mais do que significar
igualdade de acesso à via judiciária, significa igualdade perante os tribunais,
de onde decorre que ?as partes têm que dispor de idênticos meios processuais
para litigar, de idênticos direitos processuais?. É o princípio da igualdade de
armas ou da igualdade das partes no processo, que constitui uma das essentialia
do direito a um processo equitativo (acórdão nº. 223/95, publicado no Diário da
República, II série, de 27 de Junho de 1995).
O processo civil tem estrutura dialéctica ou polémica, pois que assume a
natureza de um debate ou discussão entre as partes. E estas ? repete-se ? devem
ser tratadas com igualdade. Para além do princípio do dispositivo ou da livre
iniciativa e do ditame da livre apreciação das provas pelo julgador, constituem,
assim, traves mestras do processo o princípio do contraditório e o da igualdade
das partes (igualdade de armas).
O princípio do contraditório (audiatur et altera pars), enquanto princípio
reitor do processo civil, exige que se dê a cada uma das partes a possibilidade
de ?deduzir as suas razões (de facto e de direito)?, de ?oferecer as suas provas?,
de ?controlar as provas do adversário? e de ?discretear sobre o valor e
resultados de umas e outras? (cfr., neste sentido, Prof. Manuel de Andrade, in
Noções Elementares de Processo Civil, 1 Coimbra, ed. de 1956, a págs. 364).
De facto, também o processo civil tem que ser, como se disse, um due process of
law, um processo equitativo e leal. E isso exige, não apenas um juiz
independente e imparcial ? um juiz que, ao dizer o direito do caso, o faça
mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores, a nada mais obedecendo
do que à lei e aos ditames da sua consciência ? como também que as partes sejam
colocadas ?em perfeita paridade de condições, desfrutando, portanto, idênticas
possibilidades de obter a justiça que lhes é devida? (cfr., ainda, Prof. Manuel
de Andrade, obra citada, a págs. 365).
Cada uma das partes há-de, pois, poder expor as suas razões perante o tribunal (princípio
do contraditório). E deve poder fazê-lo em condições que a não desfavoreçam em
confronto com a parte contrária (princípio da igualdade de armas).
Ora, entende-se que a equidade exigível, na vertente da ?igualdade de armas?, é
claramente restringida quando, por imposição da norma em análise (nº 7, do art.
21°, na redacção do DL. 30/2008, de 20 de Fevereiro) e depois de decretada (em
sede de índole meramente cautelar/provisória) a entrega de um bem (veículo
automóvel, no caso), com base em alegado incumprimento contratual que determinou
a resolução por comunicação de uma das partes outorgantes à outra, a parte (inadimplente)
fica confinada a ?ser ouvida?, sem mais, ou seja, sem possibilidade exercício
efectivo e pleno de contraditório, nomeadamente com apresentação de provas, no
sentido de poder infirmar um dos pressupostos da ordenada entrega do bem locado
? e que é a regularidade da declaração (unilateral) de resolução contratual.
Ao permitir-se (e pretender-se) um ?juízo antecipado? sobre a ?causa principal?
e sendo que o objecto ?desta causa principal? por referência à necessária causa
de pedir que pode sustentar o pedido de entrega, por efeito de resolução
contratual por incumprimento, é muito mais lato/abrangente que o simples pedido/pretensão
de entrega, está-se necessariamente a coarctar o direito de defesa do requerido.
Ou seja, o conteúdo do direito de defesa do requerido em providência cautelar,
quando coarctado desta forma, fica diminuído na sua vertente de exercício pleno
do contraditório e da igualdade de armas.
Conclui-se, pois que a norma em causa padece de vício de inconstitucionalidade
material ? por ofensa do princípio do acesso ao direito (na sua vertente de
princípio do contraditório e princípio da proporcionalidade).
Ou seja e concluindo, a interpretação normativa do segmento do dispositivo em
causa (nº 7, do art. 21°), na parte em que, com dispensa da acção de cariz
definitivo, permite antecipar um juízo (de mérito definitivo) sobre a causa
principal, não é compatível com nenhuma destas exigências de conformidade
constitucional (vinculante): não se mostra necessária para os efeitos
pretendidos.
Acresce que a interpretação em causa, na medida em que restringe os direitos (processuais)
de uma das partes, viola igualmente o princípio da igualdade decorrente do art.
13°, nº 2, do mesmo texto fundamental, na vertente da proibição de discriminação.
*
Para além do vício da inconstitucionalidade material, a norma em causa é também
orgânicamente inconstitucional.
Na verdade e na medida em que a mesma contende com as garantias do processo
civil (restringindo-as), cai no âmbito de reserva legislativa da Assembleia da
República, nos termos do art. 165°, nº 1, al. b), da CRP, sendo pois que e não
tendo havido autorização legislativa para tanto, a iniciativa governamental é,
por isso, inconstitucional por violação da reserva legislativa.
Há, pois, que formular um juízo de desconformidade constitucional da norma, o
que determina a sua não aplicação, por ilegal.
*
IV. Em face do exposto e com base na inconstitucionalidade da norma em causa (dispositivo
do nº 7, do art. 21°, em análise), indefere-se o requerido (a aplicação da mesma).
*
Notifique e registe.»
8.1 ? Como se constata do relatado, a decisão recorrida considerou que a norma
cuja aplicação recusou sofria de inconstitucionalidade orgânica, por, cabendo no
âmbito de reserva legislativa da Assembleia da República, haver sido emitida a
descoberto de autorização legislativa e violar, assim, o disposto no artigo 165.º,
n.º 1, alínea b), da CRP, bem como de inconstitucionalidade material, por
atentar contra o princípio do acesso ao direito, na sua vertente do princípio do
contraditório e do princípio da proporcionalidade (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da
CRP) e o princípio da igualdade decorrente do artigo 13.º, n.º 2, da Lei
Fundamental.
Vejamos, pois, começando pela imputada inconstitucionalidade orgânica.
Como se vê da história do preceito feita na decisão recorrida, bem como da
funcionalidade jurídica do instrumento processual que está em causa, também, aí
recortada, cuja bondade não se afasta, a norma em crise institui, ao fim e ao
cabo, um instrumento de conhecimento e de decisão, antecipados e definitivos, da
relação material cujo bonus fumus juris suporta, no processo da providência
cautelar, o decretamento da específica providência cautelar de entrega do bem
locado, nos casos em que ?findo o contrato [de locação financeira] por resolução
ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário
não proceder à restituição do bem ao locador? e este haja [antes de requerer a
providência] efectuado ?pedido de cancelamento do registo da locação financeira,
a efectuar por via electrónica, sempre que as condições técnicas o permitam?.
Em termos simplificados, pode dizer-se que a norma permite que, uma vez
apreciada a situação sob litígio, no processo cautelar, para o efeito do
decretamento da providência específica de entrega do bem locado financeiramente
ao seu locador, o tribunal possa conhecer, no mesmo processo, em termos
definitivos dessa situação ou relação jurídico-material a que respeita a lide.
Deste modo, a medida processual delineada pelo legislador tem, essencialmente, a
natureza de um meio processual simplificado, da espécie cível, que está
funcionalizado para o conhecimento e julgamento de um determinado tipo de
relações jurídicas de direito privado emergentes de contrato: no caso, de
relações relacionadas com a cessação do contrato de locação financeira por
resolução ou por decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra que
constituía o título jurídico de detenção e fruição da coisa por banda do
locatário, prendendo-se, deste modo, com a realização, em juízo, dos direitos de
crédito emergentes do contrato de locação financeira e do direito de propriedade
relativo à coisa locada financeiramente.
O artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição estabelece que é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre os direitos, liberdades e
garantias.
Seguramente que esta norma competencial abarca a regulamentação de todos os
direitos fundamentais enunciados no Título II da Parte I da Constituição. Mas
tem-se suscitado dúvidas sobre se a reserva de competência legislativa abrange,
nos mesmos termos, os direitos constitucionais de natureza análoga.
Jorge Miranda começou por defender que só o regime material dos direitos,
liberdades e garantias é que se aplicava, por força do artigo 17.º da CRP, a
todos os direitos fundamentais enunciados no Título II e aos direitos
fundamentais de natureza análoga (1.ª edição do tomo IV do seu Manual de Direito
Constitucional - Coimbra Editora, Coimbra, 1988, págs. 144 e 145).
Nas 2.ª e 3.ª edições do tomo IV do mesmo Manual (Coimbra Editora, Coimbra, 1993
e 2000, págs. 143-145 e 153-155), o mesmo Autor passou, todavia, a distinguir
entre os direitos de natureza análoga constantes do Título I da Parte I (direitos
de acesso a tribunal, de resistência, a indemnização do Estado e de queixa ao
Provedor de Justiça) e os demais direitos. Quanto aos primeiros, começou a
defender que se aplicariam todas as regras constitucionais pertinentes, porque
incindíveis dos princípios gerais com imediata projecção nos direitos,
liberdades e garantias. Já quanto aos segundos, o Autor manteve a posição de que
o artigo 17.º não se reporta senão ao regime material, por duas ordens de razões:
por um lado, porque, atenta a inserção sistemática do artigo 17.º na parte do
direito constitucional substantivo, precedendo imediatamente regras dessa índole,
não se vê como pudesse cobrir também regras orgânicas e de revisão
constitucional; depois, porque, se esses direitos estivessem compreendidos na
reserva de competência legislativa da alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º (anteriormente
168.º) da CRP, não se compreenderia que no mesmo preceito se previssem
especificamente certas reservas que já caberiam naquela ?cláusula geral?.
Diferentemente doutrina José Carlos Vieira de Andrade, sustentando não existirem
razões ?para concluir que o artigo 17.º não se refere, em princípio, à
globalidade do regime, e, pelo contrário, (...) a analogia substancial com os
direitos, liberdades e garantias justifica que também os direitos abrangidos
gozem dos diversos aspectos desse regime, incluindo as garantias da
irrevisibilidade e da protecção resultante da reserva de lei formal?,
acrescentando, porém, que ?a reserva orgânica do Parlamento não é, em si, uma
exigência decorrente da determinabilidade dos direitos, mas sim da sua maior
proximidade valorativa ao núcleo essencial da dignidade da pessoa humana? (Os
Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2.ª edição, Almedina,
Coimbra, 2001, págs. 194 e 195).
O Tribunal Constitucional tem mantido uma orientação próxima desta última tese,
fazendo assentar o radical da diferenciação do regime competencial na regulação
dos aspectos que contendem com o núcleo essencial dos «direitos análogos», por
aí se verificarem as mesmas razões de ordem material que justificam a actividade
legislativa parlamentar no tocante aos direitos, liberdades e garantias? (formulação
do Acórdão n.º 373/91, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) ou, de
acordo com algumas concretizações, na regulamentação de aspectos materiais que
traduzem ?uma garantia de defesa dos cidadãos perante o Estado que é a relação
típica de incidência dos clássicos direitos, liberdades e garantias? (cf.
Acórdão n.º 78/86, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 7.º vol.,
tomo II, pág. 702) ou que se prendem com a ?realização do Homem como pessoa? (cf.
Acórdão n.º 517/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Tem-se por seguro que a opção do legislador quanto à conformação de um processo
específico para a realização judicial dos direitos em causa no procedimento,
quando emergentes das situações jurídicas referidas, em alternativa à regra
geral da autonomia completa do procedimento cautelar e da acção principal conexa,
não cabe no âmbito competencial desses direitos que é abrangido pela reserva de
competência, por não contender com o núcleo essencial do direito de acesso aos
tribunais e ao processo equitativo.
Como se disse no Acórdão n.º 447/93, disponível em www.tribunalconstitucional.pt,
e cuja doutrina veio posteriormente a ser recuperada no Acórdão n.º 132/01,
consultável no mesmo sítio, «(...) em matéria processual a lei fundamental só
inclui na reserva relativa da Assembleia da República a legislação sobre
processo criminal (...), bem como sobre 'o regime geral dos actos ilícitos de
mera ordenação social e do respectivo processo' (...). A edição de disposições
claramente adjectivas, como as referentes à admissibilidade de recursos
jurisdicionais em processo civil, comum ou laboral, não cabe na reserva relativa
de competência da Assembleia da República».
O afirmado relativamente à admissibilidade dos recursos jurisdicionais em
processo civil vale igualmente para a instituição das formas de processo civil e
para a definição da sua tramitação.
É claro que pode esgrimir-se a argumentação de que, na formatação desse processo,
o legislador pode ?tocar? no âmbito de tutela decorrente dos direitos,
liberdades e garantias fundamentais que a Constituição consagra.
Mas esse ?toque? pode quedar-se pela exigência de o legislador, na sua
actividade normativo-constitutiva de regulamentação processual, ter de respeitar
as normas e princípios constitucionais, entre eles se contando aqueles que
consagram direitos fundamentais, como o direito a um processo equitativo, ou
atingir o âmbito de tutela próprio desses direitos sujectivados, como sejam a
liberdade, a saúde, a autonomia pessoal, etc., etc.
A circunstância de, ao legislar sobre a concepção das formas de processo civil e
a sua concreta tramitação, o legislador dever obedecer aos parâmetros
constitucionais ínsitos no conteúdo do direito de acesso aos tribunais, entre
eles se contando o respeito pelo princípio do contraditório, do processo
equitativo, da igualdade, da celeridade razoável, da prioridade e da tutela
plena e efectiva, não demanda que tenha de concluir-se que o legislador está a
dispor sobre matéria de direitos, liberdades e garantias inseridas no âmbito
competencial do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição.
Coisa diversa terá de concluir-se nos casos em que, na formatação do regime de
processo, venha a afectar-se o âmbito de tutela próprio dos direitos
fundamentais.
Estas situações não podem deixar de considerar-se abrangidas pelo estatuto dos
direitos fundamentais previsto no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.
De tudo resulta, pois, que não procede o fundamento da inconstitucionalidade
orgânica.
8.2 ? Vejamos, agora, a questão da inconstitucionalidade material. A norma
impugnada, constante do artigo 21.º, n.º 7, do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de
Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, dispõe
do seguinte modo:
?Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo
sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento,
nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso?.
Este preceito prevê a possibilidade de a relação material, própria da causa
principal, ser conhecida de modo definitivo, no procedimento cautelar, nas
situações abrangidas pela hipótese da norma (de entrega imediata da coisa locada
ao locador em virtude do fim do contrato de locação financeira, por força da sua
resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra),
excepto ?quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2 [do
mesmo artigo], os elementos necessários à resolução definitiva do caso?.
Por seu lado, este n.º 2 estabelece que ?com o requerimento [do pedido de
providência cautelar de entrega judicial imediata da coisa locada
financeiramente], o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no
número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do registo, ficando o
tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre que as condições
técnicas o permitam, por via electrónica?.
Destes preceitos, conjugadamente interpretados, resulta que o tribunal, nos
casos em que tenha decretado [sem audição do requerido] a providência cautelar
de entrega imediata ao locador dos bens locados [a qual é necessariamente
precedida de pedido de cancelamento do registo de locação financeira], por
virtude do fim do contrato de locação financeira resultante da sua resolução ou
do decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, conhece, depois
de ouvidas as partes, no próprio processo cautelar, de modo definitivo, a
questão decidenda no processo principal, salvo naquelas situações em que as
partes não tenham trazido ao processo os elementos necessários, entre eles
ressaltando, as provas dos factos relevantes para o direito a aplicar, à
resolução definitiva do caso.
O procedimento cautelar ?convola-se?, assim, ope legis, em processo adequado
para conhecer de modo definitivo do direito do locador de ver restituídos os
bens.
O processo passa a prosseguir a funcionalidade própria de uma acção de
condenação do locatário dos bens a ver reconhecido o direito do locador de
restituição definitiva dos bens locados.
De acordo com a mens legislatoris expressa no exórdio do diploma que consagrou
esta medida processual (Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro), ?Evita-se
assim a existência de duas acções judiciais ? uma providência cautelar e um
acção principal ? que, materialmente, têm o mesmo objecto: a entrega do bem
locado?.
Conquanto, expressamente, apenas se acentue, como razão determinante da opção
legislativa, o tipo de tutela intencionado pela acção (a entrega do bem locado),
é, todavia, a especial natureza das situações que estão em causa e a específica
forma como se constituem e se extinguem as correspondentes relações jurídicas
que justificam a funcionalidade ambivalente deste instrumento processual.
Na verdade, a situação litigiosa sob exame reporta-se a um tipo contratual cujo
feixe de obrigações se encontra recortado normativamente em termos objectivos,
bem precisados, estando a sua celebração sujeita à forma legal de, pelo menos,
documento particular, surgindo, por regra, sob a forma de contrato de adesão (cf.
artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho).
Neste tipo contratual, as obrigações de cada uma das partes, mesmo que
particularizadas por adesão, estão bem definidas e os actos das partes tendentes
a cumpri-las têm, por regra, expressão documental (v.g., celebração do contrato,
pagamento da retribuição, comunicações à contra-parte).
Deste modo, os elementos factuais e probatórios com base nos quais as partes
podem deduzir as suas pretensões em juízo são, tendencialmente, bem precisos e,
normalmente, do seu conhecimento, logo, desde o momento em que ocorrem.
Uma vez obtida a tutela cautelar do direito do credor, sem audição do locatário,
através da entrega imediata dos bens, assim se evitando o risco do seu extravio
ou da sua desvalorização que o decurso dos trâmites próprios de um processo que
conhecesse, logo, da causa principal sempre potenciaria, entendeu o legislador
ser de aproveitar o processo existente para conhecer da causa principal, na
medida em que os elementos de facto nele conhecidos e as provas nele produzidas
por ocasião da apreciação do pedido de tutela cautelar sejam potencialmente os
mesmos a relevar para a prolação da decisão definitiva.
A solução legislativa assenta na ideia de que a resolução definitiva da questão
atinente à acção principal não demanda, por regra, a necessidade de outros
elementos que não sejam os já ponderados para a prolação da decisão cautelar,
apenas se impondo conceder às partes a possibilidade de proceder ao seu controlo,
mediante a sua audição, momento este não concedível antes do decretamento da
providência cautelar para não afectar a plenitude e efectividade da tutela
cautelar do direito do locador.
Corresponde a uma dimensão do direito de acesso aos tribunais, consagrado do
artigo 20.º da Constituição, o direito de acção judicial adequada para fazer
valer em juízo os direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 5).
Segundo a própria formulação constitucional, ?para a defesa dos direitos,
liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos
judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela
efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos?.
Cabe, assim, na discricionariedade constitutiva do legislador ordinário a
previsão e a configuração das acções adequadas à obtenção da tutela judicial.
No que importa a tal matéria, as únicas exigências que decorrem daquele direito
de acesso aos tribunais são as de que a acção judicial deva propiciar a obtenção
de ?tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações? dos direitos e
interesses legalmente protegidos e que a causa seja objecto de decisão em prazo
razoável e mediante processo equitativo (n.º 4).
No direito a um processo equitativo ou a um processo justo, insere-se, como seu
vector, o princípio do contraditório, consubstanciado no direito de a parte
alegar as suas razões de facto e de direito, de oferecer as suas provas, de
controlar as provas do adversário e de discretear sobre o valor e resultados de
umas e outras (cf., entre muitos, Acórdão n.º 249/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Tal princípio não tem, todavia, a natureza de um direito absoluto, sendo
constitucionalmente admissível, para realizar outros valores constitucionais,
como a celeridade processual (cf. Acórdão n.º 1193/96, publicado nos Acórdãos do
Tribunal Constitucional, volume 35.º, pagina 529 e seguintes) e a efectividade
da tutela jurisdicional, que o momento do seu exercício possa ser deferido (cf.
Acórdãos n.ºs 259/00 e 303/03, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt),
como acontece em sede de procedimentos cautelares típicos e atípicos, nestes se
inserindo o presente caso.
Assim sendo, caberá na discricionariedade do legislador ordinário, desde que
respeite a axiologia constitucional, a opção de, no recorte do sistema das
acções judiciais, atribuir às acções cautelares, sempre, uma função instrumental
relativamente à acção principal ou, ao invés, em certos casos, ?confundir? as
duas acções em um só processo, de modo que a tutela seja concedida ab initio a
título definitivo, com perda de toda a ideia de instrumentalidade do processo
cautelar, ou a tutela definitiva se possa suceder à tutela cautelar.
Não existe, em termos constitucionais, qualquer princípio, para além daquele
quadro paramétrico, que obrigue a que, na obtenção de ?tutela efectiva e em
tempo útil contra ameaças ou violações? dos direitos e interesses legalmente
protegidos, deva ser seguida uma regra de instrumentalidade necessária da acção
cautelar em relação à acção principal.
O julgamento de questões jurídicas fora do processo comum adequado segundo as
regras gerais para o conhecimento dos direitos controvertidos, e no âmbito de
processo especial concebido para a realização de outros direitos específicos,
não constituiu novidade no nosso próprio sistema jurídico, vindo do período pré-constitucional.
Na verdade, era o que se passava, no domínio do processo de inventário (processo
especial para pôr fim à comunhão hereditária), no Código de Processo Civil de
1962, com o conhecimento das questões relacionadas com a falta ou a exclusão da
relacionação de bens a partilhar, com a sua sonegação ou com a negação de
dívidas activas ou passivas (artigos 1341.º a 1346.º e 1355.º), as quais eram
conhecidas no processo de inventário desde que pudessem ser resolvidas em face
dos documentos apresentados e de outras provas que os interessados produzissem,
sendo os interessados remetidos para o processo comum, na hipótese contrária.
Também aqui a questão principal relativa a esses direitos controvertidos poderia
ser resolvida enxertadamente no processo especial e fora do processo comum
adequado para o efeito.
Mas a antecipação do juízo sobre a causa principal no processo cautelar ? com
quebra do princípio da instrumentalidade dos procedimentos cautelares -
constitui hoje uma possibilidade admitida, em termos gerais, no processo
contencioso administrativo (em cuja previsão o legislador do Decreto-Lei n.º 30/2008
se terá, porventura, inspirado).
Na verdade no artigo 121.º, n.º 1, do Código de Processo nos Tribunais
Administrativos prevê-se que ?quando a manifesta urgência na resolução
definitiva do caso, atendendo à natureza das questões e à gravidade dos
interesses envolvidos, permita concluir que a situação não se compadece com a
adopção de uma simples providência cautelar e tenham sido trazidos ao processo
todos os elementos necessários para o efeito, o tribunal pode, ouvidas as partes
pelo prazo de 10 dias, antecipar o juízo sobre a causa principal?.
A ausência de instrumentalidade formal é, também, um fenómeno constatável no
direito processual civil estrangeiro.
A este respeito constata Rui Pinto (A Questão de Mérito na Tutela Cautelar,
Coimbra Editora, 2009, pp. 58-59):
?(?)
II. No direito processual civil estrangeiro conhecem-se no plano das previsões
normativas providências cautelares autónomas, ou seja, sem instrumentalidade
formal.
Assim, note-se que desde 1 de Março de 2006 tomou-se desnecessária a propositura
de acção principal após a obtenção de uma providenza d?urgenza do art. 700.° CPC/It
ou de qualquer outra providência cautelar idónea a antecipar os efeitos da
sentença de mérito e, mesmo a extinção dessa eventual acção de mérito, não
determina a ineficácia das providências.
É isso que sempre vigorou relativamente ao reféré francês e às einstweilige
Verfügungen alemãs (cf. § 926 ZPO) (210).
Mesmo no mero plano de facto, o que sucede com estas últimas é particularmente
elucidativo. Há a constatação na doutrina alemã (211) de que as einstweiligen
Verfügungen tendem a valer como finais, já que frequentemente as partes perdem o
interesse em colocar a acção principal, pela sua duração e custos, e aceitam a
decisão provisória como viável para o seu litígio, não apenas quando houve
antecipação da realização do direito, mas mesmo quando apenas foi proferida uma
medida de segurança ou regulação do status quo. Mais: quando sucede ser
instaurado o processo principal quer o tribunal da acção principal, quer o
tribunal de recurso tendem a limitar-se a confirmar a decisão cautelar.
Enfim, outro exemplo, novamente no plano normativo: o art. 2409º., 3.ª al., CC/It
estatui que ?se houver suspeita fundada de graves irregularidades no cumprimento
dos deveres dos administradores e gestores, os sócios que representem de um
décimo do capital social podem denunciar os factos ao tribunal? o qual pode
decretar as ?providências cautelares oportunas [v. g., inibições] e convocar a
assembleia para as subsequentes deliberações? e ?nos casos mais graves pode
destituir os administradores e gestores e nomear um administrador judiciário,
fixando-lhe os poderes?.
Perante o que vem sendo dito, pode concluir-se não existir impedimento
constitucional a que se conheça da acção principal no procedimento cautelar aqui
em causa, regido pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, contanto que seja
observado o princípio do contraditório e o processo contenha os elementos
necessários à resolução definitiva da causa.
Ora, o preceito em causa pode ser entendido no sentido de que ambas as partes
podem, a quando da audição prevista no preceito ? assim se respeitando o
princípio do processo equitativo, na sua dimensão de igualdade processual ?,
exercer o contraditório de alegação e de prova, sem limitações, e de o tribunal
poder decretar a resolução definitiva do caso apenas quando disponha dos
elementos necessários para poder tirar essa conclusão.
Na verdade, a norma sindicada não estabelece quaisquer restrições à
possibilidade de alegação das partes e de oferecimento e controlo das provas
produzidas.
É claro que pode suceder que, por virtude do exercício do contraditório, a
tarefa do tribunal tenha de ultrapassar os limites do julgamento factual e
jurídico que suportou o decretamento da providência e o julgador caia numa
situação de não dispor dos elementos necessários à resolução definitiva do caso.
Em tal hipótese, afigura-se não restar outra solução do que remeter a resolução
do caso para acção autónoma, sob pena de ofensa do direito a um processo
equitativo.
Mas tal situação está manifestamente fora do âmbito aplicativo da norma.
Do que vem dito resulta que a decisão recorrida só chegou a conclusão diferente
porque entendeu a norma sindicada no sentido de o dever de audição das partes,
nela prevista, ter um alcance diferente do transportado pelo princípio do
contraditório e de o tribunal estar obrigado a decretar, sempre, a resolução
definitiva da causa, mesmo quando não disponha dos elementos necessários para o
efeito.
Demonstrada a insubsistência da interpretação feita pela decisão recorrida, face
aos parâmetro constitucionais, impõe-se concluir pela não inconstitucionalidade
da norma sindicada.
C ? Decisão
9 ? Destarte, atento o exposto, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 21.º, n.º 7, do
Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 30/2008,
de 25 de Fevereiro;
b) Conceder provimento ao recurso e, consequentemente,
c) Ordenar a reforma da decisão recorrida em função do precedente juízo de
constitucionalidade.
Lisboa, 04/02/2010
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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