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Processo n.º 486/09
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público, num processo em que figura como Recorrido A., SA, veio
interpor recurso para o Tribunal Constitucional da sentença proferida pelo
Tribunal do Trabalho de Faro, em 10 de Março de 2009, por “recusa de aplicação
do estatuído no Decreto-Lei n.º 237/2007, de 19.06, por inconstitucional.”
Disse, no que ora importa, a sentença recorrida:
“ (…) Com efeito, face à entrada em vigor do Código de Trabalho e à consequente
revogação da Lei 116/99, tem que se entender que o sujeito da referida
contra-ordenação é quem a pratica, ou seja, o motorista. Apenas podendo, também
responder a entidade patronal desde que o Auto de Notícia conste a materialidade
fáctica que permita a imputação do ilícito à entidade empregadora, quer seja a
nível da sua exclusiva autoria, quer, como co-autora, quer a título de cúmplice.
Não havendo no Auto de Notícia factos que permitam a imputação directa do
referido ilícito à entidade empregadora, impõe-se a respectiva absolvição em
processo contra-ordenacional com base nos art.°s 614. ° do Código do Trabalho e
26. ° e 27. ° do Código Penal. Pelo que deverá proceder o recurso.
É certo que entretanto entrou em vigor o Decreto-Lei n. ° 237/2007, de 19 de
Junho de 2007, o qual, no n. ° 1 do seu art.° 1.º esclareceu que «o disposto nos
artigos 3.º a 9.º prevalece sobre as disposições correspondentes do Código do
Trabalho».
Ora, o n. ° 1 do seu art.° 8. °, veio estipular que «o período de trabalho
diário dos trabalhadores de duração não inferior a trinta minutos, se o número
de horas de trabalho estiver compreendido entre seis e nove, número de horas for
superior a nove» e no n. ° 2 que «os trabalhadores móveis não podem prestar mais
de seis horas de trabalho consecutivo.» E por sua vez, o n. ° 2 do art.° 10. °
desse diploma estabeleceu que «o empregador é responsável pelas infracções ao
disposto no presente decreto-lei.»
Destarte, aparentemente estaria assim estabelecida nova fonte legal de
responsabilização contra-ordenacional para os empregadores cujos trabalhadores
fossem motoristas de veículos pesados de mercadorias ou de passageiros que
tivessem violado o ali estabelecido sobre os tempos máximos de trabalho/de
descanso. Mas vejamos mais cuidadosamente se assim será.
Conforme estipula o n. ° 2 do art.° 1. ° do mencionado diploma legal, «o
presente diploma transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n. °
2002/15/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 1] de Março, relativa à
organização do tempo de trabalho das pessoas que exercem actividades móveis de
transporte rodoviário.»
Sabemos bem que segundo o n. ° 4 do art.° 8. ° da Constituição da República, «as
disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das
suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na
ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos
princípios fundamentais do Estado de direito democrático.» Ora, sobre essa
matéria diz-nos o art.° 249. ° do Tratado da Comunidade Europeia diz que «a
directiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar,
deixando no entanto às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos
meios.» Daí que importe saber se o que sobre isso dispõe a Constituição da
República Portuguesa.
Releva, desde logo, o n. ° 8 do seu art.° 112°, segundo o qual «a transposição
de actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a
forma de lei, decreto-lei ou, nos termos do disposto no ° 4, decreto legislativo
regional.» E também o art° 165. °, o qual, no que interessa tem o seguinte
conteúdo.
«1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
(...)
d) Regime geral... dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo
processo;
(...).»
Ora, o Governo publicou o citado Decreto-Lei n. ° 237/2007, de 19 de Junho de
2007 desprovido de qualquer autorização legislativa. De resto, nem escondeu que
o fazia, uma vez que ali invocou para legitimar a sua tarefa o disposto no art.°
198. °, n. ° 1, alínea a) da Constituição, o qual, como é de conhecimento
generalizado, versa sobre a competência legislativa própria daquele órgão. Que
assim é pode facilmente constatar-se lendo seu conteúdo, que é este:
«1. Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
a) Fazer decretos-leis em matérias não reservadas à Assembleia da República;
(...).»
Assim sendo as coisas, afigura-se-nos singelamente claro que aquele diploma é
inconstitucional e por isso não pode ser aplicado pelos tribunais, sem ofensa da
própria Lei Fundamental (cfr. o seu art.°204.°). O que, não ignoramos, o Acórdão
do Tribunal da Relação do Porto, de 18-02-2008, publicado nas Bases
Jurídico-Documentais do Ministério da Justiça, em http://www.dgsi.pt, não
ponderou, tendo aplicado aquele diploma sem qualquer consideração acerca do
regime normativo que atrás referimos.
Daí que a solução seja, como atrás se delineou, aplicar o direito em vigor e que
mais não é do que o que atrás deixámos referido, tanto bastando para que proceda
o recurso.
2. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto, junto a este Tribunal, notificado para dar
cumprimento ao disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 75.º-A da Lei do Tribunal
Constitucional, veio dizer o seguinte:
“1.º Face à matéria de facto considerada provada e à fundamentação da sentença,
são apenas de considerar susceptíveis de relevar para a decisão as seguintes
normas:
- artigo 1°, n° 3 (‘O disposto nos artigos 3° a 9° prevalece sobre as
disposições correspondentes ao Código do Trabalho’).
- artigo 14°, n° 2, alínea c) (‘Constitui contra-ordenação grave a falta de
anotação ou a anotação incompleta das indicações a incluir na folha de registo,
no fim do período a que respeita’)
- artigo 10°, n° 2 (‘o empregador é responsável pelas infracções ao disposto no
presente decreto-lei’)
2.º Deve, pois, entender-se que o objecto do presente recurso consiste a
apreciação de inconstitucionalidade do critério normativo, extraído dos artigos
l, n° 3, 14°, n° 2, alínea c), e 10, n° 2, do Decreto-Lei n° 237/2007, de 19 de
Junho, que determina a responsabilidade do empregador pela contra-ordenação
consistente na falta de anotação ou na anotação incompleta das indicações a
incluir na folhe de registo, no fim do período a que respeita.
3.º Apesar de entendermos que a exigência de indicação da norma ou princípio
constitucional violado, apenas tem lugar nos recursos interpostos ao abrigo das
alíneas b) e f) do n° 1 do artigo 70° (artigo 75°-A, n° 2, da Lei do Tribunal
Constitucional), sempre se dirá que resulta de decisão estamos perante uma
inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165°, n° 1, alínea d), da
Constituição.”
3. Notificado, em seguida, para alegações, concluiu o Exmo. Procurador-Geral
Adjunto, do seguinte modo:
“1. Apenas se situa no âmbito da competência legislativa reservada da Assembleia
da República o estabelecimento do regime geral do ilícito de mera ordenação
social, podendo o Governo legislar em tal matéria, desde que o faça dentro dos
limites impostos por esse regime geral.
2. No uso dessa sua competência própria, pode a Assembleia definir regimes
gerais sectoriais, tendo em atenção as especificidades das matérias que visa
regular, como é o caso das infracções laborais.
3. Face à definição de contra-ordenação laboral constante do artigo 614° do
Código do Trabalho de 2003 (norma integrada no Regime Geral das
Contra-Ordenações Laborais), podem estar incluídos entre os sujeitos
responsáveis pela infracção tanto as entidades empregadoras como os
trabalhadores.
4. Dessa forma, e uma vez que é respeitado aquele o regime geral, o critério
normativo, extraído dos artigos 14°, n° 2, alínea c), e 10°, n° 2, do
Decreto-Lei n° 237/2007, de 19 de Junho, que determina a responsabilidade do
empregador pela contra-ordenação consistente na falta de anotação ou na anotação
incompleta das indicações a incluir na folhe de registo, no fim do período a que
respeita, não viola o artigo 165°, no 1, alínea d), da Constituição, não sendo,
por isso, organicamente inconstitucional.
5. Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Esta questão foi recentemente apreciada e decidida pelo Tribunal
Constitucional não se vislumbrando razões para afastar tal jurisprudência.
Com efeito, sobre a concreta questão de constitucionalidade que se perfila nos
autos exarou este Tribunal o Acórdão n.º 578/2009 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Disse-se, nomeadamente, no citado aresto:
“5. Considerou a decisão recorrida, em suma e para o que agora importa, que o
Decreto-Lei n° 237/2007, de 19 de Junho, é organicamente inconstitucional, por
alegada violação do artigo 165°, n° 1, alínea a), da Constituição. Fê-lo por
entender que, de várias das suas disposições conjugadas [a decisão recorrida
refere expressamente os artigos 1°, n° 1, 8°, n°s 1 e 2, e 10°, n° 2],
decorreria, inovatoriamente, a responsabilidade contra-ordenacional dos
empregadores cujos trabalhadores fossem motoristas de veículos pesados de
mercadorias, por factos praticados em violação dos tempos de condução e repouso
destes trabalhadores. Sendo certo que, no seu entendimento, no regime anterior —
constante da Lei n° 99/2003, de 27 de Agosto, que aprovou o Código do Trabalho
então em vigor, tal como vinha sendo interpretado pela jurisprudência –, apenas
o condutor/trabalhador, e não também a entidade patronal, seria responsável pela
infracção traduzida no incumprimento das disposições legais relativas aos tempos
de condução e de repouso, ao menos quando do auto de notícia não constassem
factos que permitissem uma imputação directa da responsabilidade à entidade
empregadora. Vejamos.
6. O artigo 165°, n° 1, alínea a), da Constituição, invocado pela decisão
recorrida, reserva à competência exclusiva da Assembleia da República, salvo
autorização ao Governo, legislar sobre o regime geral dos actos ilícitos de mera
ordenação social e do respectivo processo. O Tribunal Constitucional tem-se
debruçado detalhadamente e por várias vezes sobre o sentido normativo
fundamental deste artigo 165°, n. ° 1, al. d), da Constituição. Fê-lo, pela
primeira vez, mais detalhadamente, no Acórdão n° 56/84, (Acórdãos do Tribunal
Constitucional, vol. 3°, págs. 153), ao qual se seguiram ao longo dos anos
muitos outros. Dessa vasta jurisprudência resulta, em síntese, que apenas é
matéria de competência reservada da Assembleia da República, salvo autorização
ao Governo, legislar sobre o regime geral do ilícito de mera ordenação social e
do respectivo processo; isto é: (i) sobre a definição da natureza do ilícito
contraordenacional, (ii) a definição do tipo de sanções aplicáveis às
contra-ordenações (iii) a fixação dos respectivos limites das coimas e (iv) a
definição das linhas gerais da tramitação processual a seguir para a aplicação
concreta de tais sanções. Assim e em suma, com observância do regime geral, e
dos limites aí definidos, pode o Governo livremente criar contra-ordenações
novas, modificar ou eliminar as contra-ordenações já existentes e estabelecer as
coimas a elas aplicáveis.
Ora, definidos, nestes termos, os quadros gerais em função dos quais se delimita
a competência, nesta matéria, dos dois órgãos de soberania, não se vê que o
Governo, através da emissão do referido Decreto-Lei n° 237/2007, de 19 de Junho,
tenha invadido a competência própria da Assembleia da República. A conclusão
contrária a que chega a decisão recorrida parece decorrer, essencialmente, de um
pressuposto que não será correcto. Com efeito, apenas cabe na competência
própria da Assembleia da República, nos termos já supra descritos, definir o
‘regime geral dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo
processo’, e não, como parece pressupor a decisão recorrida, necessariamente,
todo o regime dos actos ilícitos de mera ordenação social de um determinado
sector. Quer isto dizer que o Governo pode, em princípio, sem necessidade de
autorização da Assembleia da República, criar novas contra-ordenações aplicáveis
num determinado sector de actividade, em que exista um regime geral sectorial,
desde que se contenha dentro dos limites do regime geral das contra-ordenações.
7. Mas, ainda que assim se não entenda, sempre será legítimo ao Governo criar
contra-ordenações num sector de actividade em que a Assembleia da República
tenha estabelecido um regime geral sectorial, desde que respeite este regime ou,
mais rigorosamente, as regras deste regime sectorial que possam simultaneamente
ser concebidas como regras do regime geral das contra-ordenações.
Ora, assim sendo e prevendo o regime geral do ilícito de mera ordenação social
que as coimas tanto se podem aplicar às pessoas singulares como às pessoas
colectivas e prevendo o artigo 614° do Código do Trabalho de 2003 que, nas
respectivas contra ordenações, possa ser responsável “qualquer sujeito no âmbito
das relações laborais”, incluindo tanto as entidades empregadoras como os
trabalhadores, apenas resta concluir que não se vê que as normas que vêm
questionadas invadam o âmbito da reserva legislativa da Assembleia da República.
Na verdade, tais normas não se podem, por um lado, incluir na definição da
natureza do ilícito de ordenação social, na definição do tipo de sanções
aplicáveis às contra-ordenações e muito menos na fixação dos respectivos limites
ou na tramitação processual das contra-ordenações; e, por outro, não extravasam
os quadros legalmente definidos da responsabilidade de pessoas colectivas ou de
entidades empregadoras, não consubstanciando, nem autorizando, qualquer forma de
responsabilidade objectiva. Pelo que a sua edição pelo Governo, sem autorização
legislativa do Parlamento, não viola a Constituição, não sendo,
consequentemente, as mesmas organicamente inconstitucionais. Conclusão análoga,
aliás, à que se tirou, por exemplo, no Acórdão n° 359/2001 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), em que se julgou “não inconstitucional a norma
do artigo 29° com referência ao artigo 27°, n°4, do Decreto-Lei n° 3 8/99, de 6
de Fevereiro”, que considerava responsável a pessoa colectiva ou singular que
efectuasse o transporte, pela contra-ordenação consistente em o condutor do
veículo se escusar a levar o veículo à pesagem das balanças ao serviço da
entidade fiscalizadora.”
III — Decisão
5. Assim, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a reformulação
da decisão recorrida em conformidade com o juízo de constitucionalidade que se
acaba de fazer.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2009
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos
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