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Processo n.º 875/09
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o
Ministério Público, a Relatora proferiu a seguinte decisão sumária:
«I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público,
foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, n.º 1, alínea b) da CRP e do
artigo 70º, n.º 1, alínea b) da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pela
3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em 23 de Setembro de 2009 (fls. 122
a 131), para que seja apreciada:
i) A “inconstitucionalidade da norma prevista no
disposto do artº 374º, nº 1, al. a) do CPP, por violação do artº 6º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, do artº 26º nº 1 e artº 32º nº 1 da
CRP, uma vez que o Tribunal A Quo faz uma errada interpretação das mesmas quando
admite que: - A condenação em pessoa diversa do arguido, consiste em mero erro
material […]; - Que inexiste a condenação de pessoa diversa, mas um mero lapso,
material ou erro de escrita, por desconformidade entre a vontade real e a
vontade declarada, apesar do nosso entendimento ser o de que quem foi condenado,
foi uma pessoa juridicamente diferente; - Existe apenas um erro material ou de
escrita, por desconformidade entre a vontade real e a vontade declarada, não
obstante, a lei prescindir da essencialidade para o declarante do elemento sobre
que incidiu o erro, bem como do conhecimento ou cognoscibilidade da
essencialidade” (fls. 138);
ii) A “inconstitucionalidade das normas previstas na al.
f) do artº 1º, artº 283º, 358º e 359º todos do CPP, artº 348º nº 1 al. a), com
referência ao artº 152º, nº 1 al. a) e nº 3 do Código da Estrada, e artº 69º nº
1, al. c), do CP, por violação do nº 1 e nº 5 do artº 32º da CRP, uma vez que o
Tribunal A Quo faz uma errada interpretação das mesmas, quando admite que: - A
comunicação realizada ao arguido consiste numa alteração não substancial dos
factos; - A comunicação de uma alteração jurídica realizada ao arguido nos
termos e para os efeitos do normativo legal, consubstancia um aditamento ao artº
69º, nº 1 al. c) do CP, normas legais já constantes da acusação; - Que não há
agravamento da pena nem a introdução de factos que consubstanciam, o
preenchimento de outra norma jurídica, apesar de o arguido ser condenado numa
pena acessória de inibição de conduzir; - Que os tipos incriminadores não são
distintos, que o juízo de ilicitude não diverge, não implica por isso, uma
alteração do juízo da base da ilicitude, e, que ao introduzi-los, não introduz
um novo tipo nem uma nova norma, contudo desta alteração resulta agravamento dos
limites máximos das sanções aplicáveis” (fls. 138).
Cumpre, então, apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr.
fls. 142), com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não
vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito
legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os
pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº
2, da LTC.
Se o Relator verificar que os mesmos não foram preenchidos, pode proferir
decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A
da LTC.
3. Em primeiro lugar, importa esclarecer que, por força do n.º 1 do
artigo 277º da CRP, o Tribunal Constitucional apenas pode sindicar a
constitucionalidade de normas ou interpretações normativas, sendo-lhe
completamente vedado apreciar a constitucionalidade das decisões judiciais.
Ora, é, desde logo, patente que nenhum dos “objectos”, cuja
constitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada, é efectivamente norma
ou interpretação normativa. Tanto bastaria para que o recurso não pudesse ser
conhecido.
Acresce ainda que o recurso ora em apreço foi interposto ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, pelo que o recorrente se encontrava
sujeito ao ónus de prévia e adequada suscitação das questões de
inconstitucionalidade, perante o tribunal recorrido.
Sucede, porém, que nunca foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade
estritamente normativa, tendo apenas invocado diversos preceitos constitucionais
e alegado que a decisão jurisdicional de primeira instância havia violado tais
normas fundamentais. Neste sentido, vejam-se os seguintes excertos das
conclusões do recurso apresentado perante o Tribunal da Relação de Lisboa:
“I – QUESTÃO
(…)
7 - Tribunal A Quo ao não ter procedido em conformidade com o disposto no art.º
374º, n.º 1 al. a) do C.P.P., violou o princípio da identidade pessoal e as
garantias de defesa do processo criminal. – Cfr. n.º 1 do art.º 32.º da C.R.P.
(…)
9 - O Tribunal A Quo ao ter condenado pessoa diversa do
recorrente, violou o princípio e direito de identidade pessoal, e princípio da
dignidade da pessoa humana. – Cfr. Alínea a) do nº 1 do artº 374º do C.P.P. e
artº 6º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artºs 26º n.º 1, e nº 1
do artº 32º da C.R.P.” (fls. 67)
“II – QUESTÃO
(…)
14 - Ao ter-se consignado na sentença recorrida que se tratava de um
caso de alteração não substancial descrita na Acusação, quando na realidade
estamos perante uma alteração substancial, o Tribunal A Quo violou o princípio
do contraditório e as garantias de defesa do processo criminal, sendo a sentença
recorrida nula, por violação dos normativos supracitados, devendo ser declarado
a anulação de todo o processo.
15 - O Tribunal A Quo ao qualificar a alteração como não substancial,
prosseguindo com a audiência de discussão e julgamento, violou o direito de
defesa e o exercício do direito ao contraditório do recorrente. – Cfr. alínea f)
do artº 1º e artºs 283º, 358º, 359º, todos do C.P.P., artºs 348º, n.º 1, al. a)
e 69º, n.º 1 al. c) do C.P., e nº 5 do artº 32º da C.R.P.” (fls. 75).
Assim, da actuação processual do recorrente, nos autos recorridos, decorre que o
mesmo nunca suscitou a inconstitucionalidade qualquer norma jurídica – de modo
preciso e especificado –, tendo antes invocado a inconstitucionalidade da
própria decisão jurisdicional, o que, como já se disse, não é admissível.
Na verdade, não basta aludir-se a diversos princípios e normas constitucionais
para que se tenha por preenchido o ónus de prévia alegação da
constitucionalidade de determinada norma ou interpretação normativa, ónus esse
expressamente exigido pelo n.º 2 do artigo 72º da LTC. Afirmar-se que
determinada decisão jurisdicional violou princípios ou normas constitucionais
não equivale a colocar-se em causa a compatibilidade de uma específica norma
jurídica com a Constituição da República Portuguesa.
Em suma, pelas razões apontadas não se afigura possível conhecer do objecto do
presente recurso.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78º-A
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se não conhecer do objecto do presente
recurso.
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos
termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.»
2. Inconformado com a referida decisão, o recorrente veio reclamar, nos
seguintes termos:
«Da referida decisão sumária entende-se que o recurso não deverá ser admitido,
dado que, o recorrente não terá preenchido os requisitos do nº 1 do art.78°-A da
LTC, não tendo suscitado a inconstitucionalidade de qualquer norma jurídica de
modo preciso e especificado, terá antes invocado a inconstitucionalidade da
própria decisão jurisdicional.
O recorrente não se conforma com a decisão, pois entende que suscitou a
“inconstitucionalidade da norma prevista no disposto do art. 374°, nº al a) do
CPP, por violação do art. 6° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do
art. 26° nº 1 e art. 32° nº 1 da CRP, uma vez que o Tribunal A Quo faz uma
errada interpretação das mesmas quando admite que: - A condenação em pessoa
diversa do arguido, consiste em mero erro material (...); - Que inexiste a
condenação de pessoa diversa, mas um mero lapso, material ou erro de escrita,
por desconformidade entre a vontade real e a vontade declarada, apesar do nosso
entendimento ser o de que quem foi condenado, foi uma pessoa juridicamente
diferente; - Existe apenas um erro material ou de escrita, por desconformidade
entre a vontade real e a vontade declarada, não obstante, a lei prescindir da
essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro, bem como
do conhecimento ou cognoscibilidade da essencialidade” (fls. 138);
A “inconstitucionalidade das normas previstas na al. f) do art. l, art. 283°,
358° e 359° todos do CPP, art. 348° nº 1 al. a), com referência ao art.152°, nº
1 al. a) e n°3 do Código da Estrada, e art. 69° nº 1, al. c), do CP, por
violação do nº 1 e nº 5 do art. 32° da CRP, uma vez que o Tribunal A Quo faz uma
errada interpretação das mesmas, quando admite que: - A comunicação realizada ao
arguido consiste numa alteração não substancial dos factos; - A comunicação de
uma alteração jurídica realizada ao arguido nos termos e para os efeitos do
normativo legal, consubstancia um aditamento ao art. 69°, nº 1 al. c) do CP,
normas legais já constantes da acusação; - Que não há agravamento da pena nem a
introdução de factos que consubstanciam, o preenchimento de outra norma
jurídica, apesar de o arguido ser condenado numa pena acessória de inibição de
conduzir; - Que os tipos incriminadores não são distintos, que o juízo de
ilicitude não diverge, não implica por isso, uma alteração do juízo da base da
ilicitude, e, que ao introduzi-los, não introduz um novo tipo nem uma nova
norma, contudo desta alteração resulta agravamento dos limites máximos das
sanções aplicáveis” (fls. 138).
Ora, o recorrente entende que se realizou uma interpretação literal dos
fundamentos invocados.
Reconhece até que poderá ter sido parco na sua exposição, no entanto,
realizando-se uma interpretação não tão estrita, compreender-se-á que o que o
recorrente pretende pôr em causa no recurso, é a interpretação que o Tribunal “A
Quo”, realiza daquelas normas.
Ora, se se entender que o Tribunal “A Quo”, fez uma errada interpretação
daquelas normas, consequentemente a decisão que foi proferida, necessariamente
será outra. Pelo que, ao interpor-se recurso sobre a interpretação das normas,
em regra, está colocada em crise a própria decisão.
Assim se considerando, não se compreende a razão de ciência que levará o
Tribunal a separar aquilo que lhe é indissociável.
Entende o recorrente que estão verificados os requisitos que determinam o
deferimento do recurso.» (fls. 155 a 157)
3. Após devidamente notificado, o Ministério Público, enquanto recorrido, veio
responder nos seguintes termos:
«1º
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2º
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da decisão
reclamada, no que respeita à evidente inverificação dos pressupostos do recurso.
3º
Aliás, nessa reclamação, pouco se adianta em relação àquilo que se havia
afirmado no requerimento de interposição do recurso.
4º
Parece-nos claro que dizer, que na decisão se fez uma errada interpretação –
violadora dos preceitos constitucionais –, não é suscitar de forma
processualmente adequada uma questão de inconstitucionalidade normativa.» (fls.
159 e 160)
Cumpre agora apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
4. Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da
LTC, não basta que os recorrentes invoquem a inconstitucionalidade de
determinada norma ou interpretação normativa perante o Tribunal Constitucional,
através do requerimento de interposição de recurso. É necessário que antes o
tenham feito perante os tribunais recorridos.
Ora, na sua reclamação, o recorrente apenas alega ter suscitado a
inconstitucionalidade de duas interpretações normativas a fls. 138, ou seja, em
sede de requerimento de interposição de recurso. Em nenhuma passagem da
reclamação se demonstra que o ora reclamante teria suscitado, de modo
processualmente adequado, as questões de inconstitucionalidade mencionadas no
requerimento de interposição de recurso perante o tribunal recorrido. Pelo
contrário, conforme já demonstrado pela decisão sumária – que se reitera – toda
a intervenção processual do ora reclamante perante o tribunal recorrido assentou
na invocação da inconstitucionalidade – concebida em termos genéricos e não
normativos – da própria decisão jurisdicional então sob recurso.
Em suma, não se vislumbram quaisquer razões para reformar a decisão sumária ora
reclamada.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos supra expostos, e ao abrigo do disposto no do n.º 3 do artigo
78º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, na redacção que lhe foi dada pela Lei
n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 UC’s, nos
termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2009
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão
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