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Processo n.º 427/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
( Conselheiro João Cura Mariano)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do 1.º Juízo, 2.ª Secção dos Juízos Cíveis do
Porto, o Ministério Público interpôs recurso da decisão daquele tribunal, nos
termos do artigo 70.º, n.º 1, a), da LTC, na parte em que recusa a aplicação do
artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, com a interpretação
defendida pelo Tribunal da Relação do Porto - segundo a qual compete aos Juízos
Cíveis do Porto preparar e julgar a acção declarativa proposta nos termos do
regime processual civil experimental, instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006,
de 8 de Junho, quando o respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da
Relação, e não tenha sido requerida a intervenção do tribunal colectivo -, com
fundamento em inconstitucionalidade por violação dos art.ºs 112.º, n.º 2 e
l65.º, alínea p), da CRP.
2. O presente recurso emerge de acção declarativa que A., B. e C. propuseram
contra D., nos Juízes Cíveis do Porto. O réu contestou, deduzindo reconvenção.
O recurso vem interposto do despacho, proferido em 2.4.2009, com o seguinte
teor:
«A presente acção foi intentada à luz do regime processual experimental
aprovado pelo DL. nº 108/2006, de 08/06.
O regime processual experimental aplica-se, designadamente, de acordo com a al.
b) do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09, nos Juízos Cíveis do
Tribunal da Comarca do Porto.
Tal regime não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, já que
daquele regime não consta toda a regulamentação necessária à tramitação da
acção, havendo, assim, que recorrer ao Código de Processo Civil, enquanto
legislação subsidiária, no que não seja afastado pelo regime processual
experimental, nomeadamente às normas dos arts 305º e segs. do C.P.C. que regulam
o valor da causa.
Ora de acordo com o disposto no art. 308º, nº 2 do C.P.C., no caso de o Réu
deduzir reconvenção, o valor do pedido formulado pelo réu, quando distinto do
deduzido pelo Autor, soma-se ao valor deste e este aumento de valor produz
efeitos no que respeita aos actos e termos posteriores à reconvenção.
Nos presentes autos verifica-se que o Réu deduziu pedido reconvencional
distinto do deduzido pelos Autores, pelo que se soma ao valor deste.
Assim sendo, fixa-se o valor da causa em € 60.000,01.
A Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto tem vindo a sufragar o
entendimento de que a competência para preparar e julgar uma acção declarativa
proposta nos termos do regime processual civil experimental instituído pelo DL.
nº 108/2006, de 8/06, quando o respectivo valor exceder a alçada da Relação e
não tiver sido requerida a intervenção do tribunal colectivo, deve ser
atribuída, no Tribunal da Comarca do Porto, aos Juízos Cíveis.
Neste sentido foi já decidido nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de
08/04/2008, 05/06/2008 e 30/09/2008, proferidos nos processos nºs 0820596,
0831362 e 0855853, respectivamente, disponíveis em www.dgsi.pt.
A referida Jurisprudência apoia-se nos seguintes argumentos:
O DL. nº 108/2006, de 08/06, que aprovou o regime processual experimental, não
estabeleceu qualquer limite de valor para as acções declarativas cíveis
instauradas ao abrigo de tal regime, pelo que as mesmas podem ter valor superior
à alçada da relação.
O regime processual experimental aplica-se, designadamente, nos Juízos Cíveis do
Tribunal da Comarca do Porto e nos Juízos de Pequena Instância Cível do
Tribunal da Comarca do Porto, de acordo com o disposto nas als. b) e c) do
artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09.
Não está prevista a aplicação de tal regime nas Varas Cíveis do Tribunal da
Comarca do Porto.
O DL. nº 108/2006, de 08/06, não prevê que no decurso da acção declarativa cível
instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a seguir, a
partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário.
Conclui, assim, que a acção cível instaurada nos termos do referido diploma
nunca poderá observar, em nenhum momento da sua tramitação, a forma de processo
comum ordinário, pelo que a competência originária para conhecer deste tipo de
acções pertence aos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e só no caso
das partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo é que os Juízos
Cíveis deverão remeter o processo às Varas Cíveis para julgamento e posterior
devolução, de acordo com o art. 97º, nº 4 da L.O.F.T.J..
Discordámos, com o devido respeito, da argumentação expendida, por se nos
afigurar que a mesma é susceptível de infringir o texto constitucional.
Com efeito, não se retira do teor do DL. nº 108/2008, de 08/06, que fosse
intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais, que
continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava
anteriormente.
Do mesmo modo, não pretendeu a Portaria nº 955/2006, de 13/09, alterar a
competência dos Tribunais, mas apenas definir quais os tribunais em que seria
aplicado o regime processual experimental, mantendo os tribunais a que alude, a
competência que já detinham, tal como resulta, aliás, do respectivo preâmbulo.
De acordo com o disposto no art. 112º, nº 2 da Constituição da República
Portuguesa, as leis e os decretos-leis têm igual valor, sem prejuízo da
subordinação às correspondentes leis dos decretos-leis publicados no uso de
autorização legislativa.
Dispõe por sua vez o art. 165º, al. p) do mesmo diploma que é da exclusiva
competência da Assembleia da República legislar sobre organização e competência
dos tribunais, salvo autorização ao Governo.
Não pode, assim, o Governo, sem autorização legislativa, alterar as normas de
competência dos tribunais, aprovadas por Lei.
A organização e competência dos tribunais sempre seria, de resto, matéria de
reserva de “acto legislativo”, entendendo-se como tal, nos termos do art. 112º,
nº 1 da Constituição da República Portuguesa, as leis, os decretos-leis e os
decretos legislativos regionais e nunca matéria de simples portaria.
Todavia e se assim é, constata-se que a norma contida no artigo único da
Portaria nº 955/2006, de 13/09, quando interpretada no sentido defendido nos
Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima referidos, infringe o disposto
nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República Portuguesa.
Na verdade, ao considerar-se, por não estar prevista a aplicação do regime
processual experimental nas Varas Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto e por
não se prever, no DL. nº 108/2006, de 08/06, que no decurso da acção declarativa
cível instaurada nos termos do regime processual experimental, esta passe a
seguir, a partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário,
que a competência para conhecer das acções cíveis instauradas na Comarca do
Porto, de valor superior à alçada da Relação, na sequência da soma do valor dos
pedidos do autor e do reconvinte, pertence aos Juízos Cíveis e, só no caso das
partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo, é que as referidas
acções deverão ser remetidas às Varas Cíveis para julgamento e posterior
devolução, de acordo com o art. 97º, nº 4 da Lei de Organização e Funcionamento
dos Tribunais Judiciais, está a infringir-se, em nosso entender e ressalvando o
devido respeito por opinião contrária, a regra de competência estabelecida no
art. 97º, nº 1, al. a) da referida Lei.
Dispõe este último normativo que compete às Varas Cíveis a preparação e
julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do
tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo.
E certo que o nº 4 do mencionado preceito refere que são ainda remetidos às
Varas Cíveis, para julgamento e ulterior devolução, os processos que não sejam
originariamente da sua competência, nos casos em que a lei preveja, em
determinada fase da sua tramitação, a intervenção do tribunal colectivo.
Afigura-se, no entanto, que tal disposição se encontra formulada para os
processos especiais, originariamente da competência dos Juízos Cíveis.
Ora o regime processual experimental não configura um processo especial, já que
nos Juízos Cíveis do Porto, tal regime aplica-se na falta de outra forma de
processo aplicável, tal como resulta desde logo do art. 1º do DL. nº 108/2006 e
não poderá considerar-se especial uma forma de processo que, num certo tribunal,
se aplica na falta de outras.
O regime processual experimental configura-se antes como um processo comum nos
Juízos Cíveis do Porto.
Assim sendo e na medida em que tal regime não visou alterar as regras de
competência e não afasta a aplicação das normas do Código de Processo Civil, às
quais terá de recorrer-se enquanto legislação subsidiária, nomeadamente às
normas dos arts. 98º, nº 2 e 305º e segs. do referido diploma, impõe-se uma
interpretação da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006 conforme
com o disposto nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República
Portuguesa.
Tal interpretação, em nosso entender e ressalvando sempre o devido respeito por
opinião contrária, apenas poderá ser feita no sentido de que, quando, por força
da reconvenção, o valor da acção instaurada nos Juízos Cíveis da Comarca do
Porto ultrapasse o valor para o qual detinham competência, os Juízos Cíveis
deixam de ser os competentes em razão do valor, devendo a acção ser remetida ao
tribunal competente, com a consequente alteração da forma do processo aplicável
nesse tribunal, no caso, o processo ordinário previsto no Código de Processo
Civil, aplicável nas Varas Cíveis do Porto.
Decisão:
Na sequência do exposto:
a) recusa-se a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade, por infracção
do disposto nos arts. 112º, nº 2 e 165º, al. p) da Constituição da República
Portuguesa, da norma contida no artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13/09,
com a interpretação defendida nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto acima
referidos e, consequentemente,
b) julga-se aplicável à presente acção a forma de processo comum ordinário, por
força do disposto nos arts. 461º e 462º do Código de Processo Civil e
determina-se, em conformidade, que a presente acção passe a prosseguir os seus
termos sob a referida forma de processo.»
3. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
apresentou alegações, onde concluiu do seguinte modo:
«A norma constante do artigo único da Portaria nº 955/2006, de 13 de Setembro,
na interpretação segundo a qual compete aos Juízos Cíveis do Porto preparar e
julgar a acção declarativa proposta nos termos do regime processual civil
experimental, instituído pelo Decreto-Lei nº 108/2006 de 08 de Junho, quando o
respectivo valor exceder a alçada do Tribunal da Relação e não tenha sido
requerida a intervenção do Tribunal Colectivo – concretizando o disposto,
nomeadamente, nos artigos 1º e 21º do Decreto-Lei nº 108/2006 – ao alterar
inovatoriamente o âmbito da competência reservada às varas cíveis pelo artigo
97º, nº 1, alínea a), da lei nº 3/99, de 13 de Janeiro, sem que existisse
credencial parlamentar bastante, é organicamente inconstitucional, por violação
do artigo 165º, nº 1, alínea p), da Constituição.»
4. Em Secção, foi proferido o Acórdão n.º 565/2007, que determinou a notificação
das partes para se pronunciarem sobre a possibilidade de não conhecimento do
objecto do recurso, por não estar em causa uma verdadeira recusa de aplicação de
norma.
5. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional
apresentou resposta nos seguintes termos:
«1º
O Senhor Juiz, na decisão recorrida, recordou qual a interpretação das normas
objecto do recurso, que o Tribunal da Relação do Porto, vem levando a cabo.
2º
Segundo essa jurisprudência, a competência para preparar e julgar a acção
declarativa proposta nos termos do regime processual civil experimental
instituído pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, quando o respectivo
valor exceder a alçada da Relação e não tiver sido requerida a intervenção do
tribunal colectivo, deve ser atribuída, no Tribunal da Comarca do Porto, aos
Juízos Cíveis.
3º
Ora, o Senhor Juiz só não acolhe e aplica uma tal interpretação, exclusivamente,
porque entende que ela é inconstitucional.
4º
Ou seja, perante duas interpretações, uma eventualmente “mais correcta” do ponto
de vista da interpretação do direito ordinário - e que ele seguiria -, leva a
uma solução inconstitucional.
5º
Poderá argumentar-se que a interpretação “mais correcta” será sempre a mais
respeitadora dos princípios constitucionais.
6º
Ora, se tal entendimento é perfeitamente compreensível nos casos de
inconstitucionalidade material, já não o será tão facilmente, nos casos de
inconstitucionalidade orgânica, como se verifica no presente processo.
7º
Se assim não for, então, sempre que se esteja perante um recurso interposto ao
abrigo da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º da LTC, o Tribunal terá de
ponderar se o facto de haver duas interpretações possíveis e o juiz desaplicar
uma com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, isso constituirá uma
verdadeira recusa de aplicação.
8º
Na verdade, parece-nos que o ter-se recorrido à jurisprudência de um Tribunal
Superior, não altera substancialmente os dados desta questão.
9º
Por outro lado, vendo a questão do ponto de vista da instrumentalidade do
recurso de constitucionalidade, a solução não é diferente.
10º
Efectivamente, neste momento, há processos nos Juízos Cíveis do Porto, aos quais
está a ser aplicada a forma de processo comum, diferentemente do que ocorre na
maioria dos outros processos.
11º
À pergunta sobre o que está na origem desta divergência, a resposta só pode ser
uma: a recusa, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, de uma
determinada interpretação normativa.
12º
Conhecendo o Tribunal da questão e se não julgar a norma inconstitucional, ao
processo volta a ser aplicável o regime do processo civil experimental.
13º
Desta forma, a última palavra sobre a questão da inconstitucionalidade, deverá
pertencer ao próprio Tribunal Constitucional.»
6. Tendo o primitivo relator ficado vencido, quanto à questão do conhecimento do
objecto do recurso, houve lugar à mudança de relator.
II – Fundamentação
7. Questão prévia: do conhecimento do objecto do recurso
O presente recurso foi interposto, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1,
a), da LTC, do despacho proferido neste processo em 2-4-2009.
O despacho recorrido recusou a interpretação do artigo único da Portaria n.º
955/2006, de 13 de Setembro, sustentada nas decisões do Presidente do Tribunal
da Relação do Porto, proferidas na resolução de conflitos de competência em
8-4-2008, 5-6-2008 e 30-9-2008 (acessíveis em www.dgsi.pt).
Da leitura destas decisões, verifica-se que, mediante a interpretação do
disposto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, do qual o
artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, é uma simples
concretização, se considerou que os Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do
Porto eram competentes para preparar e julgar as acções declarativas cíveis
propostas nestes juízos, às quais tenha sido fixado um valor superior à alçada
do Tribunal da Relação, quando não tenha sido requerida a intervenção do
tribunal colectivo.
É a esta interpretação que a alínea a) da decisão recorrida se reporta, quando
determina a “recusa de aplicação” da “interpretação defendida nos Acórdãos do
Tribunal da Relação do Porto”.
Todavia, e não obstante o conteúdo deste enunciado decisório, constata-se não
ter havido uma autêntica recusa de aplicação por inconstitucionalidade, no
sentido exigido pela alínea a) do artigo 70.º da LTC, para se poder dar por
verificado o fundamento de recurso aí previsto.
Na verdade, a decisão do tribunal filia-se, em primeira linha, num entendimento
divergente, no exclusivo plano do direito ordinário, do alcance dos preceitos
legais pertinentes. Para o tribunal recorrido, e contrariamente à interpretação
rejeitada, “quando, por força da reconvenção, o valor da acção instaurada nos
Juízos Cíveis da Comarca do Porto ultrapasse o valor para o qual detinham
competência, os Juízos Cíveis deixam de ser competentes em razão do valor,
devendo a acção ser remetida ao tribunal competente, com a consequente alteração
da forma do processo aplicável nesse tribunal, no caso, o processo ordinário
previsto no Código de Processo Civil, aplicável nas Varas Cíveis do Porto”.
O tribunal considera esta interpretação a que resulta da aplicação dos normais
cânones hermenêuticos. É o que se infere, com clareza, do seguinte trecho:
«Com efeito, não se retira do teor do DL n.º 108/2008, de 08/06, que fosse
intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais, que
continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava anteriormente.
Do mesmo modo, não pretendeu a Portaria n.º 955/2006, de 13/09, alterar a
competência dos Tribunais, mas apenas definir quais os tribunais em que seria
aplicado o regime processual experimental, mantendo os tribunais a que alude, a
competência que já detinham, tal como resulta, aliás, do respectivo preâmbulo».
Suplementarmente, como razão adicional para o afastamento da interpretação do
Tribunal da Relação do Porto, invoca o tribunal recorrido que ela está ferida de
inconstitucionalidade, por infringir o disposto nos artigos 112.º, n.º 2, e
165.º, n.º 1, alínea p), da CRP.
O que importa sublinhar é que, contrariamente ao afirmado na resposta do
representante do Ministério Público, não é só porque entende que essa
interpretação é inconstitucional que a sentença recorrida a não acolhe e aplica.
Não o faz, antes disso, porque entende que a interpretação que está de acordo
com a intenção do legislador e com o teor do preâmbulo da Portaria n.º 955/2006
é a de que não houve intenção de alterar a competência dos Tribunais.
Tendo perfilhado esta interpretação – cuja correcção não cabe a este Tribunal
sindicar – o tribunal recorrido não tinha mais do que aplicá-la, no pleno
exercício da sua competência própria e ao abrigo da garantia de independência
que lhe está constitucionalmente assegurada. O Juiz da causa não precisava de
recorrer a uma “aparente” recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, de uma
interpretação alternativa (ainda que também emita sobre ela essa apreciação) –
interpretação que não é a sua –, pela única razão de que se trata daquela a que
um tribunal superior adere. Só seria assim se ele estivesse obrigado a seguir
essa interpretação – o que, evidentemente, não acontece, no nosso quadro
constitucional. Só nessas circunstâncias, e como último recurso para evitar a
eficácia, no que diz respeito ao caso em juízo, de uma interpretação tida por
inconstitucional, estava ele habilitado a exercitar o poder-dever que o artigo
204.º da Constituição lhe confere.
Um tribunal de instância pode provocar a apreciação, pelo Tribunal
Constitucional, e mediante o recurso obrigatório do Ministério Público, de uma
interpretação que ele próprio faça – interpretação que seria a inevitável ratio
decidendi da questão em juízo, não fora a decisão de inconstitucionalidade que
sobre ela recai. O que não pode é, através de uma artificiosa recusa de
aplicação, que consta da decisão, mas não é apoiada pela fundamentação, pôr o
Tribunal Constitucional a decidir a constitucionalidade de uma interpretação que
não é a sua, mas a de um outro tribunal.
E foi isto o que o tribunal recorrido fez.
Não estão, pois, preenchidos os pressupostos do recurso previsto na alínea a) da
LTC, conclusão a que também chegou, em caso em tudo idêntico, a decisão sumária
emitida no processo n.º 617/2009.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 16 de Dezembro de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
João Cura Mariano (vencido de acordo com a declaração junta)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por interpretar de modo diferente da posição que fez vencimento o
conteúdo da decisão recorrida.
Da leitura que fiz desse despacho, entendi que o juiz a quo recusou
expressamente, por considerar violadora de parâmetro constitucional, a
interpretação normativa sustentada pela jurisprudência do Tribunal da Relação do
Porto sobre a questão em causa, e só perante a constatação desse vício é que
procurou efectuar uma interpretação conforme à Constituição que pudesse aplicar,
após ter assumido tal recusa.
Esta última interpretação normativa só é assumida pelo julgador, após ter
recusado seguir a interpretação dominante, com fundamento na sua
inconstitucionalidade, pelo que não estamos perante uma recusa artificial de
aplicação de normas, mas sim face a uma verdadeira recusa que não podia deixar
de ser sindicada pelo Tribunal Constitucional.
Conhecendo do recurso, confirmaria o juízo de inconstitucionalidade adoptado
pela decisão recorrida relativamente à interpretação do disposto no artigo 21.º,
do Decreto-lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, do qual o artigo único da Portaria
n.º 955/2006, de 13 de Setembro é uma simples concretização, segundo o qual os
Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto eram competentes para preparar e
julgar as acções declarativas cíveis propostas nestes juízos, às quais tenha
sido fixado um valor superior à alçada do Tribunal da Relação, quando não tenha
sido requerida a intervenção do tribunal colectivo.
Na verdade, o Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, em mais uma tentativa de
simplificar e flexibilizar o processo civil, criou um novo regime aplicável a
todas as acções declarativas cíveis, a que não corresponda processo especial, e
ainda às acções especiais para o cumprimento de obrigações pecuniárias
emergentes de contratos (artigo 1.º).
Este regime, nas palavras de LUÍS LAMEIRAS, “surge, portanto, com uma vocação
universal, destinada a abraçar a generalidade dos processos declarativos cíveis,
antes cobertos pelo procedimento declarativo comum” (In. “Comentário ao Regime
Processual Experimental”, pág. 10, da ed. de 2007, da Almedina).
O processo civil declarativo comum deixa de ter várias formas (ordinário,
sumário e sumaríssimo) para obedecer a um regime único.
Contudo, conforme consta da declaração preambular deste diploma, de forma a
permitir testar e aperfeiçoar o funcionamento deste novo regime, optou-se, num
primeiro momento, por circunscrever a sua aplicação a um conjunto de tribunais
a determinar por Portaria, tendo em consideração a elevada movimentação
processual que apresentem, atentos os objectos de acção predominantes.
Daí que o artigo único da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro, dando
cumprimento ao disposto no n.º 1, do artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006,
de 8 de Junho, tenha determinado que este novo regime só era aplicável em alguns
Juízos Cíveis, nomeadamente nos do Tribunal da Comarca do Porto.
Nos casos como o presente, em que numa acção instaurada num destes Juízos Cíveis
é-lhe fixado um valor superior ao da alçada do Tribunal da Relação, mormente por
força de dedução de pedido reconvencional, tem alguma jurisprudência entendido
que a competência para apreciar essa acção se mantém nesses Juízos Cíveis, uma
vez que a sua tramitação deve continuar a obedecer ao novo regime processual
experimental (vide as decisões do Presidente do Tribunal da Relação do Porto
proferidas em 8-4-2008, 5-6-2008 e 30-9-2008, acessíveis em www.dgsi.pt).
Foi esta interpretação do disposto no artigo único da Portaria n.º 955/2006, de
13 de Setembro, o qual se limitou a concretizar a previsão contida no n.º 1, do
artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, que a decisão recorrida
recusou, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica.
Na verdade, ao considerar-se que os Juízes Cíveis do Tribunal da Comarca do
Porto mantém a competência para apreciar acções cujo valor processual foi
fixado, posteriormente à sua instauração, em montante superior à alçada do
Tribunal da Relação, está a ampliar-se o âmbito da competência destes Juízos,
aos quais, segundo os artigos 97.º, n.º 1, a), e n.º 3, e 99.º, da Lei de
Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), está subtraída a
competência para preparar e julgar acções declarativas cíveis de valor superior
à alçada do Tribunal da Relação, mesmo quando a fixação desse valor só ocorre no
decurso do processo já pendente nos Juízos cíveis.
Nos termos do artigo 165.º, n.º 1, p), da C.R.P., é da exclusiva competência da
Assembleia da República, salvo autorização ao Governo, legislar sobre a
organização e competência dos tribunais.
O Tribunal Constitucional tem dito que esta reserva relativa abrange «para além
da definição das matérias cujo conhecimento cabe aos tribunais judiciais e a
daquelas cuja conhecimento cabe aos tribunais administrativos e fiscais … a
distribuição das matérias da competência dos tribunais judiciais pelos
diferentes tribunais de competência genérica e de competência especializada ou
específica» (v.g. os Acórdãos n.ºs 36/87, em ATC, 9.º vol., pág. 243, 356/89, em
ATC, 13.º vol. I, pág. 443, 72/90, em ATC, 15.º vol, pág. 67, 271/92, em ATC,
22.º vol. pág. 807, 163/95, em ATC, 30.º vol, pág. 849, 198/95, no D.R., II
Série, de 22-6-1995, e 268/97, no BMJ n.º 465, pág. 252).
Quer as Varas, quer os Juízos cíveis, são tribunais da mesma competência
especializada em questões de natureza civil, tendo uma competência específica
definida essencialmente pelo valor processual das causas civis.
A interpretação sindicada intromete-se na definição desta denominada competência
intrajudicial ou funcional das Varas e Juízos cíveis, em que estão em causa as
condições da intervenção dum tribunal de estrutura colectiva ou de estrutura
singular, fundamentalmente assente no critério do valor da causa.
Não há razão para que esta repartição de competências entre tribunais da mesma
especialidade, tendo como critério essencial o valor da causa, e que se
diferenciam pela sua estrutura e pelas condições de acesso exigidas aos juízes
que os integram, também não se inclua na reserva relativa da Assembleia da
República definida na alínea p), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., uma vez
que também ela respeita à organização e competência dos tribunais.
Sendo estes um órgão de soberania (artigo 110.º, da C.R.P.), compreende-se que a
organização judiciária e a repartição das competências por todos os diferentes
tipos de tribunais que integram essa organização, para além do estatuído na
própria Constituição (artigos 209.º e seg.), seja tarefa reservada ao legislador
parlamentar.
Ora, verifica-se que a interpretação sob fiscalização consagra uma regra de
repartição de competências entre as Varas e os Juízos cíveis que altera os
termos em que a Assembleia da República regulou tal matéria na LOFTJ, tendo essa
interpretação sido extraída do disposto no artigo 21.º, do Decreto-Lei n.º
108/2006, de 8 de Junho, concretizado pelo artigo único da Portaria n.º
955/2006, de 13 de Setembro.
Não tendo aquele diploma do Governo sido emitido ao abrigo de autorização
concedida pela Assembleia da República, a referida interpretação normativa
infringe o disposto no artigo 165.º, n.º 1, p), da C.R.P., pelo que deveria ser
confirmada a recusa da sua aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade,
julgando-se improcedente o recurso.
João Cura Mariano
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