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Processo n.º 930/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. A. propôs uma acção cível contra B., pedindo a condenação desta
em indemnização e restituição do sinal em dobro, com fundamento em incumprimento
de um contrato promessa. A ré contestou e reconveio, alegando não ter sido ela,
mas a promitente compradora, quem entrara em incumprimento e pedindo que lhe
fosse reconhecido o direito de fazer seu o sinal recebido.
Na sentença de 1.ª instância entendeu-se não ter havido
incumprimento por qualquer das partes, sendo cada uma delas absolvida do pedido
que a outra formulara. Houve, recurso de ambas as partes, entendendo a Relação
que ambas tinham incumprido o contrato, condenando a ré a restituir em singelo à
autora o quantitativo que desta recebera a título de sinal. Por acórdão de 22 de
Janeiro de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça optou por uma terceira solução:
considerou incumprido o contrato promessa exclusivamente pela autora e
reconheceu à ré o direito a fazer sua a quantia recebida a título de sinal.
2. Face a este acórdão, a autora apresentou um requerimento para
“julgamento ampliado da revista para uniformização de jurisprudência” com
fundamento em contradição do decidido com acórdãos anteriores proferidos pelo
mesmo Supremo Tribunal.
Por acórdão de 1 de Abril de 2008, o Supremo Tribunal de Justiça
decidiu indeferir “o requerimento para uniformização de jurisprudência”,
considerando que o julgamento ampliado da revista, previsto no artigo 732.º-A,
n.º 2, do CPC, tem de ser requerido antes de proferido o acórdão que julga a
revista e que o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência
previsto nos artigos 763.º e segs., não tem aplicação a processos instaurados
antes de 1 de Janeiro de 2008. O Supremo Tribunal de Justiça desatendeu, ainda,
a arguição de inconstitucionalidade do artigo 732.ºA do CPC e do artigo 11.º do
Decreto-Lei n.º 303/2007, de 25 de Agosto, que a autora avançara no seu
requerimento.
3. A autora interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro (LTC), com vista à apreciação da constitucionalidade das
normas:
- Do artigo 732.º-A do CPC, quando interpretado no sentido de que o
requerimento das partes a que se refere o seu n.º 2 apenas pode ser apresentado
ate à prolação do acórdão que julga a revista;
- Do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de
Agosto, enquanto reserva a possibilidade de recurso para uniformização de
jurisprudência, com base na nova redacção do artigo 763.º do CPC, aos processos
iniciados após 1 de Janeiro de 2008.
4. Prosseguindo o recurso, a recorrente alegou e conclui nos seguintes
termos:
“III – Termos em que se formulam as seguintes conclusões:
1 - A norma contida no artigo 732.º-A do Código de Processo Civil, na redacção
em vigor antes da vigência do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, é
inconstitucional quando interpretada no sentido de não permitir requerer o
julgamento ampliado de revista após a prolação do acórdão, ainda que a decisão
do STJ tenha sido inovadora face às decisões das instâncias, nos casos em que
não seja admitido o recurso previsto na redacção actual dos artigos 763.º e ss.
do CPC, derivando a inconstitucionalidade da violação dos artigos 13.º e 20.º da
Constituição.
2 – Ainda que a Constituição não imponha a existência da possibilidade de
recurso para toda e qualquer decisão, seria inconstitucional a abolição
generalizada do sistema de recursos em Direito Civil, pois a consagração
constitucional da existência da hierarquia dos tribunais implica a existência de
um sistema de recursos, pelo que das decisões mais importantes (i.e., de valor
superior à alçada da Relação) tem de poder recorrer-se.
3 – Este direito de recurso deve existir quanto a decisões do STJ que sejam
contrárias às decisões das instâncias e que contrariem jurisprudência do mesmo
STJ quanto à mesma questão fundamental de Direito.
4 – É inconstitucional a norma do artigo 11.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º
303/2007, de 24 de Agosto, quando interpretada no sentido de não ser possível o
recurso para uniformização de jurisprudência em relação aos processos pendentes
a 1 de Janeiro de 2008, por violação dos artigos 13.º e 20.º da Constituição.
5 – A uniformidade da jurisprudência dos tribunais superiores é um valor
necessariamente perseguido pelo sistema jurídico (cfr. Artigo 8.º do CC), pois é
emanação dos princípios constitucionais da igualdade e do Estado de Direito.
6 – Um sistema processual em que uma parte, confrontada com uma decisão
inovadora de um tribunal relativa a uma causa de valor superior à alçada da
relação, não tenha ao seu dispor nenhum meio de a impugnar, não é conforme à
Constituição, violando os artigos 2.º, 13.º e 20.º.
Termos em que devem ser declaradas inconstitucionais as referidas interpretações
dos artigos 732.º-A do Código de Processo Civil, na redacção em vigor antes da
vigência do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e 11.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e, em consequência, ser admitido o
requerimento de julgamento pelo plenário para uniformização de jurisprudência
ou, subsidiariamente, admitido o recurso nos termos do artigo 763.º do CPC.”
Também a ré, ora recorrida, alegou no recurso de
constitucionalidade, tendo concluído do seguinte modo:
“IV. Conclusões
1. O presente recurso vem interposto pela Recorrente, A., do acórdão do Supremo
Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 4060/07, 1ª Sec, que
indeferiu o requerimento apresentado por esta em 1 de Abril de 2008.
2. Constitui objecto dos presentes autos a fiscalização concreta da (pretensa)
(in)constitucionalidade do artigo 732.º-A do CPC, por alegada violação do
princípio do acesso ao direito, consagrado no artigo 20.º da CRP e do artigo
11.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de Agosto, quando referente à
aplicação do artigo 763.º do CPC, por alegada violação do princípio da
igualdade, consagrado no artigo 13.º da CRP.
3. A propósito do artigo 732.º-A do CPC, veio a ora Recorrente defender a
inconstitucionalidade da mesma, quando interpretada no sentido de não permitir
requerer o julgamento ampliado de revista após a prolação do acórdão, ainda que
a decisão do STJ tenha sido inovadora face às decisões das instâncias, derivando
a inconstitucionalidade da violação do artigo 20.º da CRP.
4. A propósito do referido note-se, antes de mais, que só tem sentido requerer
(e decidir) que o julgamento do recurso seja efectuado com a intervenção do
plenário das secções cíveis até ao final desse mesmo julgamento, ou seja, até à
prolação do acórdão, já que depois de haver acórdão, o julgamento terminou,
sendo bem diferente querer que um julgamento seja efectuado com a intervenção do
plenário e querer (como pretende a Recorrente) que haja um novo recurso para o
plenário das secções cíveis da anterior decisão do STJ, ou seja, mais uma
instância de recurso.
5. Com efeito, importa lembrar que os prazos processuais, e também assim o do
artigo 732.º-A do CPC, não são arbitrariamente fixados, mas antes estabelecidos
com vista a salvaguarda de interesses tão fundamentais quanto o acesso ao
direito, como sejam a segurança e a protecção da confiança, a que acresce a
indispensável estabilidade da ordem jurídica, devendo ser, nessa medida,
igualmente tutelados, nada impedindo que a Recorrente tivesse requerido o
julgamento do recurso com intervenção do plenário em tempo, outra tivesse sido a
sua cautela processual.
6. E contra essa inevitabilidade não aproveita sequer a abusiva e indevida
alegada analogia com a figura das “decisões surpresa” porquanto dos argumentos
invocados pela Recorrente para justificar a sua “surpresa”, rectius, o seu
descontentamento com a decisão, resulta apenas que aquela ficou «subjectivamente
surpreendida».
7. A este propósito, mais se refira que não se trata esta de uma discussão nova,
uma vez que a questão da (in)constitucionalidade do artigo 732º-A do CPC foi já
extensamente discutida em sede do Tribunal Constitucional, nomeadamente no
âmbito do Processo n.º 38/02, 3ª secção, acórdão n.º 261/02, de 18 de Junho de
2002 (decisão que se mantém inteiramente válida, não obstante as alterações
legislativas ao Código de Processo Civil que vieram a ter lugar no ano de 2007).
8. Esclarece tal decisão constitucional que, fora do Direito Penal não resulta
da Constituição, em geral, nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de
decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do
princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente
consagrado no citado artigo 20º da Constituição, não existindo igualmente na Lei
Fundamental qualquer preceito ou princípio que imponha, dentro do processo
civil, a existência de um recurso para uniformização de jurisprudência.
9. Nestes termos, situa-se ainda o prazo disposto no artigo 732.º-A do CPC
dentro da margem de liberdade de conformação que a Constituição confere ao
legislador ordinário.
10. Mais se refira, em tom complementar, que, ao contrário dos receios da
Recorrente, nunca e em caso algum sairá precludido o valor fundamental do acesso
ao Direito, mesmo na hipótese (académica) de o recurso alargado a que a
Recorrente quis (fora de tempo) lançar mão constituir ainda parte integrante
daquele valor constitucional.
11. Assim, mesmo na hipótese de inércia das partes, sempre sairá assegurada a
segurança e a igualdade jurídicas por via da intervenção do Presidente do STJ e
do relator, por qualquer dos adjuntos, ou pelos presidentes das secções cíveis,
todos eles sujeitos ao dever de requerer o julgamento ampliado quando exista a
possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com
jurisprudência anteriormente firmada.
12. Por último, vem ainda a Recorrente querer vislumbrar a inconstitucionalidade
(por violação do princípio da igualdade) da disposição transitória disposta no
artigo 11.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 303/2007, que prevê que as disposições do
presente Decreto-Lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua
entrada em vigor.
13. A este propósito, note-se desde logo que o princípio da igualdade não
proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio, ou
seja, proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante,
que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de
valor objectivo constitucionalmente relevantes.
14. Mais assinala este Tribunal que só poderá haver violação do princípio da
igualdade quando da fixação do tempo de aplicação de uma norma decorrerem
“tratamentos desiguais para situações iguais e sincrónicas, ou seja, o princípio
da igualdade não opera diacronicamente.
15. Ora, no caso concreto, estamos perante uma alteração do ordenamento
jurídico, mais precisamente do CPC.
16. Assim, e conforme decorre da natureza das coisas, em todas as alterações
legislativas existem «situações da vida» que convivem temporalmente com dois
regimes jurídicos distintos (por vezes até mais), sendo necessário, nestes
casos, optar pela aplicação imediata da nova lei ou pela manutenção das
disposições em vigor à data da constituição do facto originário.
17. Nestes termos, sendo racionalmente justificável que o direito às novas
formas de recurso seja atribuído tendo em conta o momento da propositura da
acção e fixação definitiva do quadro legal deve, então, entender-se ser ainda
esta uma opção que está dentro da margem de liberdade legislativa que se
reconhece ao legislador, não resultando do exercício da mesma a violação de
quaisquer princípios, designadamente do da igualdade.
18. Inexistem, pois, quaisquer inconstitucionalidades que devam ser julgadas
pelo Tribunal Constitucional, quanto às normas constantes dos artigos 732º-A do
CPC e artigo 11.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 303/2007.”
II- Fundamentos
5. Impõe-se um breve recordatório da mais recente evolução do regime
processual civil relativamente aos meios destinados a assegurar a uniformidade
de jurisprudência no que restritamente interessa às questões de
constitucionalidade colocadas no presente recurso.
Tradicionalmente, o meio processual último para assegurar a
uniformidade de jurisprudência era, entre nós, constituído pelo denominado
recurso para o Pleno, regulado nos artigos 763.º e segs., do Código de Processo
Civil, que culminava na emissão de um assento pelo Supremo Tribunal de Justiça,
assento esse que o artigo 2.º do Código Civil enunciava entre as fontes de
direito, dotando a respectiva doutrina de força obrigatória geral (Cfr. sobre a
evolução histórica, doutrinária e dogmática do instituto, acórdão n.º 810/93,
publicado em no Diário da República, II Série, de 2 de Março de 1994).
Na sequência da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o instituto dos
assentos, mais proximamente da declaração de inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que conferia aos
tribunais a possibilidade de fixar doutrina com força obrigatória geral, operada
pelo acórdão n.º 743/96, publicado no Diário da República, I Série-A, de 18 de
Julho de 1996), o legislador da reforma do processo civil de 1995-96
(Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, alterado pelo Decreto Lei n.º
180/96, de 25 de Setembro) optou, não só por revogar totalmente o artigo 2.º do
Código Civil (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 329‑A/95), como por eliminar o
recurso para o tribunal pleno, revogando os artigos 763.º a 770.º do CPC. A
função específica de uniformização de jurisprudência, cometida ao Supremo
Tribunal de Justiça, passou a efectuar-se mediante um mecanismo que é o
“julgamento ampliado da revista” (aliás, também do agravo interposto em 2.ª
instância, mas essa é hipótese que não vem ao caso considerar), instituído pelo
artigo 732.º-A do Código e inspirado no “julgamento em secções reunidas”
previsto no também revogado n.º 3 do artigo 728.º do CPC.
Na redacção vigente até 31 de Dezembro de 2007, que é aquela que
está em causa no presente recurso de constitucionalidade por ser aquela que o
acórdão recorrido considerou aplicável, dispunha o artigo 732.º-A do CPC o
seguinte:
“Artigo 732.º-A
(Uniformização de Jurisprudência)
1. O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça determina, até à prolação do
acórdão, que o julgamento do recurso se faça com intervenção do plenário das
secções cíveis, quando tal se revele necessário ou conveniente para assegurar a
uniformidade da jurisprudência.
2. O julgamento alargado, previsto no número anterior, pode ser requerido por
qualquer das partes ou pelo Ministério Público e deve ser sugerido pelo relator,
por qualquer dos adjuntos, ou pelos presidentes das secções cíveis,
designadamente quando verifiquem a possibilidade de vencimento de solução
jurídica que esteja em oposição com jurisprudência anteriormente firmada, no
domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.”
Na recente reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de
Agosto, do regime dos recursos em processo civil, embora mantendo-se a “revista
ampliada”, foi reintroduzido, no Código de Processo Civil, um recurso por
oposição de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, à semelhança do que já se
concretizara no processo penal (artigo 437.º, n.º 1, do CPP) e no contencioso
administrativo (artigo 152.º, n.º 1, do CPTA), nos termos do artigo 763.º do
Código que passou a dispor:
“Artigo 763.º
(Fundamento do recurso)
1. As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis do Supremo
Tribunal de Justiça quando o Supremo proferir acórdão que esteja em contradição
com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma
legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.
2. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito
em julgado, presumindo-se o trânsito.
3. O recurso não é admitido se a orientação perfilhada no acórdão recorrido
estiver de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de
Justiça.”
No preâmbulo do diploma, o legislador justifica a solução nos
seguintes termos:
“Servem especificamente o propósito de uma maior uniformização da
jurisprudência: i) a obrigação que passa a impender sobre o relator e os
adjuntos de suscitar o julgamento ampliado da revista sempre que verifiquem a
possibilidade de vencimento de uma solução jurídica que contrarie jurisprudência
uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e, ii) a introdução de um recurso
extraordinário de uniformização de jurisprudência para o pleno das secções
cíveis do Supremo quando este tribunal, em secção, proferir acórdão que esteja
em contradição com outro anteriormente proferido, no domínio da mesma legislação
e sobre a mesma questão fundamental de direito.”
Este recurso para uniformização de jurisprudência, que tem por objecto imediato
um acórdão do próprio Supremo, é agora expressamente qualificado pela lei como
tendo natureza de recurso extraordinário (artigo 677.º, n.º 2), sendo interposto
no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido (artigo
764.º).
A reforma do regime de recursos em processo civil entrou em vigor em
1 de Janeiro de 2008 (artigo 12.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/2007), mas não
se aplica aos processos pendentes, nos termos do n.º 1 do artigo 11.º do
Decreto-Lei n.º 303/2007, norma transitória que dispõe:
“Artigo 11º
(Aplicação no tempo)
1 – Sem prejuízo do disposto no número seguinte, as disposições do presente
decreto-lei não se aplicam aos processos pendentes à data da sua entrada em
vigor.
(…).”
Há doutrina que propugna uma interpretação restritiva desta norma
transitória, considerando não haver razão para deixar de aplicar imediatamente
aos processos pendentes as regras do recurso extraordinário para fixação de
jurisprudência. Argumenta-se que “uma vez que tal instrumento visa dotar o
sistema de uma malha de acórdãos uniformizadores capazes de dar segurança na
tarefa de aplicação do direito, nenhum motivo racional explica que fiquem de
fora as decisões proferidas no âmbito de processo pendentes em 31 de Dezembro de
2007, relativamente às quais se verifiquem os mesmos requisitos de que a lei
nova faz depender a admissibilidade do recurso extraordinário” (cfr. Abrantes
Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, p. 433; Armindo Ribeiro
Mendes, “O Novo Regime Jurídico dos Recursos Cíveis”, Lusíada, Direito, Série
II, n.º 6, pág. 83 e segs.).
Todavia, não foi esta a interpretação adoptada pelo acórdão
recorrido que optou pela interpretação e aplicação da regra de direito
transitório no seu sentido mais imediato. Assim, como a acção foi proposta antes
de 31 de Dezembro de 2007, apesar de o acórdão que julgou a revista ter sido
proferido já no âmbito de vigência da lei nova, considerou esta inaplicável ao
processo. O recurso para uniformização de jurisprudência só tem lugar
relativamente a acórdãos proferidos em processos instaurados no domínio da lei
nova. É matéria, a da melhor interpretação do direito infra-constitucional, em
que não compete ao Tribunal Constitucional interferir (salvo nas excepcionais
circunstâncias que justifiquem a imposição de uma “interpretação conforme” nos
termos do n.º 3 do artigo 80.º da LTC, o que manifestamente não se verifica no
caso).
6. Embora igualmente ordenados a assegurar a uniformidade da jurisprudência –
directamente, da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e,
indirectamente, da jurisprudência dos tribunais da respectiva ordem
jurisdicional, mediante o efeito de precedente persuasivo qualificado e através
do alargamento da recorribilidade das decisões proferidas contra jurisprudência
uniformizada (cfr. n.º 6 do artigo 678.º do
CPC na redacção anterior ao Decreto-Lei n.º 303/2007, e alínea c) do n.º 2 do
artigo 678.º na redacção actualmente vigente) –, o julgamento ampliado da
revista e o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência são
instrumentos processuais diferentes.
Basicamente, a “revista ampliada”, ou melhor o “julgamento ampliado da revista”
é uma forma de composição da formação de julgamento do recurso que se traduz num
modo mais solene ou mais participado de apreciação de determinado recurso
ordinário. O Presidente do Supremo determina que o julgamento da revista se faça
com intervenção do pleno das secções cíveis, de tal modo que, em vez da
intervenção de três juízes-conselheiros (cfr. artigo 37.º, n.º 1, da LOFTJ,
aprovada pela Lei n.º 3/99; actualmente, corresponde-lhe o artigo 45.º, n.º 1,
da LOFTJ aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), todos os juízes em
exercício nas secções cíveis passam a ter participação na apreciação do caso,
sendo o quorum de julgamento de ¾ desses juízes (artigo 732.º-B do CPC). Embora
com especialidades de julgamento e tramitação, é um recurso de revista que tem
por objecto imediato um acórdão da Relação ou uma sentença de que se tenha
interposto recurso per saltum (artigo 725.º do CPC), como é próprio desta
espécie de recurso.
Diversamente, o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência
constitui uma nova instância de recurso que tem por objecto imediato, já não uma
decisão das instâncias, mas um acórdão proferido pelo próprio Supremo Tribunal,
que assim é submetido a revisão perante uma formação mais alargada do mesmo
tribunal.
Todavia, apesar da sua diversidade estrutural, aquela comum finalidade de
assegurar a uniformização de jurisprudência e os valores que lhe vão
co-envolvidos é prosseguida pelo mesmo expediente organizacional: em qualquer
deles a formação de julgamento é integrada pela totalidade dos juízes em
exercício de funções nas secções cíveis (as secções reunidas ou o pleno das
secções cíveis), com o mencionado quorum de funcionamento (cfr. artigos 732.º-A
e 732.º-B e artigo 770.º do CPC).
7. A recorrente apresentou, após o Supremo ter proferido o acórdão
(de 22 de Janeiro de 2008) que julgou a causa em sentido que lhe foi
desfavorável (em recursos de revista cruzados), um requerimento de “recurso para
uniformização de jurisprudência” que o acórdão recorrido (de 1 de Abril de 2008)
optou por analisar, em conformidade com a fundamentação para tanto apresentada
pela requerente, na perspectiva de um e outro daqueles instrumentos processuais.
Recusou a primeira via por uma razão de ordem funcional: o requerimento só é
admissível até ao julgamento e a revista já fora julgada. E o segundo com um
argumento conjuntural: há norma expressa (direito material transitório) que não
permite o recurso para uniformização de jurisprudência relativamente a decisões
proferidas em processos já pendentes à data da entrada em vigor da nova lei que
(re)introduziu o recurso por oposição de acórdãos.
Sendo a competência do Tribunal Constitucional no recurso de
fiscalização concreta previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC
restrita às questões de constitucionalidade das normas aplicadas pela decisão
recorrida, não lhe cabendo interferir na interpretação e aplicação do direito
ordinário e na concreta conformação da lide e tendo o tribunal a quo apreciado o
requerimento da recorrente por referência às duas possibilidades de intervenção
do pleno das secções cíveis com vista a assegurar a uniformidade da
jurisprudência (revista ampliada e recurso extraordinário por oposição de
acórdãos), cumpre apreciar as questões de constitucionalidade que a recorrente
identifica e que correspondem, efectivamente, às normas que constituíram a ratio
decidendi do acórdão recorrido, tal como interpretou a pretensão da recorrente e
entendeu responder-lhe.
Aliás, pelo acórdão n.º 484/2008, que recaiu sobre a reclamação do
despacho quem não admitira o recurso de constitucionalidade, este Tribunal
deferiu totalmente a reclamação, o que constitui caso julgado quanto à
admissibilidade do recurso quanto às duas questões que a recorrente pretende
submeter a apreciação (n.º 4 do artigo 76.º da LTC).
8. Cumpre, pois, começar por apreciar a constitucionalidade da norma
do artigo 732.º-A, quando interpretado no sentido de que o requerimento das
partes a que se refere o seu n.º 2 apenas pode ser apresentado ate à prolação do
acórdão que julga a revista.
Sobre esta questão já o Tribunal se pronunciou no acórdão n.º
261/02, publicado no Diário da República, II Série, 24 de Julho de 2002, em que
se concluiu pela não inconstitucionalidade da norma assim interpretada com a
seguinte fundamentação:
“10. Julgamento do objecto do recurso.
É o artigo 732º-A do Código de Processo Civil inconstitucional, por violação do
artigo 20º, nº 1 da Constituição, quando interpretado em termos de o
requerimento das partes a que se refere o nº 2 apenas poder ser apresentado até
à prolação do acórdão que julga a revista?
Manifestamente que não.
Desde logo porque, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, fora do
Direito Penal não resulta da Constituição, em geral, nenhuma garantia genérica
de direito ao recurso de decisões judiciais; nem tal direito faz parte
integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à
justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição.
Como se ponderou, mais recentemente, no Acórdão nº 415/01 (Diário da República,
II Série, de 30 de Novembro de 2001), reiterando anterior jurisprudência deste
Tribunal, designadamente a constante do Acórdão nº 202/99, aprovado em plenário
(Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 2001):
“(...)
O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos ‘o acesso ao direito e aos
tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não
podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos’. Tal
direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei
aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência,
e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz
respeito à defesa dos respectivos pontos de vista (designadamente sem que a
insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e
ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes
direitos e interesses legalmente protegidos. Mas terá de ser assegurado em mais
de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou
bastará um grau de jurisdição?
A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso
para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil;
e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei
Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a
menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando,
aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual
a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida
(mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das
garantias de defesa previstas naquele artigo 32º. Para além disso, algumas vozes
têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de
direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos,
liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito
penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital
Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do
Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol.
16, pág. 505).
Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir
ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer”. Na verdade, este Tribunal
tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual
Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição
uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no
topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo
210º), terá de admitir-se que ‘o legislador ordinário não poderá suprimir em
bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos’ (cfr., a este propósito,
Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº
340/90, id., vol. 17, pág. 349).
Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode
concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a
faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática.
Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a
existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (cfr. os citados
Acórdãos nº 31/87, 65/88, e ainda 178/88 (Acórdãos do Tribunal Constitucional,
vol. 12, pág. 569); sobre o direito à tutela jurisdicional, ainda Acórdãos nº
359/86, (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 8, pág. 605), nº 24/88,
(Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 525), e nº 450/89, (Acórdãos
do Tribunal Constitucional, vol. 13, pág. 1307).
(...)”. (Sublinhados nossos).
Assim, já no Acórdão nº 574/98 (Acórdãos, 41º, 149, 162) se afirmou
“que não existe na Lei Fundamental um preceito ou princípio que imponha, dentro
do processo civil, a existência de um recurso para uniformização de
jurisprudência”.
O que vai dito, que mantém inteira validade, é suficiente para concluir pela
improcedência da alegação do recorrente. Efectivamente, a exigência de que o
requerimento a que se refere o nº 2 do artigo 732º-A do CPC seja apresentado até
à prolação do acórdão final pelo Supremo Tribunal de Justiça, como condição de
admissibilidade do julgamento ampliado de revista para efeitos de uniformização
de jurisprudência, situa-se claramente dentro da margem de liberdade de
conformação dos recursos que, como vimos, a Constituição confere ao legislador
ordinário.
A concluir, apenas se acrescenta que também não procede a alegação de que na
prática tal solução normativa inviabilizará a possibilidade de as partes
requererem o julgamento ampliado de revista, por só poderem ter conhecimento da
“possibilidade de vencimento da solução jurídica que esteja em oposição com
jurisprudência anteriormente firmada, no domínio da mesma legislação e sobre a
mesma questão de direito”, que é pressuposto daquele julgamento ampliado de
revista, já depois de proferida a decisão final.
Como, muito bem, se demonstra no acórdão recorrido – e tem também sido afirmado
repetidamente por este Tribunal Constitucional a propósito da exigência de
suscitação da questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão
recorrida – é efectivamente exigível às partes que analisem as diversas
possibilidades interpretativas que previsivelmente possam vir a ser utilizadas
pelo tribunal de forma a adoptarem as necessárias precauções, de modo a poderem,
em conformidade com a orientação processual considerada mais adequada,
salvaguardar a defesa dos seus direitos.”
É este o entendimento que se mantém, uma vez que a argumentação da
recorrente não logra abalar os seus fundamentos, designadamente aquele que
constitui o seu ponto fulcral e que consiste em que a garantia de tutela
jurisdicional efectiva (n.º 1 do artigo 20.º da Constituição) não implica a
garantia genérica de recurso das decisões jurisdicionais em matéria cível e,
menos ainda, compreende o direito fundamental a um grau de jurisdição que
envolva a intervenção de uma formação qualificada do Supremo Tribunal de Justiça
para prevenir ou resolver conflitos de jurisprudência.
É certo que a garantia de acesso aos tribunais pressupõe dimensões
de natureza prestacional, designadamente a criação de órgãos judiciários e
processos adequados a permitir uma decisão fundada no direito (quer seja
favorável, quer desfavorável às prestações deduzidas em juízo). E, por outro
lado, também não sofre dúvidas a afirmação de que, embora em tensão com a
responsabilidade última de cada juiz pela decisão e sem prejuízo da função da
jurisprudência na sua realização evolutiva, a aplicação uniforme do direito por
parte dos tribunais é uma exigência de realização dos valores de segurança e
certeza jurídicas ínsitos no princípio do Estado de Direito. A circunstância de
a Constituição não impor um determinado modelo processual, designadamente um
meio ou uma configuração do recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça que
seja especificamente destinado a prevenir ou resolver conflitos de
jurisprudência, não significa que o legislador seja inteiramente livre na
conformação dos meios que crie com essa finalidade. Mesmo onde não concretize
imposições constitucionais de legislar, tendo optado por estabelecer um certo
procedimento - na hipótese sob exame um procedimento finalisticamente orientado
para prevenir divergências na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça,
mediante a imposição de deveres (aos juízes da formação em que o conflito se
preveja), a concessão de faculdades (às partes) e a atribuição de poderes (ao
Presidente) para fazer intervir uma formação alargada de julgamento – o
legislador não pode fixar pressupostos processuais desnecessários, não adequados
ou desproporcionados. Essa exigência de racionalidade na conformação dos meios
processuais, ainda que constitucionalmente facultativos, encontra suporte
constitucional no direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP).
Todavia, não pode dizer-se que, na regulação global da iniciativa
conducente à decisão de submeter o recurso ao pleno das secções constante do
artigo 732.º-A, a imposição de que o requerimento da parte seja formulado em
momento anterior ao julgamento se apresente como desrazoável ou arbitrária.
Aliás, no caso, nem sequer se disse que o requerimento tinha de estar contido
nas alegações (ou contra-alegações), mas somente que não poderia ser posterior
ao julgamento da revista. Efectivamente, esse é o mínimo de anterioridade para
que o recurso se mantenha conforme ao modelo pelo qual o legislador optou, na
liberdade constitutiva e conformadora que a Constituição lhe deixa em matéria de
estruturação dos recursos e do acesso ao órgão máximo da jurisdição cível.
Na verdade, depois de proferida pelo Supremo a decisão alegadamente desconforme
à sua jurisprudência anterior o recurso fica julgado. Pode dispor-se de um meio
para resolver o conflito de jurisprudência, mas já não será o julgamento da
revista (daquele recurso de revista interposto de uma decisão das instâncias),
mas a revisão do decidido pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça. Tendo o
legislador optado por eliminar o recurso fundado em oposição de acórdãos, a
norma do n.º 2 do artigo 732.º-A do CPC conferia a qualquer das partes, em plena
igualdade de circunstâncias, a faculdade de desencadear a intervenção do pleno
das secções cíveis, pelo que não viola o princípio da igualdade, nem o direito a
um processo equitativo.
9. Argumenta em especial a recorrente que, num sistema processual
que não comporte uma modalidade de recurso por oposição de julgados (como foi o
vigente entre as reformas do processo civil de 1995-96 e de 2007), a exigência
de que o julgamento em formação alargada seja requerido antes de proferida a
decisão que julga a revista deve ser afastada quando a decisão tomada constitua
uma surpresa para a parte, de tal modo que esta não tenha disposto de
oportunidade efectiva de provocar a intervenção do pleno.
Esta argumentação sofre de um erro essencial que é supor uma leitura
do artigo 20.º da Constituição que dele fizesse emergir um «direito ao recurso»
que aqui seria um “direito ao recurso» para o Pleno das secções cíveis.
Ora, como já se deixou dito, no específico domínio do processo civil, tem este
Tribunal um vasto e consolidado património decisório cujo sentido básico se
expressa no entendimento de que o direito ao recurso (nas suas diversas
manifestações) é “restringível pelo legislador ordinário”, estando-lhe apenas
“vedada a abolição completa ou afectação substancial (entendida como redução
intolerável ou arbitrária)” deste, sendo que o texto constitucional “não
garante, genericamente, o direito a um segundo grau de jurisdição e muito menos,
a um terceiro grau” (citações extraídas do acórdão nº 287/90).
De todo o modo sempre se acrescentará que, mesmo no plano em que
coloca o problema, a recorrente não tem razão. Com efeito, ou o sentido da
decisão tomada no recurso de revista surge na sequência da discussão travada no
processo e no contexto das questões aí tratadas e das alternativas decisórias em
disputa e, nesse caso, a parte interessada poderia precaver-se contra a
possibilidade de fazer vencimento um entendimento contrário à jurisprudência
anterior do Supremo, requerendo oportunamente a intervenção da formação
alargada, ou essa decisão resulta do tratamento inovador no acórdão que julga a
revista de questões não versadas e, então, o vício residirá no proferimento de
tal decisão em violação do dever de audição prévia (artigo 3.º do CPC :
proibição da decisão-surpresa), não na exigência imposta pela norma em
apreciação ( Cfr., neste sentido, sobre as vias de reacção da parte prejudicada
pela inobservância das regras conducentes ao julgamento ampliado da revista,
Isabel Alexandre, “Problemas Recentes da Uniformização da Jurisprudência em
Processo Civil”, Revista da Ordem dos Advogados, maxime p. 143-144)
10. Resta apreciar a constitucionalidade da norma do n.º 1 do artigo 11.º do
Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, na interpretação de que o recurso
extraordinário para uniformização de jurisprudência, previsto no artigo 763.º do
Código de Processo Civil na redacção emergente do mesmo diploma legal, não é
aplicável aos processos pendentes em 31 de Dezembro de 2007.
A recorrente censura esta solução normativa - aliás, com argumentação que não
se distingue claramente daquela que mobiliza para atacar a norma do artigo
732.º-A do CPC –, alegando, no essencial, que a uniformidade da jurisprudência
dos tribunais superiores é um valor necessariamente perseguido pelo sistema
jurídico, sendo emanação dos princípios constitucionais da igualdade e do Estado
de Direito e que um sistema processual em que uma parte, confrontada com uma
decisão inovadora de um tribunal relativa a uma causa de valor superior à alçada
da relação, não tenha ao seu dispor nenhum meio de a impugnar viola os artigos
2.º, 13.º e 20.º da Constituição.
Vale a propósito desta questão o que anteriormente se deixou dito
sobre a larga margem de discricionariedade do legislador ordinário na
conformação dos meios de impugnação das decisões judiciais e da inexistência de
um ilimitado direito ao recurso de todas as decisões. Importa apenas versar o
que lhe pode ser mais directamente pertinente, que é a alegada desconformidade
com o princípio da igualdade e com o princípio de Estado de Direito.
É exacto que ao Supremo Tribunal de Justiça, como órgão superior da hierarquia
dos tribunais judiciais, sem prejuízo da competência própria do Tribunal
Constitucional (art.º 210.º da CRP) compete, além da comum função de julgamento
do caso individual que compartilha com todos os tribunais, a função específica
dos supremos tribunais que consiste em procurar assegurar a unidade da ordem
jurídica mediante a interpretação e aplicação uniformes do direito pelos
tribunais. Princípio da uniformidade da jurisprudência que se entende sem
prejuízo da independência decisória e da liberdade judicativa das instâncias
jurisdicionais e da abertura a novas necessidades e a novos problemas da prática
jurídica que exijam a assimilação de novos critérios jurídicos. Mas que merece
tutela sob pena de os valores da segurança jurídica e da igualdade sofrerem
intolerável erosão no momento da aplicação da lei pelos tribunais. O Supremo é
chamado a desempenhar, dizendo-o como CASTANHEIRA NEVES, O Instituto dos
“Assentos” e a Função Jurídica dos Supremos Tribunais, p. 658, a tarefa de
“conjugar a estabilidade com a continuidade na unidade e como unidade
(prático-normativa), embora uma estabilidade que, como sabemos, não é nem deverá
ser fixidez e uma continuidade que não é nem deverá ser imutabilidade”. Para
essa função específica do Supremo Tribunal de Justiça contribuem, no modo
organizativo, a unicidade orgânica e a qualificação funcional dos seus Juízes
(inerente aos critérios de recrutamento e selecção) e, no plano processual,
instrumentos como os referidos julgamento ampliado da revista e recurso por
oposição de julgados.
Porém, a mais do que aquilo que resulta da consagração constitucional da
hierarquia dos tribunais, trata-se de finalidade prosseguida pelo direito de
organização judiciária e processual infra-constitucional. E, ainda que se
considere possível retirar da Constituição, designadamente dos princípios da
segurança jurídica e da igualdade, a imposição ao legislador de um dever de
consagrar medidas organizatórias e instrumentos processuais especificamente
ordenados à prossecução do interesse da uniformização da jurisprudência,
tratar-se-á sempre de uma exigência de protecção institucional objectiva da
unidade da ordem jurídica, não de um direito subjectivo ou situação activa
equiparada dos cidadãos ( de cada cidadão litigante) a deduzir uma pretensão
dirigida à manutenção ( ou pelo menos à uniformização ) da jurisprudência. Como
no Acórdão nº 574/98 (Acórdãos, 41º, 149, 162) se afirmou “ não existe na Lei
Fundamental um preceito ou princípio que imponha, dentro do processo civil, a
existência de um recurso para uniformização de jurisprudência”, pelo que não
pode considerar-se violados os preceitos constitucionais que a recorrente invoca
por lhe não ser aberta tal via processual.
11. O que, com maior credibilidade argumentativa, poderia
perspectivar-se por confronto com o princípio da igualdade seria o facto de,
perante decisões do Supremo Tribunal de Justiça sobre a mesma questão
fundamental de direito tomadas a partir do momento em que foi reintroduzido o
recurso por oposição de acórdãos, a uns interessados ser possível interpor
recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência (obviamente, em
ordem a obter que a divergência se resolvesse em sentido favorável à sua
pretensão) e a outros não assistir tal faculdade, apenas em função do momento em
que a acção foi instaurada. Abreviando o passo, saber se passa o teste da
proibição do arbítrio a norma transitória que escolhe como factor determinante
para negar este recurso – cuja (re)introdução pelo legislador significa o
reconhecimento do seu contributo para a melhor aplicação do direito – o facto de
o processo onde a decisão é proferida se encontrar já pendente à data da
entrada em vigor da lei nova.
Como é de uso repetir-se, o princípio da igualdade consagrado no n.º
1 do artigo 13.º da Constituição, enquanto princípio vinculativo da lei,
traduz-se na ideia geral de proibição de arbítrio. O que ele proíbe ao
legislador não é que estabeleça distinções: proíbe-lhe, isso sim, que estabeleça
distinções de tratamento materialmente infundadas, irrazoáveis ou sem
justificação objectiva e razoável.
No caso, o factor de diferenciação escolhido, no que concerne ao recurso para o
Pleno das secções cíveis, é o momento em que a acção foi proposta. O legislador
pretendeu resolver os complexos problemas de aplicação da lei processual no
tempo mediante uma norma de direito transitório que assegurasse que nas acções
propostas antes da entrada em vigor da lei nova os interessados conservassem
(positiva e negativamente) os meios de impugnação das decisões judiciais nela
proferidas que lhes eram reconhecidos no domínio da lei antiga. Esta solução não
se mostra irrazoável, sem justificação objectiva ou fundamento material, sendo
inspirada por óbvias preocupações de certeza e segurança jurídicas e de
protecção da confiança. Com efeito, há que ter presente, além de que a
estratégia processual das partes pode ter-se orientado em função dos meios
impugnatórios existentes, o facto de ao interesse de uma das partes em mais uma
via de recurso se contrapôr o interesse da outra parte em dar a discussão por
finda com a decisão que se lhe revela favorável. Assim, a ponderação legislativa
que levou à referida norma de direito transitório que torna a lei nova
inaplicável aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, mesmo na
parte em que introduz a faculdade de recurso para o pleno das secções cíveis
para uniformização de jurisprudência, pode ser solução de mérito duvidoso, mas
não pode ser apodada de arbitrária.
Em conclusão, nenhuma das normas sujeitas a fiscalização concreta de
constitucionalidade viola o disposto nos artigos 2.º, 13.º e 20.º da
Constituição, pelo que tem de negar-se provimento ao recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco) UCs.
Lx., 23/7/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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