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Processo n.º 777/09
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., encontrando-se preso preventivamente desde 27 de Julho de 2007, formulou
um pedido de habeas corpus perante o Supremo Tribunal de Justiça por considerar
que o prazo máximo da prisão preventiva está excedido, defendendo para tanto o
entendimento de que a norma do artigo 215º, n.º 6, do Código Penal, na redacção
dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, ao elevar o prazo máximo da prisão
preventiva para metade da pena que tiver sido fixada quando o arguido tenha sido
condenado a pena de prisão em 1ª instância e a sentença condenatória tiver sido
confirmada em sede de recurso ordinário, não abrange os casos em que o tribunal
de recurso tiver agravado essa pena.
Alegou, além do mais, que o n° 6 do artigo 215° do Código de Processo Penal é
inconstitucional, na interpretação que estende a respectiva previsão à hipótese
de o acórdão proferido pelo tribunal de segunda instância agravar a pena de
prisão imposta pela sentença de primeira instância, por ofensa, entre outros,
dos artigos 18°, n° 2, e 29°, n° 3, Constituição da República, e que o conjunto
normativo formado por essa norma e pela da alínea f) do n° 1 do artigo 400º do
mesmo Código é igualmente inconstitucional, na interpretação que permite que um
arguido condenado por decisão não transitada em julgado fique sujeito a prisão
preventiva por prazos que oscilam de quatro a doze anos e meio, o que considera
ser incompatível com a presunção de inocência e o direito ao julgamento no mais
curto prazo, com a natureza subsidiária da prisão preventiva e com os princípios
da necessidade, adequação, proporcionalidade e razoabilidade das restrições aos
direitos, liberdades e garantias fundamentais, ofendendo o disposto nos artigos
18°, n.º 2, 28°, n.º 2, e 32°, n.º 2, da Constituição.
Por acórdão de 27 de Agosto de 2009, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o
pedido de habeas corpus, dizendo, no essencial, que há confirmação da sentença,
para efeitos previstos n° 6 do artigo 215° em matéria de limites à prisão
preventiva, quando o tribunal superior aplica uma pena igual ou superior à
fixada pela sentença recorrida, elevando-se o prazo máximo da prisão preventiva,
em caso de agravamento da pena, a metade da pena de prisão aplicada pelo
tribunal superior.
O arguido interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto
na alínea b) do n° 1 do artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das seguintes normas legais:
- artigo 215°, nº 6, do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29
de Agosto, na interpretação que estende a respectiva previsão à hipótese de o
acórdão proferido pelo tribunal de segunda instância agravar a pena de prisão
imposta pela sentença de primeira instância, por ofensa, entre outros, dos
artigos 18°, n° 2, e 29°, n° 3, da CRP;
- conjunto normativo formado pela al. f) do n° 1 do artigo 400º e pelo nº 6 do
artigo 125° do CPP, na redacção introduzida pela Lei n° 48/2007, de 29 de
Agosto, na medida e na interpretação que permite que um arguido condenado por
decisão não transitada em julgado fique sujeito a prisão preventiva por prazos
que oscilam de quatro a doze anos e meio, o que é incompatível com a presunção
de inocência e o direito ao julgamento no mais curto prazo, com a natureza
subsidiária da prisão preventiva e com os princípios da necessidade, adequação,
proporcionalidade e razoabilidade das restrições aos direitos, liberdades e
garantias fundamentais, e ofende o disposto, entre outros, nos artigos 18º, n.º
2, 28º, n.º 2, e 32º, n.º 2, da CRP.
Tendo prosseguido o processo, o recorrente apresentou alegações, em que formulou
as seguintes conclusões:
1 - O Recorrente está sujeito, desde 27 de Julho de 2007 a prisão preventiva.
2 - O acórdão da Relação que agravou a pena de prisão que lhe foi aplicada em
primeira instância não transitou em julgado, por estar pendente de recurso
interposto, com efeito suspensivo, para o Supremo Tribunal de Justiça.
3 – Entendimento diverso implicaria que o Arguido tivesse entrado em cumprimento
antecipado de pena,
4 - o que contraria o teor literal da Lei (arts 214º, 2, 215º, 6, 408º, 1, a),
CPP)
5 - e envolveria a interpretação inconstitucional do nº 6 do artº 215º, por
ofensa, entre outros, do nº 2 do artº 32º, CRP.
6 - Não se justificam, por isso, dúvidas sobre a utilidade do presente recurso,
uma vez que o Recorrente continua em prisão preventiva.
7 - O nº 6 do artº 215º é inconstitucional, na interpretação que estende a
respectiva previsão à hipótese de o acórdão proferido pelo tribunal de segunda
instância agravar a pena de prisão imposta pela sentença de primeira instância,
além do mais por implicar o recurso à analogia, o que ofende, entre outros, dos
arts 18º, nº 2, e 29º, nº 3, CRP.
8 - O conjunto normativo formado pela al. f) do nº 1 do artº 400º e pelo nº 6 do
artº 125º CPP é inconstitucional, na medida e na interpretação que permite que
um arguido condenado por decisão não transitada em julgado fique sujeito a
prisão preventiva por prazos que oscilam de quatro a doze anos e meio, o que é
incompatível com a presunção de inocência e o direito ao julgamento no mais
curto prazo, com a natureza subsidiária da prisão preventiva e com os princípios
da necessidade, adequação, proporcionalidade e razoabilidade das restrições aos
direitos, liberdades e garantias fundamentais e ofende o disposto, entre outros,
nos arts 18º, 2, 28º, 2, e 32º, 2, da CRP.
O Magistrado do Ministério Público contra-alegou, concluindo, por sua vez, do
seguinte modo:
1. Estando o arguido preso preventivamente há cerca de dois anos e três meses,
apreciar a inconstitucionalidade de normas (artigos 400º, nº 1, alínea j) e
215º, nº. 6 do CPP), numa interpretação que possa permitir que um arguido fique
em prisão preventiva entre quatro anos e doze anos e meio, não se reveste de
qualquer efeito útil.
2. Assim, nesta parte, não deverá conhecer-se do recurso.
3. A norma do nº. 6 do artigo 215º do CPP, na interpretação que estende a
respectiva previsão à hipótese de o acórdão proferido pelo tribunal de segunda
instância agravar a pena imposta pela sentença de 1ª. instância, não viola nem o
princípio da proporcionalidade, nem o princípio da legalidade, nem o princípio
da presunção de inocência (artigos 18º., nº.2, 29º., nº. 3, e 32º., nº 2, da
Constituição, respectivamente).
4. Essa é, aliás, a única interpretação correcta e lógica, pois não faria
qualquer sentido que, precisamente nos casos em que o tribunal superior
agravasse a pena, tudo se passasse como se não tivesse ocorrido qualquer
condenação.
5. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.
Tendo sido suscitado pelo relator a questão prévia da não apreciação do objecto
do recurso da segunda questão de constitucionalidade, por inutilidade, o
recorrente respondeu, dizendo o seguinte:
Com o maior respeito, o Recorrente não compreende, de todo, a razão de ser desta
questão prévia, desde logo porque não alcança qual seja, no contexto do
processo, a justificação para trazer ao debate aquele prazo de quatro anos. Tal
prazo não está previsto, em abstracto, em nenhuma das normas contidas no art°
215º CPP, sem prejuízo de poder emergir, em concreto, da aplicação da norma do
nº 6 do preceito, cuja constitucionalidade está posta em causa neste recurso.
Ora, bem ou mal, não foi este último o sentido da norma adoptado pelo Supremo
Tribunal de Justiça, que, entre a metade da pena aplicada em primeira instância
— quatro anos, ou seja, metade da pena de nove anos -, e a metade da pena
aplicada pelo Tribunal da Relação — quatro anos e seis meses, ou seja, metade da
pena de nove anos -, optou pela segunda, subscrevendo o entendimento de que “o
prazo de prisão preventiva eleva-se peça quatro anos e meio de prisão” (v.
acórdão, fls 16)
Os termos em que a questão prévia vem anunciada só poderão compreender-se,
portanto, se referidos a um prazo de prisão preventiva (quatro anos) que nem
consta dos prazos gerais nem foi o prazo concreto fixado pela decisão recorrida.
Mas o problema parece ser outro e bem mais relevante: postular a inutilidade
superveniente do recurso por não estar ainda excedido o prazo máximo da prisão
preventiva permitida numa das interpretações do artº 215°, nº 6 — que não é
sequer a interpretação fixada pala decisão recorrida -, significa, sem margem
para dúvidas, que está a antecipar-se a decisão final de recurso.
Dito por outras palavras: aquele prazo de quatro anos pode ser considerado seja
para que efeito for, assumindo que o nº 6 do art° 215º não é inconstitucional.
Mas, sendo esse, como é, o objecto do recurso, esse pressuposto não poderá
jamais sustentar uma questão prévia, sob pena de se antecipar, a título
provisório, a decisão final, o que envolve uma contradição nos próprios termos.
Termos em que, deve declarar-se que não se verifica a inutilidade superveniente
do recurso, conhecendo-se do respectivo objecto.
Cabe apreciar e decidir.
II Fundamentação
Delimitação do objecto do recurso
2. O recorrente pretende a apreciação da constitucionalidade da norma do artigo
215°, nº 6, do CPP, na redacção introduzida pela Lei nº 48/2007, de 29 de
Agosto, na interpretação segundo a qual a elevação do limite máximo da prisão
preventiva aí previsto para metade da pena que tiver sido fixada pelo tribunal
superior, em caso de recurso, se aplica não apenas quando tenha sido confirmada
a sentença condenatória da primeira instância, mas também quando tenha sido
agravada pelo tribunal de recurso a pena fixada nessa sentença, implicando que o
referente para o prazo máximo da prisão preventiva seja o da pena agravada.
Partindo do entendimento sufragado no acórdão recorrido quanto a essa específica
questão, o recorrente aditou ainda ao objecto de recurso de constitucionalidade
uma outra dimensão interpretativa, agora reportada ao conjunto normativo
constituído por aquela disposição e pela norma da alínea f) do n° 1 do artigo
400º do CPP, e que se traduz na possibilidade de um arguido condenado por
decisão não transitada em julgado ficar sujeito a prisão preventiva por prazos
que oscilam de quatro a doze anos e meio.
O recorrente chega a este resultado interpretativo por aplicação, em abstracto,
do critério normativo adoptado pelo tribunal recorrido no caso sub juditio:
partindo desse mesmo critério, quando esteja em causa um recurso para o Supremo
Tribunal de Justiça de um acórdão condenatório das relações que confirma pena de
prisão superior a 8 anos (hipótese de admissibilidade de recurso contemplada no
artigo 400º, n.º 1, alínea f), do CPP), e tendo em consideração que o limite
máximo da pena de prisão aplicável é de 25 anos, torna-se possível que um
arguido fique preso preventivamente por períodos de tempo que oscilam entre
quatro a doze anos e meio, por virtude de o prazo máximo da prisão preventiva
dever corresponder a metade de uma qualquer pena de prisão que se fixe, em
julgamento definitivo, entre aqueles dois limites.
Parece a todos os títulos evidente que esta segunda questão de
constitucionalidade, tal como o recorrente a identifica, é uma mera extrapolação
do julgamento feito pelo Supremo Tribunal de Justiça quanto à questão que lhe
vinha colocada e que não tem qualquer aplicação no caso concreto. De facto, o
arguido encontra-se preso preventivamente desde 27 de Julho de 2007 (e,
portanto, há pouco mais de dois anos) e não resulta, de nenhum modo, da decisão
recorrida que ele tenha de manter-se nessa situação durante quatro anos ou por
período que possa estender-se até doze anos e meio.
Como o Tribunal Constitucional tem afirmado sistematicamente, o recurso de
constitucionalidade tem uma função meramente instrumental que é aferida pela
repercussão que o julgamento da questão de constitucionalidade possa ter no
momento em que se deva proceder à reforma da decisão recorrida, o que leva a
concluir que é inútil a apreciação do objecto do recurso quando o sentido da
decisão a proferir não possa ter qualquer efeito prático (entre muito outros, os
acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 397/08 e 152/2009).
A hipótese normativa que o recorrente coloca como segunda questão de
constitucionalidade é meramente académica, e, como ele próprio reconhece na
resposta à questão prévia suscitada pelo relator, não foi sequer aplicada pela
decisão recorrida. E, como é claro, não pode conhecer-se do recurso apenas para
acautelar quaisquer incidências processuais futuras e meramente eventuais, que
por isso não tenham reflexo imediato na resolução do caso concreto.
Termos em que se entende ser de não conhecer do recurso no que concerne à
segunda questão de constitucionalidade invocada.
3. A única questão a decidir é, pois, a de saber se a norma do n° 6 do artigo
215° do Código de Processo Penal, tal como foi interpretada pelo tribunal
recorrido, se encontra ferida de inconstitucionalidade, por violação do
princípio ínsito no artigo 18º, n.º 2, bem como do princípio da legalidade penal
resultante do artigo 29º, n.º 3, todos da Constituição.
O artigo 215º do CPP, que fixa os prazos de duração máxima da prisão preventiva,
na sua redacção actual, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto,
dispõe o seguinte:
1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem
decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão
instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para 6
meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos, em casos de terrorismo, criminalidade
violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com
pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:
a) Previsto no artigo 299.º, no n.º 1 do artigo 318.º, nos artigos 319.º, 326.º,
331.º ou no n.º 1 do artigo 333.º do Código Penal e nos artigos 30.º, 79.º e
80.º do Código de Justiça Militar, aprovado pela Lei n.º 100/2003, de 15 de
Novembro (uma vez que os artigos 312.º e 315.º do Código Penal foram revogados
pela Lei n.º 100/2003, de 15 de Novembro, que os substituiu pelos indicados
artigos 30.º, 79.º e 80.º);
b) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou
de elementos identificadores de veículos;
c) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e
equiparados ou da respectiva passagem;
d) De burla, insolvência dolosa, administração danosa do sector público ou
cooperativo, falsificação, corrupção, peculato ou de participação económica em
negócio;
e) De branqueamento de vantagens de proveniência ilícita;
f) De fraude na obtenção ou desvio de subsídio, subvenção ou crédito;
g) Abrangido por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima.
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para um ano, um
ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro meses, quando o
procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de
excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de arguidos ou de
ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode ser
declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a
requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.
5 - Os prazos referidos nas alíneas c) e d) do n.º 1, bem como os
correspondentemente referidos nos n.ºs 2 e 3, são acrescentados de seis meses se
tiver havido recurso para o Tribunal Constitucional ou se o processo penal tiver
sido suspenso para julgamento em outro tribunal de questão prejudicial.
6 - No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1.ª instância e
a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o
prazo máximo da prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido
fixada.
7 - A existência de vários processos contra o arguido por crimes praticados
antes de lhe ter sido aplicada a prisão preventiva não permite exceder os prazos
previstos nos números anteriores.
8 - Na contagem dos prazos de duração máxima da prisão preventiva são incluídos
os períodos em que o arguido tiver estado sujeito a obrigação de permanência na
habitação.
Segundo o regime assim consignado, o prazo de duração da prisão preventiva
conta-se sempre do seu início e não pode exceder certos limites (acumulados) que
se reportam a quatro marcos processuais: 1.º - dedução da acusação; 2.º –
prolação de decisão instrutória quando tenha havido instrução; 3.º – condenação
em 1.ª instância; 4.º – trânsito em julgado da condenação.
Aos prazos fixados para cada uma dessas fases processuais aplicam-se, consoante
os casos, três diferentes regimes: o normal (4 meses, 8 meses, 1 ano e 2 meses e
1 ano e 6 meses); o especial, em que se atende à gravidade dos crimes (6
meses, 10 meses, 1 ano e 6 meses e 2 anos); e o excepcional, quando a essa
gravidade dos crimes acresce a excepcional complexidade do procedimento (1 ano,
1 ano e 4 meses, 2 anos e 6 meses e 3 anos e 4 meses) – n.ºs 1, 2 e 3 do artigo
215.º do CPP.
A ideia central do sistema é a de fazer coincidir, ao menos
tendencialmente, a duração máxima (acumulada) de prisão preventiva com o termo
das sucessivas fases processuais. Dentro de cada fase processual, os prazos de
duração máxima de prisão preventiva são ainda pré-determinados segundo a
gravidade do tipo legal de crime e a complexidade do procedimento (veja-se sobre
estes aspectos, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 2/2008, publicado no
Diário da República, 2ª série, de 14 de Fevereiro de 2008).
Na base da introdução do sistema terá estado – como se afirma também no acórdão
do Tribunal Constitucional n.º 404/05 - o propósito de promover o andamento sem
delongas do processo, incentivando os respectivos responsáveis a respeitar os
prazos de conclusão de cada fase, sob risco de insubsistência de uma prisão
preventiva tida por essencial para a prossecução dos objectivos da justiça
criminal.
A lei prevê, no entanto, um outro limite para o prazo máximo da prisão
preventiva, através do transcrito n.º 6 desse artigo 215º, que resulta da
confirmação em sede de recurso ordinário da sentença condenatória de primeira
instância. O que parece ter-se pretendido, através da previsão legal, é um
prolongamento da prisão preventiva quando exista já um suficiente grau de
certeza acerca da prática do crime, da sua autoria e da existência de culpa
(baseado num duplo juízo condenatório), de modo a evitar que a extinção da
medida de coacção pudesse vir a ocorrer por virtude da interposição de novo
recurso (para o Supremo Tribunal de Justiça ou para o Tribunal Constitucional)
ou da utilização de expedientes dilatórios que prolongassem artificialmente a
duração do processo (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de
Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2007, págs. 595-596).
A elevação do prazo máximo de prisão preventiva, nessa circunstância, assenta,
por sua vez, em dois factores distintos: a confirmação do juízo condenatório por
parte do tribunal superior implica de per si a prorrogação do prazo de prisão
preventiva; a medida da pena influencia o limite temporal dessa prorrogação,
visto que o prazo é ampliado em metade da pena que tiver sido fixada.
Por outro lado, esses dois factores são revelados pela sucessiva actividade
cognitiva do tribunal no momento da elaboração da sentença. Em primeiro lugar,
como determina o artigo 368º do CPP (também aplicável em sede de recurso –
artigo 424º, n.º 2, do CPP), o tribunal aprecia a questão da culpabilidade,
verificando se estão definidos os elementos constitutivos do tipo de crime, se o
arguido praticou o crime ou nele participou, se actuou com culpa, se se
verificou alguma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, e se se verificaram
quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do
agente. Se se concluir que ao arguido deve ser aplicada uma pena, o tribunal
pronuncia-se em seguida, nos termos consignados no subsequente artigo 369º,
sobre a questão da determinação da sanção, verificando aspectos relativos aos
antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e situação social, para
efeito de fixar a espécie e medida da pena.
Facilmente se compreende o peso relativo que o legislador quis
atribuir à resposta dada pelo tribunal a estas duas questões: um juízo
confirmativo da existência de culpa determina a ampliação do prazo de prisão
preventiva; a medida da pena determina o quantum dessa ampliação.
No caso vertente, o ora recorrente foi condenado em primeira instância numa pena
única, em cúmulo jurídico, de 8 anos de prisão. O Tribunal da Relação negou
provimento ao recurso interposto pelo arguido e concedeu provimento parcial ao
recurso interposto pelo Ministério Público, condenando o arguido na pena única
de 9 anos de prisão. Na sequência, foi produzido despacho judicial que elevou o
prazo de prisão para metade da pena aplicada.
Interposto pedido de habeas corpus, o Supremo Tribunal de Justiça, através da
decisão ora recorrida, considerou que há confirmação da sentença, para os
efeitos previstos no artigo 215º, n.º 6, do CPP, quando o tribunal de recurso
aplica uma pena igual ou superior à da sentença de primeira instância, e manteve
assim o entendimento de que o prazo de prisão preventiva se ampliou para 4 anos
e meio, correspondente a metade da pena aplicada em recurso.
Sustenta o recorrente que o tribunal recorrido efectuou uma interpretação
extensiva ou analógica da disposição do artigo 215º, n.º 6, e que, assim
interpretada, essa norma é inconstitucional, por violação dos artigos 18º, nº 2,
e 29º, nº 3, da Constituição.
O Tribunal Constitucional tem vindo a admitir, começando por este último
parâmetro de constitucionalidade, que o princípio da legalidade penal, que surge
concretizado no artigo 29º, n.º 3, da Constituição, se torna extensivo às normas
processuais que condicionam a aplicação das sanções penais (v.g. as relativas à
prescrição, ao exercício, caducidade e desistência do direito de queixa, e à
reformatio in pejus), bem como àquelas que possam afectar o direito à liberdade
do arguido (v.g. as relativas à prisão preventiva) ou que asseguram os seus
direitos fundamentais de defesa, disposições que, assim, poderão entender-se
como normas processuais penais substantivas (cfr., neste sentido, o acórdão n.º
551/09 e a doutrina e jurisprudência nele citada).
Como corolário ou consequência do princípio da legalidade penal conta-se a
exigência de determinabilidade do conteúdo da lei criminal, que acarreta que
devam ser tidas como ilegítimas as definições vagas, incertas ou insusceptíveis
de delimitação, e leva igualmente à proibição da aplicação analógica da lei
criminal (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, 4ª edição revista, I vol., Coimbra, pág. 495; Jorge Miranda/Rui
Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I Tomo, Coimbra, 2005, págs.
327-328). Neste sentido, o princípio da legalidade, na qualidade de parâmetro
constitucional, impõe a formulação da norma penal com um conteúdo autónomo e
suficiente, possibilitando um controlo objectivo na sua aplicação
individualizada e concreta, como também se afirma no acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 93/2001.
Aplicados tais princípios às normas processuais penais substantivas, como antes
se expôs, seria sustentável afirmar-se que as normas que definem a duração do
prazo de prisão preventiva, e, designadamente, a do artigo 215º, n.º 6, aqui
particularmente em foco, não poderão ser objecto de interpretação analógica no
ponto em que uma tal interpretação pode pôr em causa o direito à liberdade do
arguido. E poderia ainda fazer-se equivaler a essa situação uma interpretação
extensiva que, tendo embora no texto legal um mínimo de correspondência verbal,
excedesse o sentido possível das palavras da lei, por ser ela ainda assim
incompatível com o fundamento da segurança jurídica que está ínsito no princípio
da legalidade penal (neste sentido, Sousa Brito, A lei penal na Constituição”,
in Estudos sobre a Constituição, 2º vol., pág. 253; admitindo, em geral, a
interpretação extensiva em processo penal, o acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 602/2004).
No caso vertente, porém, não subsiste qualquer lacuna que careça de ser
integrada pelo intérprete através da analogia, nem tão-pouco se adoptou uma
interpretação que ultrapasse o que resulta estritamente da letra da lei,
limitando-se o tribunal recorrido a escolher, no quadro de uma interpretação
declarativa, um dos sentidos literais possíveis, que está ainda coberto pela
formulação verbal da norma.
Como se deixou esclarecido, a norma do artigo 215º, n.º 6, do CPP consagrou uma
prorrogação do prazo máximo da prisão preventiva para o caso em que a sentença
condenatória de primeira instância tenha sido «confirmada em sede de recurso
ordinário» e definiu a proporção do aumento do prazo em função da «pena que
tiver sido fixada».
Há lugar à ampliação do prazo da prisão preventiva quando tenha havido
confirmação, pela Relação, da sentença condenatória de primeira instância, e
corresponde ao sentido literal da lei (ou, pelo menos, a um dos sentidos
literais possíveis) que o prazo máximo se eleve para metade da pena que tiver
sido aplicada no tribunal de recurso.
A «confirmação» opera quando o tribunal de recurso rejeita o recurso nos termos
do artigo 420º do CPP (e, por isso, não altera o julgado) ou aplica pena igual,
inferior ou superior à pena da sentença recorrida, visto que, em qualquer desses
casos há um juízo confirmativo de uma sentença condenatória que preenche, por
si, o requisito legal de que depende a elevação do prazo máximo da prisão
preventiva.
Quando houver um agravamento da pena em sede de recurso, pode considerar-se que
existe uma ambiguidade na análise literal do inciso «pena que tiver sido fixada»
constante do artigo 215º, n.º 6, visto que pode entender-se que essa pena, é a
que foi aplicada pelo tribunal de recurso (por ser esse o alcance do juízo
confirmativo) ou é a que foi aplicada pelo tribunal de primeira instância (por
ser até ao limite dessa pena que ocorreu uma efectiva reiteração pelo tribunal
da Relação do juízo da primeira instância sobre a culpa e a gravidade da pena).
O Supremo Tribunal de Justiça, no caso em apreço, optou pela primeira dessas
possíveis interpretações, mas trata-se, sem sombra de dúvida, de um entendimento
que cabe na letra da lei e corresponde a uma forma de interpretação declarativa.
A interpretação efectuada não envolve, por conseguinte, o recurso à analogia ou
sequer uma interpretação extensiva, pelo que não há nenhuma razão para
considerar verificada a violação do princípio da legalidade penal.
Um outro parâmetro de constitucionalidade invocado tem como referente o disposto
no artigo 18º, n° 2, da Constituição.
Como é sabido, o direito à liberdade admite as restrições que se encontram
previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 27º da Constituição, entre as quais se conta
a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a
que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
Constituindo as restrições ao direito à liberdade restrições a um direito
fundamental integrante da categoria de direitos, liberdades e garantias, estão
sujeitas às regras do artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, o que quer dizer
que «só podem ser estabelecidas para proteger direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os
proteger» (nestes precisos termos, Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob cit., pág.
479).
Por outro lado, como decorre do artigo 28º, n.º 4, do texto constitucional, «[a]
prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei», o que significa
que não pode deixar de ser temporalmente limitada de acordo com a sua natureza.
Cabendo à lei a fixação dos prazos de prisão preventiva, como resulta desse
preceito, dispõe o legislador ordinário, nessa matéria, de uma relativa margem
de liberdade de conformação, ainda que deva respeitar o princípio da
proporcionalidade (idem, pág. 490; no mesmo sentido, Jorge Miranda/Rui Medeiros,
ob. cit., pág. 321; entre outros, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º
246/99).
Ora, não se vê, no caso concreto, em que medida é que a interpretação adoptada
pelo tribunal recorrido poderá ferir o princípio da proporcionalidade. A decisão
do Supremo Tribunal de Justiça assentou na ideia de que há confirmação da
sentença condenatória quando o tribunal superior mantém a pena aplicada ou
estabelece pena superior. Considerou, por outro lado, que, tendo havido um
agravamento da pena em sede de recurso, a elevação do prazo máximo de prisão
preventiva, por efeito do disposto no artigo 215º, n.º 6, do CPP, passaria a ser
metade da pena agravada.
Independentemente da correcção da interpretação efectuada, no plano do direito
ordinário, aspecto que ao Tribunal Constitucional não cabe apreciar, o certo é
que a interpretação adoptada é congruente com o espírito do sistema e
corresponde a uma solução proporcionada em relação aos objectivos que o
legislador pretendeu atingir com a ampliação do prazo para a prisão preventiva.
O recorrente parece defender o entendimento de que só uma decisão confirmativa
que se mostrasse ser inteiramente coincidente, quanto à medida da pena, com a
sentença condenatória da primeira instância é que poderia preencher os
pressupostos da ampliação do prazo de prisão preventiva previsto no artigo 215º,
n.º 6, do Código de Processo Penal. Já se viu, no entanto, que a solução
legislativa assenta em dois diferentes fundamentos: a confirmação do juízo de
culpabilidade é motivo bastante para a prorrogação do prazo da prisão
preventiva; a medida da pena (aqui relevando a variação para mais ou para menos
resultante do julgamento efectuado pelo tribunal de recurso) determina o prazo
pelo qual a prisão preventiva será prorrogada.
Neste contexto, tem pleno cabimento (sobretudo à luz do princípio da
proporcionalidade) que ao agravamento da pena em recurso corresponda um
agravamento do limite temporal da duração da prisão preventiva. O que não faz
qualquer sentido, e seria flagrantemente contrário ao dito princípio da
proporcionalidade, é que a medida legislativa – que tem um objectivo de evitar a
eventual a libertação de réus presos já condenados por simples efeito da
utilização de expedientes dilatórios – apenas pudesse ser aplicada quando
houvesse uma absoluta sobreposição entre a decisão de recurso e a decisão de
primeira instância, e não já em todos os demais casos que justificam idêntico
tratamento (por envolverem um duplo juízo condenatório), mas relativamente aos
quais, em razão do poder de reapreciação do tribunal superior, tenha havido uma
ligeira discrepância quanto à dosimetria da pena.
A decisão recorrida não merece, pois, qualquer censura no plano
jurídico-constitucional.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) não conhecer do recurso quanto à segunda questão de constitucionalidade;
b) negar provimento ao recurso na parte em que dele se conhece.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 2 de Dezembro de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento
da questão de constitucionalidade respeitante à violação do princípio da
legalidade, no essencial, pelas razões constantes do Ponto 7. do acórdão N.º
494/03, de que fui relator).
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