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Processo n.º 272/09
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito do procedimento contra-ordenacional n.º 159/08.9 TBMDB, que correu
seus termos no Tribunal Judicial de Mondim de Basto, a sociedade arguida A., Lda.,
interpôs recurso da sentença condenatória, que lhe tinha sido notificada no dia
5 de Novembro de 2008, mediante requerimento enviado através de telecópia no dia
25 de Novembro do mesmo ano.
Tal recurso não foi admitido com fundamento em extemporaneidade e a referida
sociedade arguida reclamou dessa rejeição para o presidente do tribunal superior.
Por despacho da Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto, datado de 20 de
Fevereiro de 2009, foi indeferida a reclamação apresentada.
A sociedade arguida interpôs então recurso desta decisão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da
Lei do Tribunal Constitucional (LTC), onde suscitou a inconstitucionalidade
material da norma constante do ?art. 74.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações,
na interpretação segundo a qual o recurso deve ser interposto no prazo de 10
dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso
a decisão não tenha sido proferida sem a presença deste, estabelecendo um prazo
mais curto para o recorrente motivar o recurso do que aquele que decorre do art.
411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal?, com fundamento na alegada violação
dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição.
A recorrente apresentou as respectivas alegações, tendo concluído do seguinte
modo:
?I) Pretende a recorrente que seja apreciada a inconstitucionalidade do artigo
74º, n.º 1 do RGCO, quando interpretada no sentido de que o recurso deve ser
interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua
notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste,
estabelecendo um prazo mais curto para a recorrente motivar o recurso do que o
decorre do artigo 411º, n.º 1 do C.P.P.
II) Entende a recorrente que a referida interpretação viola os artigos 2º, 13º,
20º e 32º-1 da CRP.
III) É entendimento generalizado dos agentes do Ministério Público, sem que se
conheça oposição jurisprudencial de relevo, que a norma do n.º 4 do art.º 74º do
RGCO lhes permite remeter directamente para o prazo estabelecido no art.º 413º,
n.º 1 ? actualmente, vinte dias ? para motivar e apresentar a sua resposta.
IV) O entendimento contrário consubstancia uma manifesta violação do princípio
da igualdade de armas no processo, inerente ao princípio do processo equitativo,
consagrado no n.º 4 do art.º 20º da Constituição da República Portuguesa.
V) Trata-se de um tratamento desigual de duas situações iguais.
VI) Ora, sendo o prazo para a resposta ao recurso em processo contra-ordenacional
de 20 dias, nos termos do n.º 1 do art.º 413º do CPP, aplicável por força do n.º
4 do art.º 74º do RGCO, tal implica que seja também de 20 dias o prazo para a
interposição do recurso, em observância do referido principio da igualdade.
VII) Também o artigo 411º, n.º 1 do C.P.P estabelece um prazo de 20 dias para
recorrer.
VIII) Não obstante a publicação do AUJ, entendemos que o prazo de 10 dias para
interposição do recurso viola o direito de defesa e garantias do arguido,
princípio esse consagrado no artigo 32º, n.º 1 da CRP.
O acórdão do STJ viola, aqui e desde logo, o n.º 2 do artº 9º do Código Civil,
já que é inadmissível ao intérprete considerar um pensamento legislativo que não
tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que
imperfeitamente expresso.
IX) O intérprete não pode considerar de 10 dias um prazo que, segundo a letra
das disposições conjugadas do n.º 4º do artº 74º do RGCO e do n.º 1 do artº 413º
do CPP, é de 20 dias.
O dever de obediência à norma que conjugadamente se extrai daqueles duas
disposições não pode ser afastado pelas considerações do Tribunal Pleno, porque
a tanto se opõe o disposto no n.º 2 do artº 8º do Código Civil.
O Pleno criou assim uma norma jurídica nova para substituir a norma consequente
do n.º 1 do artº 74º do RGCC e do n.º 1 do artº 413º do CPP.
X) Ora, o Tribunal Pleno não tem competência constitucional para criar novas
normas jurídicas, sendo certo foi abolido já o regime do assentos por manifesta
inconstitucionalidade - violação do princípio da separação de poderes.
XI) O acórdão do STJ em que se estriba o despacho aqui em apreço, na medida em
que cria uma nova norma jurídica para que carece de competência, comete uma
inconstitucionalidade orgânica, violando o princípio da separação e
interdependência de poderes, consagrado no n.º 1 do artº 110º da CRP, inconstitucionalidade
que desde já se deixa arguida para todos os devidos e legais efeitos.
XII) O prazo de 10 dias impede a arguida de se defender e de lhe assegurar as
garantias de defesa, sendo que não é um prazo razoável para a interposição do
recurso.
XIII) O artigo 74º, n. 1, do RGCO foi declarado inconstitucional pelo Ac. TC
1220/96, de 05/12, publicado no BMJ 462/154-9, cujo sumário refere: ?O artigo 74,
n.º 1, quando dele decorre, conjugado com o artigo 411º do C.P.Penal, um prazo
mais curto para o recorrente motivar o recurso, está ferido de inconstitucionalidade,
por violação do artigo 13º da CRP?.
XIV) Também o Acórdão n.º 462/2003 (Diário da República, II Série, de 24 de
Novembro de 2003), o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a norma
resultante da conjugação do disposto no n.º 1 do artigo 74º do DL 433/82 e no
artigo 411º do C.P.P ?quando deles decorre (...) um prazo mais curto para o
recorrente motivar o recurso?.
XV) É inconstitucional a interpretação literal do citado preceito 74.º, n.º 1 do
RGCO, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da CRP, em
razão do confronto com as disposições dos artigos 411º, 1 e 413º, n.º 1 do C.P.P,
que estatuem o prazo geral de recurso e de resposta de 20 dias.
XVI) A norma do artigo 74º do RGCO além de ter sido declarada inconstitucional
pelos Acs. 1229/96 e 462/2003 foi também declarada inconstitucional com força
obrigatória geral, pelo Ac. 27/2006 do Tribunal Constitucional.
XVII) A existência de dois prazos distintos para a arguida recorrer em processo
criminal e em processo contra-ordenacional viola o princípio da igualdade, na
sua dimensão de princípio de igualdade de armas, à luz do artigo 13º da CRP.
XVIII) Ora, sendo o prazo para a resposta ao recurso em processo contra-ordenacional
de 20 dias, nos termos do n.º 1 do art.º 413º do CPP, aplicável por força do n.º
4 do art.º 74º do RGCC, tal implica que seja também de 20 dias o prazo para a
interposição do recurso.
XIX) Tanto mais que, o direito ao recurso implica que seja concedido à
recorrente um prazo razoável para motivar o recurso.
XX) O prazo de 10 dias é manifestamente insuficiente para recorrer e motivar o
recurso em comparação com o prazo de recurso em processo penal previsto no art.
411º C.P.P.
Aliás, sendo que tal prazo é superior mesmo nos recursos de processos urgentes
em processo civil e na próprias providências cautelares em direito civil que
sendo processos de carácter urgente estabelecem um prazo de recurso de 15 dias.
XXI) As situações sujeitas ao regime das contra-ordenações são tantas, a
legislação que a regula é tão vasta e tão contraditória que, para fundamentar um
recurso é necessário não só uma investigação legislativa aturada e, portanto
demorada com uma reflexão aturada sobre a lei existente.
XXII) Portanto não se diga que o direito criminal é mais vasto do que o direito
contra-ordenacional daí a existência de prazos distintos, o que manifestamente
não se aceita.
XXIII) Aliás, a tutela constitucional do direito ao recurso contencioso,
decorrente da garantia de acesso ao direito e aos tribunais, na medida em que
postula o exercício livre e esclarecido de tal direito (como forma de
salvaguardar materialmente os interesses inerentes), não admite a consagração,
no plano infraconstitucional, de exigências que, não se confundindo com o
exercício do direito dentro de um prazo pré-definido, consubstanciem antes, e
tão somente, condicionantes de tal exercício desprovidas de fundamento racional
e sem qualquer conteúdo útil.
XXIV) Ora, a impugnação de uma decisão pressupõe o conhecimento integral dos
respectivos fundamentos e um estudo aprofundado da legislação e jurisprudência
para fundamentação do recurso. Enquanto o recorrente não tiver acesso ao
raciocínio argumentativo que subjaz à decisão tomada e não tiver estudado
convenientemente o caso, não pode formar a sua vontade de recorrer, porque não
dispõe dos elementos que lhe permitem avaliar a justeza da decisão.
Nessa medida, e tendo presente a eficácia persuasiva intraprocessual da
fundamentação das decisões, pode afirmar-se que, antes de se dar a conhecer os
fundamentos decisórios e de os estudar convenientemente, não pode haver, porque
do ponto de vista da racionalidade comunicativa não é concebível, uma legítima
intenção de recorrer e o prazo de 10 dias é manifestamente diminuto para o fazer.
XXV) No processo de contra-ordenação poderão discutir-se questões tão essenciais
como o direito ao trabalho e à empresa, estando em causa sanções extremamente
gravosas quer em termos monetários quer no que toca ao funcionamento das
empresas.
XXVI) Daí a inconstitucionalidade da norma do art. 74º, nº 1 do RGCO quando
interpretada no sentido de que o recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias
a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação ao arguido, caso a
decisão tenha sido proferida sem a presença deste, estabelecendo um prazo mais
curto para a recorrente motivar o recurso do que o decorre do artigo 411º, n.º 1
do C.P.P.?
O Ministério Público contra-alegou nos seguintes termos:
?A interpretação que o recorrente pretende ver apreciada é, no essencial, a
mesma que o Supremo Tribunal de Justiça perfilhou no Acórdão [n.º 1/2009].
Neste aresto, faz-se um apanhado de jurisprudência do Tribunal Constitucional
sobre a matéria, que assumidamente, se respeita, dizendo-se expressamente que se
coloca a fixação de jurisprudência no terreno devido: interpretação do direito
ordinário pelos tribunais judiciais, tendo em conta o pronunciamento de
constitucionalidade do Tribunal Constitucional.
Efectivamente, o Supremo Tribunal de Justiça ao decidir daquela forma já teve
expressamente em conta a jurisprudência e os princípio constitucionais
relevantes nesta matérias, concordando-se inteiramente com o que aí se decidiu.
No entanto, e quanto à violação do principio da igualdade por da interpretação
em causa resultar um prazo mais curto do que o fixado no Código do Processo
Penal sempre se dirá que o Tribunal Constitucional tem entendido não serem
directa e globalmente aplicáveis em processo-ordenacional os princípios
constitucionais próprios do processo criminal. A diferença da natureza dos
ilícitos e a menor a ressonância ética do ilícito de mera ordenação social
justifica um regime processual porventura mais restritivo.
Dessa forma, o Acórdão nº 1229/96 não julgou inconstitucional a norma do artigo
74º, nº 1, do RGCO que, na altura (antes da alteração introduzida pelo Decreto-Lei
nº 244/95, de 14 de Setembro), fixava num prazo a cinco dias para interpor
recurso.
Portanto, um prazo para interpor recurso em processo contra-ordenacional não tem
que ser comparado com outros prazos vigentes em processo penal, não significando
isso que qualquer prazo seja constitucionalmente admissível.
O que tem de se apurar é se - atendendo às circunstâncias ? o prazo é suficiente
para garantir o fim a que se destina, respeitando-se, dessa forma, o direito
constitucionalmente consagrado de acesso aos tribunais (artigo 20º, nº 1, da
Constituição).
Ora, parece-nos evidente e resulta do que anteriormente se disse, que o prazo em
causa nestes autos é perfeitamente razoável.
Poderemos, no entanto, acrescentar que sendo no mínimo duvidoso que seja uma
exigência constitucional a existência de recurso para a Relação de decisões que
apreciaram impugnações de decisões administrativas que aplicaram coimas (acórdão
nº 659/2006), seguramente que uma norma que prevê esse recurso e fixa para a sua
interposição um prazo de 10 dias, não é violadora daquele princípio
Constitucional.
3. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1 ? Do Acórdão nº 27/2006 do Tribunal Constitucional decorre que os prazos para
recorrer para a Relação (artigo 74º, nº 1, do RGCO) e responder, têm de ser
iguais.
2 - O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 1/2009, que fixou jurisprudência
no sentido de que aquele prazo é de 10 dias (artigo 74º, nºs 1 e 4 e 41º do RGCO),
já levou em consideração a jurisprudência constitucional, a doutrina e os
princípios constitucionais relevante nesta matéria
3 - A norma do artigo 74º, nº 1, do RGCO, quando interpretada no sentido de que
o recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do
despacho, ou de sua notificação ao arguido, caso a decisão tenha sido proferida
sem a presença deste, estabelecendo num prazo mais curto para o recorrente
motivar do que aquele que decorre do artigo 411º, nº 1, do Código do Processo
Penal, não viola os artigos 13º, nº 1 e 20º, nº 1 da Constituição, não sendo,
por isso, inconstitucional.?
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Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
Resulta do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional que a Recorrente pretendia submeter à respectiva apreciação a
constitucionalidade da norma constante do art. 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
433/82, de 27 de Outubro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95,
de 14 de Setembro, na interpretação segundo a qual o recurso deve ser interposto
no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do despacho, ou da sua notificação
ao arguido caso a decisão tenha sido proferida sem a presença deste,
estabelecendo um prazo mais curto para o recorrente motivar o recurso do que
aquele que decorre do artigo 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (C.P.P.),
com a redacção conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, com fundamento
na alegada violação dos artigos 2.º, 13.º e 20.º da Constituição.
Em sede de alegações de recurso de constitucionalidade, a Recorrente veio
alterar o âmbito das questões de constitucionalidade que pretende ver analisadas
pelo Tribunal Constitucional.
Efectivamente ? e conforme resulta da leitura das conclusões das alegações de
recurso acima transcritas ?, para além de manter o interesse na questão de constitucionalidade
já identificada, a Recorrente veio agora suscitar a questão da inconstitucionalidade
orgânica do Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2009 do Supremo Tribunal
de Justiça, na medida em que criou uma nova norma jurídica, com fundamento na
alegada violação do princípio da separação e interdependência de poderes,
consagrado no artigo 110.º, n.º 1, da Constituição.
Esta alteração não é irrelevante no plano dos poderes de cognição do Tribunal
Constitucional.
O requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade é o acto idóneo
para a fixação do objecto deste e, consequentemente, se o recorrente nele
especificar as normas ou interpretações normativas a fiscalizar, já não pode
ampliar a outras normas aquele objecto nas peças processuais subsequentes,
nomeadamente nas alegações.
Em conformidade com o que se acaba de dizer, o objecto do presente recurso de
constitucionalidade não se pode estender à nova questão de constitucionalidade
introduzida pela recorrente em sede de alegações.
Por isso, o objecto do presente recurso de constitucionalidade restringir-se-á à
fiscalização da constitucionalidade da norma constante do artigo 74.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, com a redacção introduzida pelo
Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, na interpretação segundo a qual o
recurso deve ser interposto no prazo de 10 dias a partir da sentença ou do
despacho, ou da sua notificação ao arguido caso a decisão tenha sido proferida
sem a presença deste, estabelecendo um prazo mais curto para o recorrente
motivar o recurso do que aquele que decorre do artigo 411.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, com a redacção conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
2. Do mérito do recurso
Conforme resulta das alegações apresentadas a Recorrente defende que a
interpretação normativa sob análise viola o disposto nos artigos 2.º (sub-princípio
da protecção da confiança), 13.º, n.º 1 (princípio da igualdade), 20.º, n.º 4 (direito
a um processo equitativo), e 32º., n.º 1, (direito de defesa do arguido) da
Constituição.
2.1. Das garantias de defesa do arguido
A recorrente suscitou a inconstitucionalidade material da interpretação
normativa sob análise, fundada na violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da
Constituição, alegando para tanto que o prazo de 10 dias fixado na decisão
recorrida para efeito de interposição de recurso da sentença judicial
condenatória proferida em sede de procedimento contra-ordenacional ?impede a
arguida de se defender?.
O n.º 1, do art. 32.º, da Constituição, prescreve que ?o processo criminal
assegura todas as garantias de defesa do arguido, incluindo o recurso?.
Ora, tal como a infracção criminal não se confunde com a infracção contra-ordenacional,
também o processo criminal não se confunde com o procedimento contra-ordenacional,
não obstante este ser, de entre os processos sancionatórios, um dos que mais se
aproxima do processo criminal ao ponto do direito processual penal constituir
direito subsidiário no plano adjectivo (artigo 41.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
433/82).
Esta diferença emanava expressamente logo do preâmbulo do diploma legal que
introduziu o ilícito de mera ordenação social na ordem jurídica portuguesa (Decreto-Lei
n.º 231/79, de 24 de Julho), especialmente na parte em que, recordando os
ensinamentos de Eduardo Correia, aí se escreveu que ?hoje é pacífica a ideia de
que entre os dois ramos de direito medeia uma autêntica diferença: não se trata
apenas de uma diferença de quantidade ou puramente formal, mas de uma diferença
de natureza. A contra-ordenação «é um aliud que se diferencia qualitativamente
do crime na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não
são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto,
sujeitas aos princípios do direito criminal» (...) Está em causa um ordenamento
sancionatório distinto do direito criminal. Não é, por isso, admissível qualquer
forma de prisão preventiva ou sancionatória, nem sequer a pena de multa ou
qualquer outra que pressuponha a expiação da censura ético pessoal que aqui não
intervém. A sanção normal do direito de ordenação social é a coima, sanção de
natureza administrativa, aplicada por autoridade administrativa, com o sentido
dissuasor de uma advertência social, pode, consequentemente, admitir-se a sua
aplicação às pessoas colectivas e adoptar-se um processo extremamente
simplificado e aberto aos corolários do princípio da oportunidade?.
Esta variação do grau de vinculação aos princípios do direito criminal, e a
autonomia do tipo de sanção previsto para as contra-ordenações, repercute-se a
nível adjectivo, não se justificando que sejam aplicáveis ao processo contra-ordenacional
duma forma global e cega todos os princípios que orientam o direito processual
penal.
No plano jurídico-constitucional, a invocação das garantias de processo criminal
em sede de procedimento contra-ordenacional deve ser precedida de especiais
cautelas, na medida em que são processos cuja diferente natureza começou por
ficar registada no n.º 8 do art. 32.º da Constituição, na redacção introduzida
pela Revisão Constitucional de 1989, e que actualmente está consagrada no n.º 10
do mesmo artigo 32.º, o qual dispõe que ?nos processos de contra-ordenação, bem
como em quaisquer processos sancionatórios, são assegurados ao arguido os
direitos de audiência e de defesa?.
Com a referida norma, o legislador constitucional pretendeu apenas assegurar, no
âmbito do processo contra-ordenacional, os direitos de audiência e de defesa do
arguido, isto é, que o arguido não possa sofrer qualquer sanção contra-ordenacional
sem que seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são
feitas (vide, neste sentido, JORGE MIRANDA/RUI MEDEIROS, em ?Constituição Portuguesa
Anotada?, Coimbra Editora, pág. 363, da ed. de 2005, da Coimbra Editora).
Não se discute no presente recurso de constitucionalidade a preterição desse
direito de audição e defesa na fase administrativa do procedimento contra-ordenacional,
nem sequer o direito de impugnação judicial das decisões sancionatórias
proferidas pelas autoridades administrativas. Apenas está aqui em causa o
direito de interposição de recurso relativamente à decisão proferida já na fase
jurisdicional do procedimento contra-ordenacional. E o direito de recurso em
questão não pode ser aferido à luz do disposto no invocado n.º 1, do art. 32.º,
da Constituição, na medida em que este parâmetro, conforme tem sido entendido
pela jurisprudência constitucional, respeita ao processo criminal e não pode ser
directamente aplicado aos processos contra-ordenacionais, não havendo, assim,
uma imposição constitucional ao legislador ordinário de equiparação de garantias
no âmbito do processo criminal e do contra-ordenacional.
Nessa linha de pensamento, o Tribunal Constitucional, após ter considerado que a
garantia do duplo grau de jurisdição vale apenas, no âmbito do processo penal,
para as decisões penais condenatórias e restritivas de direitos fundamentais do
arguido, não considerou inconstitucional a não admissibilidade de recurso
jurisdicional de decisões proferidas em sede de impugnação judicial de decisões
administrativas aplicadoras de coimas (Vide os Acórdãos n.º 659/2006, no D.R. de
9-1-2007, II Série, pág. 539, e 313/07, em ?Acórdãos do Tribunal Constitucional?,
69.º vol., pág. 315).
Assim, a apontada exiguidade do prazo de recurso apontada pela interpretação sob
fiscalização nunca se poderá traduzir numa violação dos direitos de defesa
assegurados ao arguido pelo disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
2.2. Do princípio da igualdade
A Recorrente entende também que a interpretação normativa sob análise, na medida
em que pressupõe a existência de dois prazos distintos para a interposição e
motivação de recurso em sede de processo penal e de processo contra-ordenacional,
?viola o princípio da igualdade, na sua dimensão de princípio de igualdade de
armas?, consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
A invocação deste parâmetro constitucional labora num equívoco evidente à luz da
fundamentação da decisão recorrida acima transcrita uma vez que a recorrente -
mas não o tribunal a quo ? sustenta para tanto que ?sendo o prazo para a resposta
ao recurso em processo contra-ordenacional de 20 dias, nos termos do n.º 1 do
art. 413.º do CPP, aplicável por força do n.º 4 do art. 74.º do RGCO, tal
implica que também seja de 20 dias o prazo para a interposição de recurso?.
Ora, a decisão recorrida referiu expressamente sobre esta matéria que ?não há
violação do princípio da igualdade entre o arguido e o MP, pois a interpretação
seguida implica que o MP tenha também o prazo de 10 dias para responder à
motivação do recurso. Estão assim ambos os sujeitos processuais em rigorosa
igualdade quanto ao prazo do recurso e da resposta?.
A eventual desigualdade de tratamento jurídico que importará analisar ? porque
também foi invocada ? reside apenas no estabelecimento de prazos diferentes para
interpor e motivar o recurso no processo penal e no processo contra-ordenacional.
Interessa aqui, sobretudo, analisar a vertente do princípio da igualdade que se
traduz na proibição de arbítrio e que significa a imposição da igualdade de
tratamento para situações iguais e a interdição de tratamento igual para
situações manifestamente desiguais.
Excepto no curto período compreendido entre 1995 e 1998, a diferença de prazos
para interpor e motivar o recurso em processo penal e processo contra-ordenacional
sempre existiu desde a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1987 (C.P.P.).
Na redacção originária do artigo 411.º, n.º 1, do C.P.P., o arguido dispunha de
10 dias para interpor e motivar o recurso interposto da sentença.
O referido prazo veio a ser aumentado para 15 dias, com a entrada em vigor da
Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, e foi novamente aumentado para 20 dias, com a
entrada em vigor da Reforma Processual Penal de 2007.
Diversamente, na vigência da redacção originária do Decreto-Lei n.º 433/82,
quando entrou em vigor o C.P.P. de 1987, o prazo para interpor e motivar o
recurso interposto da decisão final proferida em sede de procedimento contra-ordenacional
era de 5 dias, tendo sido o mesmo ampliado para 10 dias, com a entrada em vigor
do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, e assim se tem mantido até aos
nossos dias de acordo com a interpretação normativa sob análise.
Verifica-se, efectivamente, uma diferença de prazos para efeito de exercício do
direito de recurso em processo penal e em processo contra-ordenacional.
Todavia, essa diferença, só por si, não assume especial relevância no caso em
análise.
Na verdade, existindo ? conforme já se assinalou atrás ? uma diferença de
princípios jurídico-constitucionais, materiais, e até orgânicos, a que se
submetem entre nós a legislação penal e a legislação contra-ordenacional, essa
diferença não pode deixar de reflectir-se no regime processual próprio de cada
um desse ilícitos, nomeadamente no regime dos recursos, incluindo os próprios
prazos de interposição e motivação do recurso.
O princípio da igualdade, atenta as diferenças das matérias reguladas, não impõe
ao legislador ordinário a transferência integral do regime de recursos adoptado
em sede de processo penal para o regime geral das contra-ordenações aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 433/82, deixando-lhe liberdade para consagrar soluções diferentes.
Assim sendo, importa concluir que a Recorrente também não logrou demonstrar que
a interpretação normativa sob análise viole o princípio constitucional da
igualdade.
2.3. Do direito a um processo equitativo
A Recorrente alegou também que a interpretação normativa sob análise viola a
garantia constitucional do processo equitativo consagrada no artigo 20.º, n.º 4,
da C.R.P.
Na óptica da recorrente, enquanto arguida, o prazo de 10 dias previsto no n.º 1,
do artigo 74.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não é um prazo
razoável para efeito de interposição e motivação do recurso na medida em que é
manifestamente diminuto e não lhe permite o exercício livre e esclarecido do
direito ao recurso.
No que interessa para o presente recurso de constitucionalidade, a exigência de
um processo equitativo, constante do aludido artigo 20.º, n.º 4, impõe que as
normas processuais proporcionem aos interessados meios efectivos de defesa dos
seus direitos ou interesses legalmente protegidos, nomeadamente prazos razoáveis
de recurso nos casos em que esse direito esteja previsto, tudo sem comprometer a
descoberta da verdade material e a decisão ponderada da causa num prazo razoável.
Quando o prazo para interpor e motivar o recurso interposto da decisão final
proferida em sede de procedimento contra-ordenacional era de 5 dias, o Tribunal
Constitucional teve a oportunidade de se debruçar sobre a razoabilidade desse
prazo e concluiu que o mesmo não limitava desproporcionada ou intoleravelmente
as garantias de defesa do arguido, alicerçando esta conclusão na simplicidade do
tipo processual em causa e nos objectivos visados pelo processo contra-ordenacional
(Vide Acórdão n.º 1229/96, publicado no DR, II Série, de 12 de Abril de 1997).
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro, o referido
prazo foi ampliado para 10 dias, justificando o legislador de então que tal
alteração se justificava pelo alargamento notável das áreas de actividade que
passaram a ser objecto de punição a título de contra-ordenação, acompanhado pela
fixação de coimas de montantes muito elevados e pela cominação de sanções
acessórias especialmente severas (preâmbulo do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de
Setembro).
Este movimento de neopunição e de crescente poder sancionatório da Administração
não abrandou até aos nossos dias, sendo inegável que a sociedade e a economia
portuguesas apresentam um nível de regulação caracterizado por uma complexidade
muito superior à existente na década de oitenta do século passado, o que se
evidencia, aliás, pela abundante legislação nacional e comunitária.
Neste contexto, será o prazo de 10 dias suficiente para assegurar a efectividade
da defesa apresentada pelo arguido em sede de recurso interposto da sentença
condenatória proferida no âmbito do procedimento contra-ordenacional ?
A verdadeira relevância deste prazo de 10 dias não pode ser alcançada pela
consideração isolada do que se passa simplesmente nessa fase processual.
A tramitação concreta do procedimento contra-ordenacional revela que o arguido
tem a oportunidade de apresentar a sua defesa, pelo menos, em dois momentos
relevantes, até ser proferida decisão judicial final em primeira instância ?
isto se não houver julgamento em virtude da existência de matéria de facto
controvertida.
Antes de ser proferida decisão pela autoridade administrativa, o arguido tem a
possibilidade de se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e
sobre a sanção em que incorre, havendo, assim, muito cedo, lugar à fixação do
objecto relativamente ao qual o arguido exercerá a sua defesa no plano dos
factos e do direito (artigo 50.º, do Decreto-Lei n.º 433/82).
Ulteriormente, o arguido conta com o prazo de 20 dias para impugnar
judicialmente a decisão condenatória proferida pela autoridade administrativa, o
que, na maioria das vezes, passa pela reiteração da defesa oportunamente
oferecida em sede de direito de audição e defesa do arguido (artigo 59.º, n.º 3,
do Decreto-Lei n.º 433/82, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 244/95).
A partir do momento em que o processo contra-ordenacional ultrapassa a fase
administrativa e entra na fase jurisdicional, a garantia de processo equitativo
não pode cessar. Para assegurar esse desiderato, entre outras coisas, o prazo
legal para o arguido interpor e motivar o recurso da sentença condenatória não
pode ser de tal modo exíguo que inviabilize ou torne particularmente oneroso o
exercício do direito de recurso.
Porém, como se demonstrou, o arguido assim condenado não pode invocar em seu
favor que tem de se ?defrontar pela primeira vez com uma legislação abundante,
obscura, contraditória e lacunosa que não é susceptível de ser estudada com a
devida profundidade?.
Nestes termos, é possível concluir que a previsão do prazo de 10 dias para
efeito de interposição e motivação do recurso não envolve uma diminuição
arbitrária e excessiva do direito de defesa do arguido, revelando-se o mesmo
suficiente para que aquele direito possa ser eficazmente exercido.
Também nesta perspectiva, não assiste qualquer razão à Recorrente em matéria de
violação da garantia constitucional de processo equitativo.
2.4. O princípio da protecção da confiança
A recorrente convoca igualmente para esta discussão o parâmetro constitucional
do princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de Direito
democrático, consagrada no artigo 2.º da Constituição, sem todavia concretizar
adequadamente o fundamento concreto desta pretensa inconstitucionalidade nas
conclusões das respectivas alegações de recurso.
A leitura das alegações de recurso revela que a recorrente estriba a
inconstitucionalidade em questão na circunstância da interpretação normativa sob
análise consubstanciar um inesperado encurtamento dos prazos de recurso e de
resposta sem qualquer correspondência verbal na letra da lei.
Está em causa uma interpretação normativa, supostamente inusitada, que foi
adoptada pelo tribunal a quo a propósito de uma determinada disposição legal.
Estamos, portanto, fora do cenário típico de sucessão de leis no tempo e de
aplicação retroactiva da lei nova mais desfavorável que costuma suscitar a
discussão da questão da violação do princípio da protecção da confiança.
Note-se, contudo, que a referida interpretação se limitou a seguir a orientação
de acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (acórdão
n.º 1/2009).
Ora, a simples existência de um acórdão de fixação de jurisprudência, naquilo
que ele representa de superação da oposição de julgados sobre a mesma questão de
direito, é suficiente para revelar que a recorrente não podia contar legitimamente
com a aplicação do artigo 74.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, na interpretação
segundo a qual é de 20 dias o prazo para interpor e motivar o recurso da
sentença.
Na verdade, não oferece grandes dúvidas que se a confiança dos cidadãos nos seus
direitos ou nas decorrentes situações jurídicas, não for, num juízo objectivo, a
priori justificada, não se poderá dizer que ela seja digna da protecção emanante
do princípio do Estado de Direito democrático.
Verificando-se uma polémica anterior sobre qual a dimensão deste prazo de
recurso, em que um dos pontos de vista correspondia exactamente àquele que foi
seguido pela interpretação sob fiscalização, esta nunca poderia lesar uma
situação de confiança constitucionalmente protegida.
Por isso, também o princípio da protecção da confiança não se mostra violado
pela interpretação questionada.
2.5. Conclusão
Desta exposição constata-se que a interpretação normativa adoptada pela Senhora
Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto não viola nenhum princípio ou
norma constitucionais apontadas pelo recorrente, pelo que o recurso deve ser
julgado improcedente.
*
Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional por A., Lda., da decisão proferida nestes autos em 20-2-2009 pela
Vice ? Presidente do Tribunal da Relação do Porto.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98,
de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
*
Lisboa, 28 de Setembro de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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