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Processo n.º 540/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acórdão na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. A. Lda. propôs uma acção contra B. e C. pedindo, além do mais, a anulação da
compra e venda de um prédio urbano dotado de estabelecimentos de mercearia,
pastelaria e padaria, em funcionamento à data do negócio, ou, em alternativa, a
redução do preço.
Para tanto, alegou, em síntese, que o preço indicado na escritura
incluía o valor dos estabelecimentos de mercearia, pastelaria e padaria a
funcionar no prédio, que só houve interesse da autora na compra devido à
incorporação dos ditos estabelecimentos, os quais apenas não foram mencionados
na escritura para evitar custos e impostos, e que, posteriormente, os
representantes da autora vieram a saber que o dito estabelecimento de mercearia
tinha o alvará em nome de antigos donos do prédio, e que o de padaria não tinha
qualquer alvará, sentindo-se, por isso, enganada, pois o valor do prédio sem o
estabelecimento de padaria legalizado era de metade.
Por sentença de fls. 278 a 284, foi a acção julgada improcedente e os réus
absolvidos dos pedidos.
Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação,
sustentando a existência de erro da sua parte sobre o objecto do negócio, nos
termos do artigo 251.º do Código Civil, gerado pela omissão ilícita de
esclarecimento quanto a uma circunstância essencial por parte dos vendedores.
2. Pelo acórdão de fls 354 a 370, o Tribunal da Relação de Coimbra concedeu
provimento ao recurso, julgando parcialmente procedente a acção e anulando o
contrato de compra e venda.
Além do mais que aqui não releva, a Relação começou por alterar a matéria de
facto fixada em 1.ª instância, com os seguintes fundamentos:
«(…)
III - FUNDAMENTAÇÃO
1. Como é sabido, e flui do disposto nos arts. 684º, nº3 e 690º, nº 1, do Cód.
Proc. Civil (ao qual pertencem os demais preceitos a citar sem menção de
origem), o âmbito do recurso é, em princípio, definido em função das conclusões
das alegações da Recorrente, circunscrevendo-se às questões aí equacionadas,
excepção feita às de conhecimento oficioso.
E entre as questões a respeito das quais esse imperativo conhecimento se impõe
aos Tribunais da Relação, surgem, desde logo, as referentes à fixação da matéria
de facto, dada a consabida natureza de tribunais de instância que aos mesmos
assiste.
Tendo pois em conta esse poder-dever que, em razão do exposto, se nos acha
legalmente cometido, e que decorre patentemente do estipulado em todo o art.º
712º, sucede que, muito embora a matéria factual acima transcrita não venha
posta em causa no vertente recurso, e bem assim a douta decisão da qual emerge
essa mesma matéria, sucede – dizíamos –, apresentar-se-nos em alguma medida essa
decisão eivada de deficiência, a justificar de nossa parte intervenção no
sentido da respectiva correcção e eliminação.
Estamos a referir-nos, mais concretamente, à resposta rotundamente negativa
conferida ao quesito 11º da B.I., a qual, tendo em conta as respostas positivas
outorgadas aos quesitos 5º, 6º, 7º e 8º – acima reproduzidas –, nos surge
obscura e até mesmo contraditória com estas últimas respostas. Acresce ainda
que, em nosso modesto ver, a prova produzida nos autos – seja de índole
testemunhal, seja documental –, e que conduziu às ditas respostas positivas,
impunha por igual, sem quebra do muito respeito, também pronunciamento positivo
em relação a esse quesito 11º.
Se não vejamos.
Depois de no quesito 10° se perguntar se “No decurso de tais negociações
[anteriores à celebração da escritura referida em A)], sempre foi referido pelos
réus à autora que os estabelecimentos faziam parte integrante do prédio e que
estavam ambos a funcionar em pleno e legalmente? “, no enfocado quesito 11º, por
sua vez, perguntava-se:
“Na sequência do referido em 10º, os representantes da autora ultimaram o
negócio à aquisição do prédio urbano, pela escritura pública referida em A),
através da qual os réus e a autora pretenderam vender e comprar,
respectivamente, também os estabelecimentos, referidos em 2º. – padaria e
mini-mercado? “.
Como dissemos, a este quesito 11º respondeu-se “não provado”
Todavia, no tocante àqueles quesitos 5º, 6º, 7º e 8º conferiu-se pronunciamento
oposto, dando-se assim como demonstrado que:
- A A. só se interessou pela aquisição do prédio, em virtude dos dois
estabelecimentos nele incorporados – qtº 5º.
- E porque pretendia empregar na laboração de tais estabelecimentos dois filhos
seus, que estavam desempregados — qtº 6º.
- O que era do conhecimento dos réus – qtº 7º.
- Em virtude de tais estabelecimentos já estarem em plena laboração há vários
anos e do teor da descrição matricial do prédio a A. estava convicta de que os
estabelecimentos comerciais nele instalados estavam legalizados e licenciados –
qtº 8º.
Ora, frente a esta materialidade – da qual decorre, pois, que apenas o intuito
de empregar os respectivos filhos na laboração dos estabelecimentos nele
instalados levou os sócios-gerentes da A. a adquirirem o prédio, desígnio esse
outrossim do conhecimento dos RR., não vislumbramos como seja possível, sem
resvalar para a incoerência, dar essa resposta negativa em relação ao dito
quesito 11º, ou seja, considerar não provado que através da escritura pública de
aquisição do prédio, os nela intervenientes RR. e sócios da A. não pretenderam
vender e comprar, respectivamente, também os estabelecimentos no mesmo imóvel
situados.
A incongruência afigura-se-nos, sempre com o muito respeito, manifesta,
deficiência que no entanto transparece não só ao nível puramente lógico-formal
ora considerado, confrontando o teor das respostas entre si, mas também, e como
dissemos, ao nível mais profundo e substancial da prova produzida.
Com efeito, e auscultando, desde logo, a prova testemunhal ocorrida em audiência
e devidamente objecto de gravação, concluímos que – ao invés do inserto nesse
quesito 11º –, tanto da parte dos RR. como dos sócios da A. houve a intenção de,
com a escritura reportada em A), para além do imóvel em si, transferir também
para esta última ambos os estabelecimentos. Ou seja, com tal convénio, tiveram
as partes em vista vender e comprar não só o edifício propriamente dito – como
da escritura expressamente consta –, mas também os ditos estabelecimentos,
padaria e mini-mercado.
Assim é que a testemunha D.refere, além do mais, ter assistido a conversa entre
o R. e o E. (sócio-gerente da A.) da qual resultava que “... era para passar
aquilo para eles; era isso tudo, eles não tinham interesses se não fosse a
mercearia e a padaria...” e a testemunha F., por seu turno, que em conversa com
a A. esta lhe disse “... vou comprar a padaria para futuro dos meus filhos..”,
mais acrescentando a mesma testemunha “... sei que eles venderam tudo..., depois
que eles compraram não vi lá mais ninguém (da parte dos RR.)”.
Também a testemunha G., trabalhador na padaria desde a sua instalação – por
conversão de uma serração de madeiras –, afirma que o seu último patrão “... foi
o Sr. E. e ele e a mulher “.. compraram tudo aquilo, o prédio, a padaria, e
tudo.”. Mais esclarece que antes do negócio dos autos, ele, G., quis alugar aos
RR. e então seus patrões, a padaria, mas que estes não aceitaram, dizendo-lhe
que “isto está quase vendido.” Refere ainda que pelo que se apercebeu o “... o
E. interessava-se não propriamente pelo prédio mas pelos estabelecimentos, por
causa dos filhos ...”, sendo que o filho varão daquele foi trabalhar com a
testemunha na padaria logo após a aquisição pelos pais, elucidando ainda que nos
estabelecimentos, após o negócio, “... ficou tudo, o forno, o frigorifico,
tudo!”.
Outrossim de mencionar é ainda o depoimento da testemunha H., cliente da
padaria, o qual, entre o mais, refere que o estabelecimento não obstante a sua
passagem dos RR. para a família E1. continuou normalmente a trabalhar, que “...
o Sr. E. comprou o prédio por causa dos filhos, para dar emprego ao filho, que a
padaria foi passada com tudo,... estavam lá os mesmos objectos Em idêntico
pendor se pronunciou também, e por fim, a testemunha I. (malgrado este apelido
sem qualquer ligação de parentesco com os sócios-gerentes da A.), também cliente
habitual tanto da padaria como do mini-mercado.
Pese embora estas mencionadas testemunhas serem todas da A., verdade é, no
entanto, que os seus depoimentos em nada são infirmados pelos da parte
contrária, sendo certo que todas estas concedem que ambos os estabelecimentos,
efectuada a escritura nominalmente reportada apenas ao edifício, prosseguiram no
seu normal funcionamento, agora sob a tutela da família E1.
E idêntica ilação – no sentido da abrangência pelo firmado contrato dos
estabelecimentos –, se extrai também, como dissemos, dos elementos documentais
juntos aos autos.
Tal é o caso do doc. de fls. 70-71, donde resulta que à frente dos destinos do
estabelecimento de padaria passou a ficar apenas e só a A.. E o mesmo se
verifica com os docs. de fls. 252 e ss., dos quais se infere idêntica ocorrência
em relação à mercearia, particular saliência concitando o doc. de fls. 261,
constitutivo do pedido por parte do próprio R.- marido no sentido do averbamento
do respectivo alvará a favor da A., averbamento que efectivamente veio a ter
lugar, conforme doc. de fls. 266 e vº.
Ora, perante todo este eloquente e multifacetado conjunto de elementos, como
recusar que, com a celebração da mencionada escritura, os RR. tiveram a intenção
de abrir (também) mão dos estabelecimentos, e a A. (família E1), por seu turno,
de adquirir outrossim os mesmos estabelecimentos? É certo que a tal respeito
nada fizeram constar nesse instrumento, nem isso era sequer possível, dada a
qualidade em que os RR. ali intervieram e outorgaram. Mas este particularismo,
sempre com a devida vénia, em nada invalida a realidade objectiva das coisas, e
ela é, insofismavelmente, no sentido que vimos propugnando, seja, ter o contrato
em foco envolvido, de conformidade com o óbvio intuito de ambos os
intervenientes, também os estabelecimentos instalados no edifício (apenas)
declaradamente transaccionado. Como alguém avisadamente já afirmou, “deve-se dar
mais valor ao poder dos factos e à realidade da vida do que a construções
jurídicas!”
Nesta decorrência, pensamos que o negativo pronunciamento deferido ao ventilado
quesito 11º não pode subsistir, antes se impondo substituí-lo -presente o
disposto no segmento inicial da al. a), do nº 1, do art.º 712º, e nº 4 do mesmo
preceito –, por um outro de sentido inverso, ainda que com um pendor restritivo,
a saber:
- “Provado apenas que os representantes da autora ultimaram o negócio à
aquisição do prédio urbano, pela escritura pública referida em A), através da
qual os réus e a autora pretenderam vender e comprar, respectivamente, também os
estabelecimento, referidos em 2º .– padaria e mini-mercado.”
Como assim, o quadro fáctico a considerar em vista da decisão da causa, além do
material acima alinhado, extractado da douta sentença, integrará também este
que, a título desse devido veredicto, se acaba de enunciar.
2. Definido, enfim, o contingente fáctico a subsumir juridicamente, cuidemos
então das questões recursórias directamente suscitadas pela A./Apelante.
[Segue-se a análise jurídica das demais questões, designadamente do erro sobre o
objecto do negócio].
3. Os réus interpuseram recurso revista, o qual tendo sido admitido no tribunal
a quo veio a ser rejeitado no Supremo Tribunal de Justiça, considerando-se que o
valor da causa não era superior à alçada da Relação.
Decidida a inadmissibilidade do recurso ordinário, os recorrentes B. e mulher,
C., interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b)
do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), do acórdão da
Relação.
4. Admitido o recurso e ordenado o seu prosseguimento, os recorrentes
apresentaram alegações, que remataram com as seguintes conclusões:
1. A matéria de facto apenas pode ser alterada pela Relação nas situações
descritas nas alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo
Civil. E não obstante ter ocorrido a gravação dos depoimentos prestados na
audiência, não é possível tomar em consideração o depoimento das testemunhas se
o recorrente não deu cumprimento ao disposto no nº 2 do artigo 690º-A do CPC,
procedendo à transcrição mediante escrito dactilografado das passagens da
gravação em que se funda.
2. Tal mecanismo processual radica na defesa do contraditório, no princípio da
igualdade processual entre as partes, no direito a um processo justo equitativo.
3. Para assegurar tais comandos básicos e nucleares do Direito e da Justiça, o
nº 3 do referido artigo 690º-A do CPC estabelece que naquela hipótese:
incumbe à parte contrária proceder, na contra-alegação que apresenta, a
indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente...”
4. O Tribunal não pode, sem ferir as garantias constitucionais, anular ex ofício
a decisão recorrida, no caso a resposta ao quesito 11, e, simultaneamente dar
uma resposta de sentido contrário, sem que a parte afectada, não tenha tido
oportunidade de sobre isso de pronunciar.
5. A anulação da resposta ao quesito 11, seguida da resposta de sentido
contrário, ainda que oficiosamente, vai contra o pensamento da lei, previsto no
artigo 690-A do CPC, como também no nº 2 do mesmo artigo 712º, ao referir
taxativamente que “no caso a que se refere a segunda parte da alínea a) do
numero anterior, a relação reaprecia as provas em que assentou aparte impugnada
da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido,
sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios
que hajam .... de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de/acto
impugnada”.
6. A resposta ao quesito 11º da matéria de facto não foi impugnada. E como o não
o foi a recorrente não produziu alegações, não foi ouvida, não teve oportunidade
de sobre isso se pronunciar.
7. O nº 4 do artigo 712º, nº 4 do CPC, não contempla, ao menos expressamente, a
possibilidade de o tribunal de recurso anular a decisão, não impugnada por uma
parte e produzir outra, de sentido absolutamente diferente e que atinge a outra
parte. Tal possibilidade, implica necessariamente uma violação do princípio da
igualdade e da independência dos Tribunais e da Justiça.
8. Ao julgar assim, a Relação fez uma interpretação do artigo 712º, nº 4 do CPC,
quando conjugado com a norma ínsita no nº 1 da alínea a) também do artigo 712º
do CPC que é inconstitucional, pois é como se na prática esteja a suprimir, ou
pelo menos a limitar, injustificadamente, o direito da parte (vencida) poder
contra alegar no recurso.
9. Tal dimensão normativa não é conforme a Constituição, pois sempre haverá que
respeitar a dimensão da garantia de igualdade das partes e do acesso ao direito
e aos tribunais, ao processo justo e equitativo, assegurando a possibilidade de
reacção contra eventual pretensão de uma das partes.
10. Alterando a resposta ao quesito 11, nos termos em que o fez, tudo se passa
como se a Relação houvesse criado, sem que para tanto tivesse competência, uma
norma que não existia no ordenamento jurídico, a de que a Relação pode proceder
arbitrariamente ao reexame das provas, fixar uma convicção própria, alterar o
sentido das respostas, livremente, ainda que não haja impugnação ou recurso, e
sem ouvir as partes.
11. Por isso, entendem igualmente os recorrentes que a Relação fez uma
interpretação que é inconstitucional da norma do artigo 3º do CPC, em conjugação
com a norma do artigo 712º, nº 1, al. a), do mesmo diploma, quando interpretado
no sentido de admitir que o juiz possa decidir questões de facto ou de direito,
ainda que a título oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de
sobre elas se pronunciarem, por violação do direito a um processo justo e
equitativo ao exercício de um contraditório pleno.
12. O uso da faculdade conferida pelo artigo 712º, pressupõe a interposição de
recurso pela parte a quem possa aproveitar a alteração das respostas ou a
anulação da decisão. O mesmo é dizer que, o âmbito dos recursos é determinado
nas conclusões da respectiva alegação, como resulta do nº 3 do artigo 684º do
CPC.
13. Não tendo havido, recurso ou impugnação da matéria de facto – quesito 11° –
não podia o Tribunal dele tomar conhecimento.
14. Não foi porém essa posição adoptada pelo Acórdão recorrido, que apesar
disso, apesar da parte não ter recorrido da alteração ou anulação da matéria de
facto, a Relação oficiosamente “promoveu” e “conheceu”, por assim dizer do
recurso, como se ele houvesse sido interposto e não foi.
15. Assim mostra-se inconstitucional a norma do artigo 684º, nº 3, do Código
Processo Civil, em conjugação com a norma do artigo 712º, nº 1, al. a), do mesmo
diploma, quando interpretada no sentido de admitir que as conclusões de recurso
não limitem o seu objecto, podendo o Tribunal alterar a matéria de facto aí não
impugnada, por violação do direito a um processo justo e equitativo e ao
exercício de um contraditório pleno.
16. Em consequência de tal interpretação inconstitucional resultam violados os
princípios da protecção da confiança e da segurança jurídica, consideradas como
elementos basilares, essenciais do Estado de Direito, que se traduz na
previsibilidade, ou seja, na certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos,
em relação aos efeitos jurídicos das normas jurídicas, designadamente ao modo de
funcionamento dos Tribunais, consagrados nos artigos 2º, 207º e 212º da
Constituição.
A recorrida contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
“A. O presente recurso foi interposto intempestivamente, já após ter expirado o
prazo de 10 dias previsto no art. 75º nº 1 da Lei do Tribunal Constitucional.
B. O Meritíssimo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Coimbra
pronunciou-se no sentido da intempestividade da interposição do recurso, tendo,
no entanto, decidido admiti-lo, por entender que, não havendo aqui lugar ao
pagamento de taxa de justiça inicial, não há também lugar à aplicação do
disposto no art. 145º, nºs 5 e 6 do C.P.C..
C. O Tribunal Constitucional decidiu no Acórdão 350/00, “Sendo assim, uma vez
reconhecido que a apresentação do requerimento de recurso de constitucionalidade
ocorreu para além do prazo fixado no artigo 75º da Lei do Tribunal
Constitucional, e uma vez confirmado que não houve pagamento da multa prevista
no artigo 145º do Código de Processo Civil – porque não houve solicitação do
pagamento imediato da multa devida e porque a secretaria do tribunal a quo não
deu execução ao disposto no n.º 6 do artigo 145º (...) há que concluir pela
extemporaneidade dessa apresentação (...)“
D. A não ser assim, passaria completamente incólume a interposição extemporânea
do recurso, violando-se o disposto nos arts. 75º, nº 1 e 76º, nº 2 da Lei 28/82,
de 15/11, no que respeita ao prazo de interposição do recurso.
E. Pelo que, nos termos do disposto nos arts. 75º, nº 1 e 76º, nº 2 da Lei
28/82, de 15/11, entende a Recorrida, salvo o devido respeito, não dever este
Venerando Tribunal conhecer do objecto do mesmo.
F. Os recorrentes interpuseram o presente recurso ao abrigo do disposto no art.
70º, nº 1, al. b) da Lei do Tribunal Constitucional.
G. Para que deva ser admitido um recurso interposto ao abrigo desta alínea b), é
necessário que o recorrente tenha suscitado, durante o processo, a
inconstitucionalidade da norma que pretende que este Tribunal aprecie.
H. Os recorrentes não suscitaram durante o processo a inconstitucionalidade da
interpretação do art. 712º, nº 1, al. a) do Código de Processo Civil, só o tendo
feito no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
I. Aquando das alegações do recurso de revista, os recorrentes já tinham
conhecimento da interpretação seguida pelo Acórdão da Relação, tendo tido
oportunidade de suscitar aí a questão da inconstitucionalidade.
J. Mas mais lógico seria que, tomando conhecimento do Acórdão da Relação, última
instância de recurso no processo, e entendendo que o mesmo fizera uma
interpretação inconstitucional das normas aplicadas, os recorrentes tivessem
logo nesse momento processual interposto recurso para o Tribunal Constitucional.
K. Os recorrentes tiveram assim oportunidade de suscitar anteriormente no
processo a questão da inconstitucionalidade, mas optaram por não fazê-lo.
L. Pelo que não houve qualquer impossibilidade objectiva da suscitação atempada
da questão da inconstitucionalidade, não se enquadrando a situação sub iudice
nas excepções admitidas pelo Tribunal Constitucional.
M. Tendo havido suscitação extemporânea da questão da constitucionalidade,
entende a Recorrida, salvo o devido respeito, que não deve este Venerando
Tribunal conhecer do objecto do presente recurso.
N. Todavia, independentemente da questão da inadmissibilidade, o douto acórdão
da Relação de Coimbra entendeu que, tendo em conta as respostas positivas dadas
aos quesitos 5.º, 6.º, 7.º e 8.º, dar o quesito 11º como não provado configurava
uma situação de obscuridade e até mesmo de contraditoriedade.
O. Razão pela qual, ao abrigo do disposto no artigo 712.º, n.º 1, alínea a), 1ª
parte e n.º 4 do Código de Processo Civil, relevou a deficiência e substituiu a
resposta rotundamente negativa dada ao quesito 110 da Base Instrutória, por
outra de sentido inverso, ainda que com um pendor restritivo.
P. Quanto às suas competências em relação à matéria de facto, a Relação
reaprecia as provas, podendo atender a quaisquer elementos probatórios que hajam
servido de fundamento à decisão.
Q. Segundo jurisprudência do STJ, Acórdão de 21/06/2007, proferido no processo
07B1552, “A falta de reclamação, quer contra a base instrutória, quer contra o
julgamento da matéria de facto, não impede a alteração da decisão de facto pela
2ª instância, nos termos constantes do artigo 712º do Código de Processo Civil;
R. O estipulado no art. 712º do C.P. C. leva a que, quando o Tribunal da Relação
entenda que a decisão recorrida está eivada de deficiência, terá de intervir no
sentido da respectiva correcção e eliminação, sendo este um poder-dever que lhe
assiste mesmo que o recorrente não ponha em causa aquela matéria de facto.
S. Este poder-dever decorre das disposições conjugadas do art. 712.º n.º 1,
alínea a), 1ª parte e n.º 4 do mesmo artigo do Código de Processo Civil e do
facto de a Relação não ser um Tribunal de cassação.
T. A interpretação dada pela Relação às normas em causa em nada viola princípios
constitucionais, nomeadamente o princípio fundamental a um processo justo e
equitativo, mas conduz à efectivação do mesmo, na medida em que ao corrigirem-se
decisões deficientes, obscuras e contraditórias, se concorre para a justa
composição do litígio e para a realização da justiça, fins últimos de qualquer
processo.
U. Ao aplicar as normas que aplicou e ao decidir como decidiu, o Tribunal da
Relação não interpretou erradamente quaisquer normas, nem violou quaisquer
preceitos constitucionais.”
5. Por despacho do relator foram os recorrentes notificados para, querendo, se
pronunciarem sobre as questões obstativas à admissibilidade e conhecimento do
objecto do recurso (intempestividade e falta de suscitação oportuna da questão
de constitucionalidade) suscitadas pela recorrida nas contra-alegações
A questão da tempestividade do recurso foi decidida por despacho do relator,
[ter o requerimento de interposição de recurso dado entrada um dia após o termo
limite do respectivo prazo e ter sido admitido sem o pagamento da multa prevista
nos n.º 5 e 6 do artigo 145.º do Código de Processo Civil], tendo-se
regularizado o pagamento da multa devida.
II- Fundamentos
6. Nas suas contra-alegações a recorrida suscita duas questões prévias. A
primeira, já foi decidida, como se referiu, pelo despacho de fls. 528 a 532.
Resta apreciar a segunda.
Consiste esta em que os recorrentes só mencionaram a questão de
constitucionalidade no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal
Constitucional, e que “[A]quando das alegações do recurso de revista, os
recorrentes já tinham conhecimento da interpretação seguida pelo acórdão da
Relação, tendo tido oportunidade de suscitar aí a questão da
inconstitucionalidade”. E, acrescentam: “[M]as mais lógico seria que, tomando
conhecimento do acórdão da Relação, última instância de recurso no processo, e
entendendo que o mesmo fizera uma interpretação inconstitucional das normas
aplicadas, os recorrentes tivessem logo nesse momento processual interposto
recurso para o Tribunal Constitucional.”
Em resposta, contrapõem os recorrentes que a questão apenas surgiu com a decisão
do Tribunal da Relação de Coimbra, e que, por isso, nunca tiveram oportunidade
de suscitar qualquer questão de inconstitucionalidade, “pois de uma situação
verdadeiramente excepcional e insólita se tratava, estando, portanto,
dispensados de cumprir tal ónus”, e não podendo ser considerado e levado em
conta o requerimento de interposição de recurso para o Supremo Tribunal de
Justiça, que visando uma revista de mérito, da acção, não foi admitido, em razão
do valor da acção, tudo se passando, assim, como se nunca tivesse existido e os
recorrentes nunca tivessem tido a oportunidade de se pronunciarem.
Efectivamente, tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1
do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito efectiva aplicação das normas
arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Num entendimento funcional do
referido ónus, o Tribunal tem exceptuado as situações, decerto excepcionais ou
anómalas, em que o recorrente não tenha disposto de oportunidade processual
para suscitar a questão antes de proferida a decisão recorrida ou em que,
dispondo abstractamente dessa oportunidade, não era exigível, agindo com
diligência processual normal, que suscitasse então a questão de
constitucionalidade que quer ver apreciada.
Ora, o caso dos autos é daqueles em que a questão de constitucionalidade, em
qualquer das vertentes em que o recorrente a apresenta, só se revela com a
decisão recorrida. Efectivamente, o recurso de apelação não visava, ao menos
directamente, a impugnação da matéria de facto, como facilmente se retira das
conclusões das alegações da apelante (ora recorrida) e o próprio acórdão
reconhece. Não seria razoável exigir que os então recorridos (ora recorrentes),
para acautelar o recurso de constitucionali0dade, tivesse que suscitar nas
contra-alegações a questão da inconstitucionalidade, antevendo a hipótese de a
Relação fazer uso dos poderes conferidos no artigo 712.º do Código de Processo
Civil e vir a proceder oficiosamente à alteração da matéria de facto sem a sua
prévia audição.
E é irrelevante que os recorrentes não tenham invocado a questão de
constitucionalidade no recurso que interpuseram da decisão da Relação para o
Supremo Tribunal de Justiça. Esse recurso foi rejeitado e a decisão que aplicou
as normas em causa e é objecto do presente recurso de constitucionalidade é o
acórdão da Relação.
Deste modo, face à conformação concreta do litígio e à decisão proferida,
conclui-se que os recorrentes não dispuseram, agindo com a diligência exigível,
de oportunidade para suscitar a questão de constitucionalidade perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, pelo que improcede a questão
obstativa suscitada pelos recorridos e se conhecerá do objecto do recurso.
7. Importa, porém, proceder à sua correcta delimitação, tendo em conta as
questões colocadas pelos recorrentes e o teor da decisão recorrida.
No acórdão recorrido considerou-se que o objecto da apelação era definido em
função das conclusões das alegações do recorrente, ao abrigo do disposto nos
artigos 684.º, n.º 3, e 690.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, com excepção
das questões de conhecimento oficioso, e que «… entre as questões a respeito das
quais esse imperativo conhecimento se impõe aos Tribunais da Relação, surgem,
desde logo, as referentes à fixação da matéria de facto, dado a consolidada
natureza de tribunais de instância que aos mesmos assiste».
Ora, tendo em conta este poder-dever, no caso decorrente do artigo 712.º do CPC,
entendeu-se que, muito embora a fixação da matéria de facto não tivesse sido
posta em causa no recurso, essa decisão estava «eivada de deficiências» a
justificar a intervenção da Relação no sentido da respectiva correcção e
eliminação.
Mais concretamente, entendeu-se que a resposta negativa dada ao quesito 11º da
base instrutória, era “obscura e até mesmo contraditória” com as respostas
positivas dadas aos quesitos 5º, 6º, 7º e 8º, e que, «a prova produzida nos
autos – seja de índole testemunhal, seja documental – e que conduziu às ditas
respostas positivas, impunha por igual…, também pronunciamento positivo em
relação a esse quesito 11º».
Para a Relação não era possível, sob pena de manifesta incoerência,
responder negativamente ao quesito 11º, face às respostas positivas dadas aos
outros quesitos, e essa deficiência transparecia não só ao nível puramente
lógico-formal, confrontando o teor das respostas em si, mas também ao nível
substancial da prova produzida.
É assim que, depois de analisar o teor das respostas dadas aos
quesitos e a prova testemunhal e documental pertinente, se concluiu no aresto
recorrido que «o negativo pronunciamento deferido ao ventilado quesito 11º não
pode subsistir, antes se impondo substituí-lo – presente o disposto no segmento
inicial da alínea a) do n.º 1, do artigo 712.º, e n.º 4 do mesmo preceito –, por
um outro de sentido inverso…».
Foi neste contexto que, sem audição das partes, a Relação alterou a
resposta dada ao quesito 11º.
Deste modo, não há autonomia entre a 1.ª e a 2.ª questões enunciadas pelos
recorrentes no requerimento de interposição, reduzindo-se o objecto do recurso à
apreciação da inconstitucionalidade das seguintes normas:
A) A alínea a) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 712.º e o
n.º 3 do artigo 684.º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de
permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto,
com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição, quando constem do
processo todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os
pontos da matéria de facto em causa;
B) O n.º 3 do artigo 3.º e a alínea a) do n.º 1 e o
n.º 4 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, interpretados no sentido de
permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto,
com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição, sem prévia audição
das partes.
8. Quanto à primeira questão, o dispositivo essencial é o que emerge
do artigo 712.º, do Código de Processo Civil, invocado pela Relação como
fundamento para o seu poder decisório, tendo os restantes uma aplicação
indirecta ou consequencial desta norma, pois, é, efectivamente, da conjugação do
n.º 4 com a parte inicial da alínea a) do n.º 1 desse preceito, que o tribunal
recorrido extrai o poder-dever de alterar oficiosamente, a matéria de facto
fixada, quanto a considere deficiente, obscura ou contraditória, se do processo
constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os
pontos da matéria de facto em causa, mesmo no caso do recurso não versar sobre a
matéria de facto.
8.1. O artigo 712.º do Código de Processo Civil, na versão aplicável
aos autos [redacção do Decreto-Lei n.º 329.º-A/95, de 12 de Dezembro, e do
Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro], e na parte relevante para a presente
decisão, é do seguinte teor:
“ARTIGO 712º
Modificabilidade da decisão de facto
1 – A decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser
alterada pela Relação:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à
decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido
gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo
690º-A, a decisão com base neles proferida;
b) (…)
c) (…)
2 – (…)
3 – (…)
4 – Se não constarem do processo todos os elementos probatórios que, nos termos
da alínea a) do n.º 1, permitam a reapreciação da matéria de facto, pode a
Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão proferida na 1ª instância, quando
repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados
da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta; a
repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada,
podendo, no entanto, o tribunal ampliar o julgamento de modo a apreciar outros
pontos da matéria de facto, com o fim exclusivo de evitar contradições na
decisão.
5- (…)
6- (…)
Em contraposição com o que sucedia com o Código de Processo Civil de
1939, que estabelecia como regra a inalterabilidade da decisão do tribunal
colectivo sobre a matéria de facto constante do questionário, o Código de 1961
procurou ampliar os poderes da Relação no que toca, não só à apreciação das
respostas à matéria de facto dadas pelo tribunal de 1ª instância, mas também à
imposição duma fundamentação mínima relativamente às decisões do colectivo, e
determinado a possibilidade de anulação, ainda que oficiosa, quando as respostas
à matéria de facto fossem deficientes, obscuras ou contraditórias (Lebre de
Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Artigos 676º
a 943º, Vol.3º, 2003, p. 95).
Contudo, na prática, apesar de se prever um segundo grau de
jurisdição em matéria de facto, face à redacção anterior do artigo 712º, do
Código de Processo Civil, só muito excepcionalmente tal garantia era exequível
(Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II Vol., 3ª ed., Janeiro
de 2000, p. 186), pois, perante a anterior redacção da alínea a) do n.º 1 do
citado artigo 712.°, a Relação só gozava do poder dever de alterar a decisão
sobre a matéria de facto se do processo constassem todos os elementos de prova
que serviram de base à decisão – o que apenas sucedia quando, havendo prova
testemunhal, todas as testemunhas tivessem sido ouvidas por deprecada, estando
os respectivos depoimentos reduzidos a escrito, ou se os elementos fornecidos
pelo processo impusessem decisão diversa insusceptível de ser destruída por
quaisquer outras provas.
Nos demais casos, que a experiência demonstrou constituírem a larga maioria,
bastava que na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o tribunal
indicasse, ainda que em termos genéricos ou imprecisos, a interferência de prova
testemunhal, declarações emitidas pelas partes, esclarecimentos prestados pelos
peritos ou por quaisquer outras pessoas ouvidas na audiência de discussão e
julgamento ou, ainda, o resultado da observação directa que o tribunal retirasse
das inspecções judiciais, para que o tribunal superior ficasse impedido de
sindicar a decisão proferida pelo tribunal “a quo” (Abrantes Geraldes, ob. e
vol. cit., pp. 193/194).
Aqui se fundaram, embora em termos não exclusivos, as principais críticas
apontadas ao sistema (da oralidade plena, implementado no Código de Processo
Civil de 1939 e continuado no Código de Processo Civil de 1961) e que acabaram
por levar o legislador a aprovar as medidas intercalares previstas no
Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, posteriormente mantidas na redacção
final do Código de Processo Civil (Abrantes Geraldes, ob. e vol. cit., p. 186).
Efectivamente, o Decreto-Lei nº 39/95 veio possibilitar um recurso amplo sobre a
matéria de facto, ao prescrever a possibilidade de registo ou documentação da
prova, solução que a revisão do Código de Processo Civil operada em 1995/1996
(pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e pelo Decreto-Lei n.º 180/96,
de 25 de Setembro), sedimentou. Assim, a decisão do tribunal de 1ª instância
sobre a matéria de facto passou a poder ser alterada, não só nos casos previstos
desde 1939, mas também quando, tendo ocorrido gravação dos depoimentos
prestados, tenha sido impugnada, nos termos do artigo 690.º-A, a decisão com
base neles proferida (Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de
Processo Civil Anotado, Artigos 676º a 943º, Vol. 3º, p. 96).
Por virtude deste alargamento do conjunto de elementos probatórios à disposição
da Relação e da ampliação dos seus poderes cognitivos criaram-se condições para
que seja excepcional a anulação da decisão de facto proferida em 1ª instância.
Como diz LOPES DO REGO (Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.º
ed., pág. 610) “constatada uma possível deficiência ou obscuridade quanto a
certa parcela ou segmento da matéria de facto, se constarem do processo todos os
elementos probatórios que lhe serviram de base, deverá a Relação, antes e em vez
de anular a decisão, proceder à reapreciação do decidido, substituindo-se ao
tribunal “a quo” e corrigido o erro de julgamento que considere ocorrido”.
8.2. Os recorrentes alegam que a interpretação deste regime no sentido de que a
Relação pode alterar oficiosamente a matéria de facto, quanto considere
deficiente, obscura ou contraditória a decisão, se do processo constarem todos
os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria
de facto em causa, apesar de o recurso não consistir em impugnação da matéria de
facto, atenta contra o princípio da igualdade processual entre as partes e do
contraditório e contra o direito a um processo justo e equitativo, “decorrentes
do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 6.º, n.º 1,
da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pedra angular de um Estado de
direito democrático”.
São, efectivamente, as normas contidas no artigo 20.º n.ºs 1 e 4 da
Constituição, no ponto em que elas asseguram o acesso ao direito e aos tribunais
e, a todos os que intervenham numa causa, o direito a um processo equitativo, os
parâmetros adequados para aferir da constitucionalidade das normas em causa no
presente processo.
Sobre o alcance destas normas constitucionais pronunciou-se já, inúmeras vezes,
o Tribunal Constitucional. Disse-se, entre muitos outros de idêntica doutrina,
no Acórdão n.º 330/01 in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 50º vol., págs.
771 e segs.:
'4.1. Como este Tribunal tem repetidamente sublinhado [cf., por último, o
acórdão n.º 259/2000 (publicado no Diário da República, II série, de 7 de
Novembro de 2000)], o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito
a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e
com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante um
correcto funcionamento das regras do contraditório [cf. o acórdão n.º 86/88
(publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 11º, páginas 741 e
seguintes)].
Tal como se sublinhou no acórdão n.º 358/98 (publicado no Diário da República,
II série, de 17 de Julho de 1998), repetindo o que se tinha afirmado no acórdão
n.º 249/97 (publicado no Diário da República, II série, de 17 de Maio de 1997),
o processo de um Estado de Direito (processo civil incluído) tem, assim, de ser
um processo equitativo e leal. E, por isso, nele, cada uma das partes tem de
poder fazer valer as suas razões (de facto e de direito) perante o tribunal, em
regra, antes que este tome a sua decisão. É o direito de defesa, que as partes
hão-de poder exercer em condições de igualdade. Nisso se analisa,
essencialmente, o princípio do contraditório, que vai ínsito no direito de
acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição, que
prescreve que “a todos é assegurado o acesso [...] aos tribunais para defesa dos
seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser
denegada por insuficiência de meios económicos”.
A ideia de que, no Estado de Direito, a resolução judicial dos litígios tem que
fazer-se sempre com observância de um due process of law já, de resto, o
Tribunal a tinha posto em relevo no acórdão n.º 404/87 (publicado nos Acórdãos
do Tribunal Constitucional, volume 10º, páginas 391 e seguintes). E, no acórdão
n.º 62/91 (publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 18º,
páginas 153 e seguintes) sublinhou-se que o princípio da igualdade das partes e
o princípio do contraditório “possuem dignidade constitucional, por derivarem,
em última instância, do princípio do Estado de Direito”.
As partes num processo têm, pois, direito a que as causas em que intervêm sejam
decididas “mediante um processo equitativo” (cf. o n.º 4 do artigo 20º da
Constituição), o que – tal como se sublinhou no acórdão n.º 1193/96 (publicado
nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35º, pagina 529 e seguintes) –
exige não apenas um juiz independente e imparcial (um juiz que, ao dizer o
direito do caso, o faça mantendo-se alheio, e acima, de influências exteriores,
a nada mais obedecendo do que à lei e aos ditames da sua consciência), como
também que as partes sejam colocadas em perfeita paridade de condições, por
forma a desfrutarem de idênticas possibilidades de obter justiça, pois,
criando-se uma situação de indefesa, a sentença só por acaso será justa.'
É à luz destes princípios que cumpre decidir a primeira questão que, repete-se,
consiste em saber se é ou não inconstitucional a interpretação das normas dos
artigos 712.º, n.º 1, alínea a), e n.º 4, 684.º, n.º 3, do Código de Processo
Civil, no sentido de permitirem que a Relação proceda oficiosamente à alteração
da matéria de facto, com fundamento em deficiência, obscuridade ou contradição,
quando constem do processo todos os elementos de prova que serviram de base à
decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ainda que a decisão
proferida com base neles não tenha sido impugnada nos termos do artigo 690.º-A
do Código Processo Civil.
Atente-se que com a interpretação normativa em causa o tribunal de recurso não
se arroga poderes para proceder oficiosamente a uma geral e irrestrita alteração
do julgamento da matéria de facto. Fá-lo no âmbito da base de facto relevante
para a questão de direito discutida na apelação e para harmonizar do ponto de
vista lógico as respostas do tribunal de 1.ª instância, eliminando a obscuridade
e contradição que reputou existir nesse julgamento quanto a um concreto ponto da
matéria de facto. Efectivamente, sendo a decisão jurídica da causa uma decisão
racional não pode assentar em factos que estejam entre si em contradição ou cuja
equivocidade ou indeterminação de sentido impeça que se saiba que consequência
jurídica se deve deles extrair. Impossibilitado, pela deficiência, obscuridade
ou contradição da matéria de facto pertinente, de resolver as questões que lhe
são submetidas e, portanto, de alcançar a decisão justa do litígio, ao tribunal
de recurso coloca-se a alternativa de anular o julgamento de facto ou eliminar o
vício, se dispuser de competência e de todos os elementos probatórios que
serviram de base à decisão. A preferência normativa pela segunda opção em vez da
pronúncia cassatória, mesmo que essa revisão do julgamento de facto não tenha
sido pedida, justifica-se pelo interesse constitucionalmente relevante de
obtenção da justiça em prazo razoável.
E não resulta dessa solução de suprimento oficioso pelo tribunal de recurso da
obscuridade ou contradição das respostas quanto a pontos concretos da matéria de
facto ofensa aos princípio do processo equitativo, designadamente, na vertente
da igualdade de armas e do contraditório, aqui no sentido do direito de uma das
partes se pronunciar sobre qualquer pretensão formulada pela parte contrária.
Com efeito, a alteração à matéria de facto faz-se no âmbito restrito das
questões jurídicas em disputa, com recurso às provas produzidas nos autos, não
convocando a Relação para este efeito meios de prova que não tivessem já sido
submetidos à análise e ao contraditório das partes. Não há na situação em apreço
qualquer violação do princípio da igualdade das partes no processo, porque o
tribunal ao assim proceder não as trata diferenciadamente, dando a uma
tratamento que tenha negado à outra, nem decide questão colocada por uma parte
sem audição da outra. Perante a perplexidade em que se vê colocado pelo acervo
factual sobre que as partes discutem e não podendo concluir pelo non liquidet,
elimina oficiosamente o vício com base nos elementos que os autos fornecem e as
partes conhecem. Não ouve só uma das partes, nem concede a uma a oportunidade de
apresentar elementos de convicção que à outra nega. Assim, não se pode afirmar
que, em função da alteração uma das partes tenha ficado numa situação
desvantajosa em relação à outra no tocante ao pleno desfrute dos meios
adjectivos postos à sua disposição.
E também não podem dizer-se violados os demais princípios e normas
constitucionais invocados.
Desde logo, carece absolutamente de sentido a referência aos artigos 207.º e
212.º da Constituição (cfr. conclusão 16.ª), que versam, respectivamente, sobre
o júri, participação popular e assessoria técnica nos tribunais e sobre os
tribunais administrativos e fiscais.
E é manifestamente infundada a arguição de que a norma em causa viola o
princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica, ínsitos no artigo
2.º da Constituição, que a recorrente não fundamenta. A alteração oficiosa da
matéria de facto ocorre no âmbito da base de facto relevante para decisão de
questões jurídicas em disputa num processo pendente e para eliminar obscuridades
ou contradições impeditivas da justa resolução dessas questões ainda
controvertidas, pelo que se não vislumbra de que modo pode ser atingido o
direito dos cidadãos a confiar na estabilidade das decisões judiciais.
9. Apurado que a alteração oficiosa da matéria de facto pelo tribunal de
recurso, ao abrigo do n.º 4 e da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º do Código de
Processo Civil, em ordem a eliminar obscuridades ou contradições do julgamento
da matéria de facto relevante para a decisão das questões jurídicas em disputa,
não viola as garantias que decorrem do direito ao processo equitativo (artigo
20.º, n.º 4, da CRP), importa averiguar se também passa incólume a essa censura
o entendimento dessas mesmas normas em conjugação com o n.º 3 do artigo 3.º do
mesmo Código, no sentido de que para assim proceder não é necessário ouvir
previamente as partes, designadamente a parte em desfavor da qual é feita a
alteração.
Este último preceito dispõe que o juiz “deve observar e fazer cumprir, ao longo
de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo
caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo
que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de
sobre elas se pronunciarem”.
Como já se disse a propósito da questão anteriormente tratada, o
artigo 20.º da Constituição não se limita a garantir o direito de acesso aos
tribunais. Impõe que esse direito se efective – na conformação normativa e na
concreta condução – através de um processo equitativo (n.º 4 do artigo 20.º da
CRP).
Levada expressamente ao texto constitucional pela revisão operada
pela Lei Constitucional n.º 1/97, a exigência do processo equitativo, conceito
em cuja densificação tem papel de relevo a jurisprudência dos órgãos da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem sobre o conceito homólogo consagrado no
artigo 6.º da CEDH, já anteriormente se deduzia de outros lugares da
Constituição e era reconhecido pela jurisprudência do Tribunal (cfr. p. ex.
acórdão n.º 1193/96).
Para o processo civil e para os modelos processuais a que aquele serve de
paradigma (para o processo penal a Constituição fornece no artigo 32.º elementos
de concretização suplementares), a jurisprudência e a doutrina têm desenvolvido
o conceito através de outros princípios que o densificam: (1) direito à
igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as
diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao
contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das
partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a
admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o
valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de acção e de
recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito
à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6)
direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova;
(8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. GOMES
CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª
ed., pá. 415).
No caso, não está em consideração a violação do contraditório na sua
formulação clássica (audiatur et altera pars), enquanto exige que se dê a cada
uma das partes a possibilidade de “deduzir as suas razões (de facto e de
direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário”
e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras”. A questão que
agora se aprecia respeita à proibição das chamadas decisões-surpresa, ou seja, à
imposição ao tribunal do dever de ouvir as partes antes de tomar decisões com
fundamento de conhecimento oficioso que não tenha sido por elas previamente
considerado. O que está em causa não é a garantia de defesa, no sentido negativo
de oposição perante pretensão da outra parte, mas o direito de influenciar a
formação da decisão do órgão judicial que lhe diz directamente respeito e que
também tem de considerar-se incluído na exigência constitucional do processo
equitativo.
Mais precisamente, uma vez que a consideração do que é uma concepção
justa e leal do processo não pode ser traçada abstractamente e que nos situamos
num processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, importa saber se a
exigência do processo equitativo funda uma extensão do contraditório de tal modo
que se considere que aquele princípio constitucional é infringido por uma norma
que dispense (i.e., interpretada no sentido de dispensar) o tribunal de recurso
de ouvir previamente as partes quando venha a optar pela alteração oficiosa da
matéria de facto, com base nos elementos probatórios em que se fundou a decisão
da 1ª instância, para eliminar obscuridades ou contradições.
E aqui a resposta é positiva.
A parte que é objectivamente desfavorecida pelo sentido da alteração
da decisão de facto não vê garantida a sua participação efectiva num momento
fulcral do desenvolvimento da lide perante o tribunal de recurso e que vem a ser
decisivo para a solução que esse tribunal dá à questão sobre a qual incidiu a
discussão das partes nessa fase processual. A base factual é crucial na
aplicação do direito pelos tribunais. A discussão que as partes travaram nas
alegações e contra-alegações, tomando por referente as respostas aos pontos da
matéria de facto fixadas na decisão recorrida, pode ficar esvaziada de sentido
se esse pressuposto desaparece. Não conceder às partes, perante a solução
plausível de vir a alterar oficiosamente a base factual, a oportunidade de
apresentar as razões pelas quais essa alteração não deve ser feita é privá-las
da participação num momento constitutivo da decisão da causa. Mormente quando,
como na aplicação normativa concreta sucedeu, a alteração não se reduz à
eliminação de incongruências frontais imposta por exigências imperativas de
lógica formal que só consintam um indiscutível sentido da proposição
questionada, antes envolve a reapreciação da prova documentada no processo em
ordem a suportar o sentido da alteração a que se chegou.
Deste modo, a referida norma, entendida como implicitamente o foi no
sentido de o exercício dos referidos poderes da Relação não dever ser precedido
de audição das partes, conduz a que a decisão da causa não seja, nessa fase
processual, o resultado de um processo equitativo.
Aliás, o Tribunal Constitucional já afirmou entendimento semelhante
deste princípio em casos de exercício de poderes oficiosos aparentados com a
hipótese que agora se aprecia, designadamente no acórdão n.º 440/94 (condenação
por litigância de má fé, sem prévia audição dos interessados sobre tal matéria)
e n.º 605/95 (condenação “extra vel ultra petitum” em processo laboral),
publicados, respectivamente, no Diário da República, II Série, de 1 de Setembro
de 1994 e 15 de Março de 1996 e disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. E
no acórdão n.º 205/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 2 de
Julho de 2003, reconheceu-se expressamente que a norma contida no artigo 3.º,
n.º 3, do Código de Processo Civil “resulta, assim, de uma imposição
constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem
previamente sobre as questões – suscitadas pela parte contrária ou de
conhecimento oficioso – que o tribunal vier a decidir”, embora nesse caso se
tenha concluído pela não violação do princípio constitucional.
Procede, pois, o recurso nesta parte, improcedendo no mais.
III - Decisão
Pelo exposto, concedendo parcial provimento ao recurso, decide-se:
A) Julgar inconstitucional, por violação do direito a um processo
equitativo consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição, a norma extraída
do n.º 3 do artigo 3.º e da alínea a) do n.º 1 e do n.º 4 do artigo 712.º do
Código de Processo Civil, quando interpretados no sentido de permitirem que a
Relação proceda oficiosamente à alteração da matéria de facto, com fundamento em
deficiência, obscuridade ou contradição da decisão da 1.ª instância nesse
domínio e, consequentemente, modifique a decisão da causa, sem prévia audição
das partes;
B) Determinar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o
agora decidido quanto à questão de constitucionalidade;
C) Julgar no mais improcedente o recurso.
Lx., 8/7/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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