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Processo n.º 36/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. A. reclama, ao abrigo do n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro (LTC) do despacho que não admitiu o recurso para o Tribunal
Constitucional que interpôs, pelo requerimento certificado a fls. 25, do acórdão
do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Junho de 2008 (certificado a fls. 20).
O reclamante sustenta, em síntese, que o indeferimento do requerimento de
interposição do recurso não se fundamenta em nenhuma das razões elencadas no n.º
2 do artigo 76.º da LTC. Argumenta que ?não terem as normas sido aplicadas na
decisão em causa com o sentido que o recorrente pretende ser contrário à CRP?
não integra a noção de ?manifesta falta de fundamento? constante da parte final
do n.º 2 do artigo 76.º da LTC, única causa de inadmissibilidade do recurso a
que, em seu entender, poderia pretender acolher-se o indeferimento.
E conclui nos termos seguintes:
?(?)
43.
Desta forma, crê-se que estão reunidas todas as condições para que do referido
despacho se reclame, com razão, nos termos do art.º 77.º, n.° 1 da Lei 28/82 de
15 de Novembro.
44.
De facto, a questão da inconstitucionalidade é central, sendo da maior
importância o esclarecimento desta questão e o julgamento como inconstitucionais
dos artigos 3.º, 24.º, n.º 1 e 29.º, n.º 1 do DL 156/81 de 9 de Junho, bem como
dos arts. 487.º, n.º 1 e 342.º do CC, concatenados, segundo a qual, a
responsabilidade por acidente ocorrido entre locomotiva e veículo que atravessa
passagem de nível, é do funcionário da CP com a função de manter em
funcionamento automático a passagem de nível e estabelecer o automatismo,
havendo sinalização luminosa e sonora (luz vermelha e campainha a toca) de
recurso, a qual é activada 26,70 metros antes da passagem de nível e pela
passagem do próprio comboio.
Termos em que, deve ser considerada procedente, por provada a presente
Reclamação e, consequentemente, deve ser revogado o despacho reclamado sendo
proferida decisão ordenando a admissão do recurso interposto para o Tribunal
Constitucional pelo ora reclamante, com as legais consequências.?
2. O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a dimensão normativa da
inconstitucionalidade suscitada não constitui ratio decidendi do acórdão do
Supremo e que, por outro lado, nem do requerimento de interposição do recurso,
nem da reclamação, se extrai qualquer outra dimensão normativa cuja
constitucionalidade o reclamante pretenda ver apreciada.
3. Para decisão da reclamação relevam as ocorrências processuais seguintes:
a) B. intentou uma acção contra a CP ? Caminhos de Ferro Portugueses EP, o
recorrente (chefe de estação ferroviária) e o maquinista de um comboio, visando
a condenação dos réus a indemnizar os prejuízos resultantes do embate entre um
veículo automóvel e esse comboio, numa passagem de nível;
b) Os três réus foram condenados em 1.ª instância a pagar ao autor a quantia que
vier a apurar-se em execução de sentença como correspondendo ao valor dos
estragos causados no veículo automóvel;
c) Em recurso interposto pelos réus, a Relação absolveu o réu maquinista e
manteve a sentença de 1ª instância quanto aos demais;
d) Por acórdão de 19 de Junho de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça negou as
revistas interpostas pela CP e pelo ora recorrente, tendo consignado o seguinte:
?Recurso da ré CP
1 A recorrente imputa a culpa do acidente em apreço à própria condutora do
veículo do autor.
Cabe, antes do mais, ver como é que as instâncias configuraram o evento, sendo
certo que a fixação do nexo de causalidade, na sua vertente fáctica, lhes
pertence, com exclusão deste STJ: refere a decisão em causa que, nem as
barreiras que vedam a passagem de nível estavam abertas nem as respectivas
sinalizações luminosa e sonora funcionavam ? fls.6l7verso-.
Em sede de culpa, conclui que, atento tal facto, era legítimo a qualquer
condutor iniciar ao atravessamento duma passagem de nível, sem tomar quaisquer
precauções em especial. Como fez a dita condutora. Pelo que é de assacar
integralmente a culpa do acidente ao 2º réu a quem competia por em funcionamento
o sistema de proibição de atravessamento da passagem, quando se aproxima uma
composição ferroviária.
Sufragamos integralmente este entendimento. Como refere a Relação, só o não
recurso por parte do autor não permite agora que lhe seja escamoteada 30% de
culpa que lhe foi assacada em 1.ª instância.
2 Louva-se a recorrente no facto da locomotiva ter accionado o sistema de
recurso de sinalização, no qual a condutora deveria ter reparado.
Este sistema, sendo ?de recurso?, significa que actua para afastar um risco que
já está criado. Ou seja, não evitará, em princípio que um condutor que repare
que as barreiras estão levantadas inicie a travessia da passagem de nível. Por
outro lado, não estando a funcionar o sistema de prevenção ?normal?, não é
exigível ao mesmo condutor que atente no sistema de emergência.
Acresce ainda que o efectivo funcionamento do referido sistema de recurso não se
encontra directamente provado e que a Relação não concluiu nesse sentido,
vedando a consideração desse facto a este tribunal.
3 [ ? ]
Recurso do réu A.
1 Alega o recorrente que a Relação, indevidamente, não reapreciou a matéria de
facto, por ter entendido que não havia observado os requisitos do artº 690º A do
C. P. Civil, quando a verdade, é que os cumpriu.
Porém, da análise das conclusões do recurso de apelação resulta que é manifesto
que assim não aconteceu.
O primeiro requisito exigido pela lei é ? art° 690 A nº 1 alínea a) ? a
indicação pelo recorrente dos concretos pontos da matéria de facto que considera
incorrectamente julgados. Contudo, limita-se o recorrente a referir que deveriam
ser alteradas as respostas ?a alguns quesitos?. O que é insuficiente.
Assim, é de considerar assente a matéria de facto dada como provada pelas
instâncias.
2 Quanto à questão da responsabilidade pelo acidente, remete-se para o
consignado esse respeito no recurso da 1ª ré.
3 Finalmente, levanta o recorrente a questão da inconstitucionalidade dos
preceitos legais que definem a responsabilidade dos funcionários da CP.
Embora não seja expresso nas suas alegações, a assinalada inconstitucionalidade
derivaria duma presunção de culpa estabelecida por aqueles preceitos.
Só que a responsabilidade que lhe é assacada não resulta de qualquer presunção
de culpa, mas sim dos preceitos gerais sobre a negligência, de quem tem a
obrigação de agir e determinado modo para evitar um facto lesivo. Como já tinha
sido entendido na Relação: ?E a culpa deste réu funda-se, não em qualquer
presunção legal, mas na omissão do dever de colocar em funcionamento o sistema
automático de segurança da passagem de nível...?. Ou seja, as normas que cita,
não foram aplicadas com o sentido que o recorrente apoda de inconstitucional.
Pelo que a questão da inconstitucionalidade não se põe.
Termos em que improcede o recurso.
Pelo exposto, acordam em negar as revistas e confirmam o acórdão recorrido.
e) O ora recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, mediante
recurso do seguinte teor:
?A., recorrente nos autos em epígrafe, notificado do douto acórdão que recaiu
sobre o seu requerimento de rectificação do acórdão de fls. ?, tirado em 19.06.2008,
que considerou improcedente o recurso de Revista por si interposto vem, por não
se conformar com o aludido acórdão de fls?, tirado em 19.06.2008, que negou
provimento ao recurso de Revista, dele interpor recurso para o Tribunal
Constitucional, com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos, nos
termos e para os efeitos previstos na Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do
Tribunal Constitucional), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 13-A/98,
de 26 de Fevereiro, nomeadamente nos seus artºs. 69.º, 70.º, n.º 1, alínea b),
71.º, 72.º, 73.º, 75.º, 75.º-A, 76.º e 78.º, e por se entender que a decisão
recorrida está ferida de inconstitucionalidade.
Por estar em tempo e ter legitimidade requer a V. Exa. a sua admissão, com as
legais consequências.?
f) Sobre esse requerimento recaiu o seguinte despacho:
?As normas que o recorrente apoda de inconstitucionais não foram aplicadas na
decisão em causa com o sentido que o recorrente pretende ser contrário à CRP ?
cfr. fls. 677 ?.
Assim não se admite o recurso para o Tribunal Constitucional.?
4. Os termos da presente reclamação justificam que, à cabeça, se recordem quatro
aspectos fundamentais do regime de recurso de fiscalização concreta de
constitucionalidade, que claramente decorrem da Constituição (artigo 280.º da
CRP) e da Lei de Organização Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(artigo 70.º da LTC) e que são uniforme e pacificamente aceites na
jurisprudência do Tribunal:
- O recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade tem por objecto a
verificação da conformidade à Constituição de normas que tenham sido aplicadas
ou a que seja recusada aplicação pela decisão recorrida e não a
constitucionalidade desta decisão, em si mesma considerada;
- Incumbe ao recorrente definir o objecto do recurso logo no requerimento de
interposição, indicando a norma cuja constitucionalidade quer ver apreciada (n.º
1 do artigo 75.º-A da LTC); designadamente, quando pretenda impugnar o
particular sentido com que determinados preceitos legais tenham sido aplicados
no caso concreto, deve o recorrente identificá-lo, de modo preciso, nesse
requerimento;
- Se o requerimento não satisfizer as exigências estabelecidas pelos n.ºs 1 a 3
do artigo 75.º-A da LTC e o recurso tiver sido rejeitado sem o convite a que se
refere o n.º 5 do mesmo preceito, deve o recorrente aproveitar a reclamação a
que se refere o n.º 4 do artigo 76.º da LTC para suprir essas deficiências, em
ordem a que a decisão possa resolver definitivamente a questão da
admissibilidade do recurso (n.º 4 do artigo 77.º da LTC);
- A interpretação e aplicação do direito infra-constitucional aos factos
considerados relevantes é matéria da exclusiva competência dos tribunais da
causa, não cabendo ao Tribunal Constitucional censurar a decisão que nesse
domínio for adoptada.
5. Posto isto, a primeira constatação é de que o requerimento de interposição do
recurso não identifica qualquer norma cuja inconstitucionalidade se queira ver
apreciada. O recurso é interposto por ?se entender que a decisão recorrida está
ferida de inconstitucionalidade?. Com o objecto assim definido, visando
directamente a inconstitucionalidade da decisão e não de quaisquer normas
jurídicas por esta aplicadas, o recurso não seria admissível.
Todavia, o despacho reclamado, integrando o requerimento por referência às
normas cuja constitucionalidade o recorrente questionara no recurso de revista (cfr.
o §3 do acórdão recorrido), adoptou uma perspectiva mais substancialista.
Indeferiu o requerimento com fundamento em que essas normas (aquelas que
questionara na revista) não foram aplicadas pelo acórdão recorrido com o sentido
que o recorrente considera inconstitucional. E isto porque aquilo que o
recorrente alegara ser inconstitucional fora a interpretação desse bloco legal
no sentido de que se presumia a culpa dos funcionários da CP enquanto a
condenação do réu recorrente resultara de se ter provado, nos termos gerais, a
sua negligência
Na presente reclamação, o recorrente não ataca frontalmente este juízo acerca da
desconformidade entre o sentido normativo cuja inconstitucionalidade fora
suscitada e aquele que constitui ratio decidendi do acórdão recorrido.
Fundamenta a reclamação em que isso não cabe nos fundamentos de indeferimento do
recurso elencados no n.º 2 do artigo 76.º da LTC.
Mas sem razão.
O requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional deve
ser indeferido quando ?não satisfaça os requisitos do artigo 75.º-A, mesmo após
o suprimento previsto no n.º 5, quando a decisão o não admita, quando o recurso
haja sido interposto fora do prazo, quando o requerente careça de legitimidade
ou ainda, no caso dos recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo
70.º, quando forem manifestamente infundados?.
Um dos fundamentos de indeferimento do recurso é o de que ?a decisão o não
admita?, conceito este em que cabem as situações em que o recurso de
constitucionalidade não tenha objecto adequado à previsão de recorribilidade
prevista nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Ora, ao abrigo a
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o recurso só é admissível se a norma
cuja apreciação se pretende tiver sido efectivamente aplicada. A norma não é o
preceito ou preceitos legais, mas a regra de decisão jurídica que o tribunal a
quo deles retirou para decidir como decidiu determinada questão que lhe foi
sujeita. Ao dizer que as normas não foram aplicadas com o sentido indicado pelo
recorrente (essencialmente, o de que a condenação do recorrente assenta em
presunção de culpa), o despacho de indeferimento não está a pronunciar-se sobre
a falta de fundamento da questão de constitucionalidade, mas sobre o não
preenchimento da hipótese (?caso de abertura? ) da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da LTC. Isto é, está a dizer que a decisão não admite o recurso interposto.
E efectivamente a condenação dos réus não assentou em qualquer presunção de
culpa extraída dos mencionados preceitos legais. O acórdão recorrido sufragou o
entendimento das instâncias de que o acidente tinha ficado a dever-se à culpa
provada do ora recorrente, por não ter posto em funcionamento o sistema de
proibição de atravessamento da via férrea quando se aproxima uma composição
ferroviária, como lhe competia segundo a interpretação feita dos seus deveres
funcionais. Chegou à conclusão de que o acidente ocorreu por culpa do recorrente
com base na valoração dos actos provados e não por atender a qualquer presunção
extraída dos mencionados preceitos. Portanto, não aplicou os referidos preceitos
legais com o sentido cuja constitucionalidade o recorrente questionara e que o
despacho assumiu como sendo aquele que o recorrente pretendia submeter ao
Tribunal Constitucional.
Consequentemente, o despacho reclamado, ao indeferir o requerimento com este
fundamento, moveu-se no plano da admissibilidade do recurso por razões relativas
ao seu objecto, pelo não merece censura e nada mais era indispensável que
dissesse porque não está em causa a (manifesta) falta de fundamento da questão
de constitucionalidade, mas a falta de um pressuposto do recurso
Acresce que a questão que agora o recorrente identifica no artigo 44 da
reclamação não constitui uma questão de constitucionalidade normativa. Não cabe
na competência deste Tribunal saber se está correctamente determinada a
responsabilidade pelo acidente face aos factos descritos ou se, naquelas
circunstâncias, a responsabilidade do funcionário da CP deveria ser excluída ou
estabelecida em diferente proporção.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lx., 2/2/2010
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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