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Processo n.º 529/07
1ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira
ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
Relatório
1.
Por decisão de 30 de Dezembro de 2005, a Autoridade da Concorrência sancionou a
A. aplicando-lhe uma coima no montante de € 195.000,00 por violação dolosa da
proibição constante dos artigos 2.º n.º 1 alínea a) do Decreto-Lei n.º 371/93 de
29 de Outubro e artigo 4.º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 18/2003 de 11 de Junho
['são proibidos os acordos entre empresas, as decisões de associações de
empresas e as práticas concertadas entre empresas, qualquer que seja a forma que
revistam, que tenham por objecto ou como efeito impedir, falsear ou restringir
de forma sensível a concorrência no todo ou em parte do mercado nacional,
nomeadamente os que se traduzam em: a) Fixar, de forma directa ou indirecta, os
preços de compra ou de venda ou interferir na sua determinação pelo livre jogo
do mercado, induzindo, artificialmente, quer a sua alta quer a sua baixa'],
ordenando ainda que a arguida adoptasse as providências de cessar de imediato a
elaboração, aprovação e divulgação das tabelas indicativas de preços máximos de
serviços prestados pelos agentes de navegação fora dos termos previstos no
artigo 5.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 76/89, de 3 de Março, com a redacção que lhe
foi dada pelo Decreto-Lei n.º 148/91 de 12 de Abril, ou seja, mediante prévia
solicitação das autoridades portuárias, e publicitar, o mais tardar até 31 de
Janeiro de 2006, junto das suas associadas e das autoridades portuárias, a
adopção das medidas referidas na decisão.
Inconformada, a A. impugnou a decisão, recorrendo para o Tribunal de Comércio
de Lisboa.
Na audiência de discussão e julgamento realizada no 3.º Juízo do Tribunal de
Comércio de Lisboa, em 24 de Maio de 2006, a recorrente requereu que o tribunal
admitisse o seu acesso aos elementos até ao momento qualificados como
confidenciais, acesso esse que “para garantir o respectivo efeito útil” deveria
ser admitido antes do início da produção de prova.
Sobre este requerimento foi proferido despacho com o seguinte teor:
“ […]
Regula o art. 18 n.º 1 alínea d) do Regime Jurídico da Concorrência, aprovado
pela Lei 18/2003 de 11/6 com epígrafe “Prestação de informações”, o poder da
Autoridade de solicitar às entidades nele identificadas, documentos e outras
informações que se revelem necessários, no exercício dos poderes sancionatórios
de supervisão que são atribuídos à Autoridade por Lei, devendo esse pedido ser
instruído, entre outros, com a informação de que as empresas deverão
identificar, de maneira fundamentada, as informações que considerem
confidenciais.
Refere ainda com interesse o artº. 26 nº 5 do mesmo diploma legal que “na
instrução dos processos a Autoridade acautela o interesse legítimo das empresas
na não divulgação dos seus segredos de negócio.”
É nosso entender, que, deverá existir articulação na apreciação de ambos os
normativos referidos, cabendo à Autoridade acautelar o referido interesse antes
de mais, tendo em atenção o “segredo de negócio” que é permitido às entidades
mencionadas no artº. 18 ao fornecerem as informações solicitadas.
Relativamente à questão em apreciação e após consulta dos documentos que foram
enviados com a menção de confidencial, constatamos antes de mais, depois da sua
análise, que, apenas é feita menção fundamentada do pedido de confidencialidade,
relativamente aos documentos numerados sob os n.ºs 1181 a 1240-A e 1241-A.
Relativamente a todos os outros ou não é feita qualquer menção de
confidencialidade ou, como a título de exemplo se refere as fls. 307, 1426 e
1435, apenas, quem fornece a informação, diz que a mesma deve ter a natureza
confidencial, não fundamentando o porquê dessa confidencialidade.
Voltando aos normativos referidos, verificamos que a obrigação da Autoridade
determinada pelo artº. 26 nº 5 do supra mencionado, apenas se reporta à fase de
instrução dos processos que terá sempre de ser atendida, no caso, como já tendo
cessado face à decisão final proferida.
Importa assim, remetermo-nos apenas para o artº. 18 nº 2 alínea d) também supra
referido.
Considerando o teor deste normativo, é nosso entendimento desde logo afastar o
não acesso da Recorrente aos elementos relativamente aos quais não é feita
qualquer menção de não confidencialidade e aos elementos relativamente aos quais
a mesma não é fundamentada. Entendemos assim, ser de conferir à Recorrente o
acesso integral aos mencionados elementos de prova. Quanto aos documentos que
supra citamos, que foram fornecidos com a menção de confidencial devidamente
fundamentada pelas próprias empresas que os forneceram, entendemos face ao
disposto no art. 18 nº 1 alínea d) que se deverá manter o não acesso da
Recorrente a esses elementos, sob pena de não se dar qualquer efeito prático ao
mencionado normativo e não respeitar o princípio de confidencialidade que foi
consagrado no mesmo, a apreciar pelas próprias entidades que fornecem as
informações.
Assim em conclusão, defere-se o requerido acesso a todos os elementos inclusos
nas pastas numeradas de 5 e 6 com a menção de “confidencial 1” e “confidencial
2”, com excepção dos elementos de fls. 1181 a 1240-A e 1241-A, concedendo-se à
Recorrente um prazo razoável, que se entende ser de 15 dias, para consulta e
análise dos mencionados documentos, fornecendo-se para o efeito cópia dos
mesmos.”
Deste despacho a A. interpôs recurso para a Relação de Lisboa “na parte em que
indefere o respectivo acesso às fls. 1181 a 1240-A e 1241-A”, alegando
designadamente que “qualquer interpretação do artigo 18.º, n.º 1, alínea d), e
do artigo 26.º, n.º 5, ambos da Lei da Concorrência, no sentido de que o Arguido
possa ser julgado e condenado em processo de contra-ordenação, sem conhecer a
totalidade dos elementos probatórios que foram reunidos durante a fase de
instrução do processo, e que constam desse mesmo processo, redunda em norma
materialmente inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 10, da CRP”.
Finalmente, por sentença de 28 de Julho de 2006, o Tribunal de Comércio de
Lisboa julgou o recurso de impugnação parcialmente procedente condenando a
arguida pela prática da contra-ordenação prevista nos artigos 2.º n.º 1 alínea
a) do Decreto-Lei n.º 371/93, de 29 de Outubro e artigo 4.º n.º 1 alínea a) da
Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, punida nos termos do artigo 43.º n.º 1 alínea
a) da Lei n.º 18/2003, na coima de € 130.000,00, devendo ainda: (a) cessar de
imediato a elaboração, aprovação e divulgação de tabelas indicativas de preços
máximos de serviços prestados pelos agentes de navegação fora dos termos
previstos no artigo 5.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 76/89 de 3 de Março, com
redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 148/91 de 12 de Abril, ou seja,
apenas a elaboração de propostas de tabelas de preços máximos, mediante prévia
solicitação das autoridades portuárias; (b) publicitar, junto das suas
associadas e das autoridades portuárias, no prazo de um mês após o trânsito da
presente decisão, a adopção da medida referida em (a) e pagar as custas do
processo.
Pode ler-se na sentença, na parte que para agora releva, o seguinte:
“ […]
b) direito ao silêncio da recorrente.
Alega a recorrente, que a Autoridade da Concorrência citando normas incorrectas,
solicitou-lhe, após comunicação de abertura de inquérito, vários documentos e
informações que identifica, sob pena de, não cumprindo, ser-lhe aplicada uma
coima, resultando que a interpretação conjugada dos artºs 17º n.º 1. al. a). 18º
e 43º n.º 3 da Lei 18/2003, no sentido de obrigar a arguida a revelar, com
verdade, de forma completa, sob pena de coima, determinadas informações e
documentos é inconstitucional, por violação dos artºs 1º, 20 n.º 4, 32º n.º 2, 8
e 10 da Constituição da República Portuguesa, gozando o arguido, em processo de
contra-ordenação do direito ao silêncio, bem assim do direito à não
auto-incriminação, à qual não pode ser compelido por nenhuma forma.
Acrescenta que, face à inconstitucionalidade invocada ter-se-á de concluir que,
todas as provas obtidas, no presente processo, com base nos artºs 17º n.º 1 al.
al. a). 18.º e 43.º n.º 3 da Lei 18/2003 são nulas e na medida em tais provas
são nulas também não podem ser aproveitadas para nenhum fim, nomeadamente não
podem ser aproveitadas para efeitos de uma decisão condenatória, devendo a
decisão proferida ser revogada e substituída por outra que absolva a requerida,
uma vez que, para além das referidas provas, não existem quaisquer outras que
permitam sustentar a (inexistente) responsabilidade da A..
Respondeu a autoridade da concorrência, dizendo, em síntese, que o referido
direito não é aplicável no caso e que não se verifica qualquer
inconstitucionalidade.
Cumpre decidir:
[…]
A Autoridade da Concorrência dispõe, de acordo com mencionado nos seus
estatutos, aprovados pelo Dec.-Lei 10/03 de 18.01, para o desempenho das suas
atribuições, de poderes sancionatórios, de supervisão e de regulamentação.
No exercício dos seus poderes sancionatórios, cabe à Autoridade investigar as
práticas susceptíveis de infringir a legislação de concorrência nacional e
comunitária, proceder à instrução e decidir os respectivos processos, aplicar as
sanções previstas na lei, adoptando medidas cautelares, quando necessário (art.º
7º n.º 2 al.s a) e b) dos referidos estatutos).
As infracções às normas previstas na Lei 18/03 de 11.06 e às normas comunitárias
constituem contra-ordenação, nos termos do art.º 42º do mencionado diploma,
puníveis com coima e sanção acessória de publicitação da infracção (art.º 45º).
Determina o art. 19º do mesmo diploma que os procedimentos sancionatórios, sem
prejuízo do disposto na mencionada lei, seguem o regime geral dos ilícitos de
mera ordenação social, ou seja, a determinação da aplicação do referido regime é
feita, tendo em atenção, antes de mais, as especificidades da lei da
concorrência (Lei 18/03).
Tendo em conta o referido, analisemos as regras de aplicação do direito
subsidiário ao RGCO. Determina o art.º 41º deste regime que: “Sempre que o
contrário não resulte desde diploma, são aplicáveis devidamente adaptados os
preceitos reguladores do processo criminal”.
Vejamos então a questão suscitada, tendo em atenção os referidos graus a
percorrer, e a premissa de que estamos no âmbito de aplicação de direitos
subsidiários.
Determina o art.º 61º n.º 1 al. c) do Cód. Proc. Penal, que o arguido goza em
qualquer fase do processo e, salvas as excepções da lei, dos direitos de: “…não
responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe
forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar”. É
esta a norma invocada pela arguida.
Na espécie, foram solicitados à arguida documentos e informações ao abrigo do
disposto nos artºs 17º n.º 1 al. a) e 18º da Lei da Concorrência, que
determinam, respectivamente que:
“[…]”.
Importa ainda citar, relativamente a esta matéria o disposto no art. 43º n.º 3
al. b) da Lei da Concorrência que determina que: Constitui contra-ordenação
punível com coima que não pode exceder, para cada uma das empresas, 1 % do
volume de negócios do ano anterior (...) a não prestação ou a prestação de
informações falsas, inexactas ou incompletas em resposta a pedido da Autoridade,
no uso dos poderes sancionatórios ou de supervisão”.
Ora na espécie, considerando o raciocínio feito anteriormente, revela-se
necessário e admissível recorrer às regras processuais penais, designadamente,
em concreto, à regra referida? A resposta tem de ser necessariamente negativa.
Existem normas próprias que regulam a questão, punindo designadamente a omissão
da conduta. Existindo estas normas, não é necessário, nem admissível, recorrer a
normas aplicáveis subsidiariamente, por não se dever passar do referido primeiro
grau de aplicação. Ou seja, o referido direito ao silêncio não é aplicável e não
é aplicável justificadamente, em nosso entender, considerando as diferenças
entre os direitos em análise e o papel e funções da Autoridade da Concorrência
referidas supra.
Quanto à suscitada inconstitucionalidade, verifiquemos antes de mais o disposto
nos normativos constitucionais citados:
Determinam, respectivamente:
Art.º 1º da Constituição que: “Portugal é uma República soberana, baseada na
dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma
sociedade livre, justa e solidária”;
Art.º 20.º n.º 4: “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja
objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”:
Art.º 32º nºs 2: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado
da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível
com as garantias de defesa”;
8-“São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da
integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no
domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”:
10 “Nos processos de contra-ordenação, bem como em quaisquer processos
sancionatórios, são assegurados ao arguido, os direitos de audição e defesa”.
Analisemos com particular cuidado o disposto no citado n.º 10, face à posição da
arguida na invocação da alegada inconstitucionalidade.
Referem com interesse, relativamente a esta norma, Jorge Miranda, Rui Medeiros,
em Constituição Portuguesa Anotada que: “O n.º 10 garante ao arguido em
quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e de
defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção,
contra-ordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar, ou qualquer
outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e, possa defender-se das
imputações que lhe são feitas (...) A Constituição proíbe absolutamente a
aplicação de qualquer tipo de sanção sem que ao arguido seja garantida a
possibilidade de se defender” (Tomo I. Coimbra Editora. pág. 363).
Ou seja, se é certo que resulta da norma citada que o legislador pretendeu a
aproximação referida pela arguida, essa aproximação ao Direito Processual Penal,
a nível constitucional, foi restringida, tal como se constata da interpretação
do normativo, que consagra “apenas”, constitucionalmente, a nível dos referidos
processos, os direitos de audiência e defesa ou seja, tal como referem os AA
referidos, o direito de o arguido ser previamente ouvido e o direito de se poder
defender (e não quaisquer outros. designadamente o referido direito ao
silêncio), não resultando desta consagração (audiência e defesa) qualquer
repetição por se tratar do exercício de dois direitos claramente distintos.
No que respeita a esta matéria, importa citar o referido no Acórdão do Tribunal
Constitucional 278/99 (em www.tribunalconstitucional.pt/acordaos) “No domínio do
processo contra-ordenacional, este Tribunal tem-se pronunciado no sentido de uma
não estreita equiparação entre esse ilícito e o ilícito criminal (cfr. acórdão
n.º 158/92), sem deixar, no entanto, de sublinhar a necessidade de serem
observados determinados princípios comuns que o legislador contra-ordenacional
será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que
aquele que lhe caberá em matérias de processo penal”, como se escreveu no
acórdão n.º 469/97, publicado no mesmo jornal oficial, II. Série de 16.10.1997.
Na verdade, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional subtrai-o
às mais “rigorosas exigências de determinação válidas para o ilícito penal”
(Maria Fernanda Palma e Paulo Otero “Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera
Ordenação Social in “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
Vol. XXXVII 2. 1996. pág. 564) e isto (acrescentamos nós) independentemente das
opções legislativas mais ou menos correctas ou criteriosas do legislador.
Ora tendo em atenção o supra referido e as normas constitucionais invocadas, não
se vislumbra, em nosso entender, qualquer violação de normas ou princípios
constitucionais pela interpretação normativa posta em crise.
Antes de mais, no que respeita ao mencionado art.º 1, por não se alcançar
qualquer violação do consagrado no mesmo, designadamente dos seus princípios
declarativos.
Quanto ao art.º 20º n.º 4 que consagra o direito a um processo equitativo, não
se pode considerar o mesmo violado, apenas face à existência das normas em
apreço.
As normas em crise, tal como surgem, não afastam a efectividade do direito de
defesa, no processo, do arguido, bem como os princípios do contraditório e da
igualdade de armas ou seja igualdade processual, tendo em atenção que esta
última não é absolutamente incompatível com a atribuição ao Estado ou aos
poderes públicos de um tratamento processual diferenciado relativamente às
partes processuais em geral, desde que essa diferenciação não seja arbitrária,
irrazoável ou infundada e não envolva uma compressão excessiva do princípio da
igualdade de armas (cfr. entre outros Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs
516/94, 616/98, 688/98 e 153/02).
No que respeita ao art.º 32º, na parte citada pela arguida, importa ter em
atenção, o conteúdo e previsões constitucionais previstas nos mesmos e não as
interpretações da arguida, não sendo as normas referidas, por si só, violadoras
do princípio da presunção da inocência, dos meios de obtenção de prova ou dos
direitos específicos, nos termos supra referidos consagrados no n.º 10 do art.º
32º.
Conclui-se assim no sentido da não verificação das referidas
inconstitucionalidades, e concluindo nesse sentido, teremos de concluir
igualmente pela não verificação da invocada nulidade de obtenção de provas, por
as mesmas, desde logo, na parte que nos interessa, não terem sido obtidas
mediante tortura, coacção ou ofensa da integridade física ou moral ou ameaça com
medida legalmente inadmissível, mas sim através de um meio válido consagrado
pelo legislador, o disposto nos art.ºs 17º n.º 1 al. a) e 18º Lei 18/2003).
A este respeito importa citar com interesse a posição do Tribunal de Justiça, no
Acórdão (Quinta Secção) de 07.01.2004, Aalborg Portland e outros contra Comissão
das Comunidades Europeias, que refere, ainda que a propósito do Regulamento n.º
17, que no cumprimento das suas funções, deve a comissão velar para que os
direitos de defesa não sejam comprometidos no âmbito de processos de instrução
prévia, que possam ter carácter decisivo para a produção de provas de natureza
ilegal, de comportamentos de empresas susceptíveis de implicar a respectiva
responsabilidade. Acrescentando ainda que, a comissão não pode, no âmbito de um
pedido de informações, impor a uma empresa a obrigação de fornecer respostas
através das quais esta seja levada a admitir a existência da infracção cuja
prova cabe à comissão.
Ora, na espécie, analisando a questão por esta perspectiva, compulsada a
solicitação feita pela Autoridade à A. (fls. 62 e 63 do processo
administrativo), concluímos que a Autoridade apenas solicitou à A. elementos
documentais e informativos “objectivos”: cópias de tabelas, números de
associados, contactos e números de agentes de navegação, indicação das
associadas mais representativas do sector, indicação de empresas não associadas,
caracterização do mercado, indicação de volumes de negócios. Informações que a
serem prestadas, nos termos solicitados, não permitiam desde logo, de “per si”
levar a arguida a admitir a existência de uma infracção.
[…]
d) Aplicação da lei no tempo.
Concluindo-se pela prática da infracção importa analisar a lei aplicável à
punição da infracção, defendendo a arguida que o regime do Dec-Lei 371/93 é o
mais favorável, logo deveria ter sido o aplicado.
Vejamos:
Refere o art. 3.º do RGCO que “A punição da contra-ordenação é determinada pela
lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos
de que depende”.
De acordo com o disposto no art. 5º do mesmo diploma legal “O facto considera-se
praticado no lugar em que, total ou parcialmente e sob qualquer forma de
comparticipação, o agente actuou ou, no caso de omissão devia ter actuado, bem
como naquele em que o resultado típico se tenha produzido”.
Na espécie, o início da infracção punida, iniciou-se em 2001, encontrando-se à
data em vigor o Dec.-Lei 371/93 de 29.10.
As tabelas foram elaboradas, aprovadas e divulgadas até 2004 já na vigência da
Lei 18/2003 de 11.06.
Importa concluir no caso que estamos perante um ilícito contra-ordenacional
permanente, existindo uma conduta anti-jurídica mantida do tempo ou seja, o
momento da consumação perdura no tempo, e enquanto dura essa permanência, o
agente encontra-se a cometer a infracção.
Tal como referem claramente Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, posição,
com a qual concordamos: As contra-ordenações de carácter permanente (...)
inserem-se no campo de aplicação da lei nova, ainda que mais severa, desde de
que prossiga na sua vigência a conduta necessária à permanência do resultado.”.
Ou seja perdurando no tempo a consumação da infracção a mesma deve ser punida
ainda que mais severamente à luz da lei nova e não à luz da lei mais favorável,
uma vez que o agente à luz da lei nova encontra-se a cometer a infracção
(diversamente do que sucede nas contra-ordenações instantâneas em que o
resultado fica definido logo que cometidas). Continuando o agente a cometer a
infracção à luz da lei nova, ainda que mais gravosa, não deverá o mesmo, como
defendem os referidos autores, beneficiar da lei mais favorável.
Não tem assim razão de ser o afirmado pela arguida relativamente ao erro de
direito relativo à aplicação da lei no tempo.
Não assiste igualmente razão à arguida na invocada inconstitucionalidade, não se
alcançando qualquer violação do princípio da culpa, tendo em atenção que a
arguida cometeu a infracção na vigência da lei antiga e da lei nova.
[…]”
Ainda inconformada, a A. recorreu desta sentença para a Relação de Lisboa,
alegando designadamente que “a norma que resulta da interpretação conjugada dos
artigos 17.º, n.º 1, alínea a), 18.º e 43.º, n.º 3, da Lei n.º 18/2003, no
sentido de obrigar o Arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob
pena de coima, determinadas informações e documentos, é inconstitucional, por
violação dos artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 4 e 32.º, n.ºs 2, 8 e 10 da CRP” e que
“qualquer interpretação do artigo 3.º, n.º 1 e 2, do RGCO, no sentido de que a
infracção permanente fica integralmente sujeita à lei nova, ainda que mais
desfavorável ao Arguido, viola o princípio da culpa, o qual vem consagrado nos
artigos 1.º, 2.º, 25.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, e 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, todos da CRP,
pelo que redunda em norma materialmente inconstitucional”.
Mas a Relação de Lisboa, por acórdão de 15 de Março de 2007, negou provimento ao
recurso, confirmando integralmente a sentença do Tribunal do Comércio de Lisboa.
Pode ler-se no acórdão, na parte que para agora releva, o seguinte:
“ […]
Seguindo um critério de lógica e cronologia preclusivas, começaremos por
apreciar a questão suscitada no recurso interlocutório, ou seja, se o despacho
recorrido, constante de fls. 6860 a 6862, que determinou a manutenção da
confidencialidade de determinadas peças processuais, ao abrigo do disposto no
art. 18 n.º 1 – d) e 26 nº 5 da L.18/2003 de 11/06, viola o disposto no artº 32
da C.R.P.
Do despacho recorrido resulta que à recorrente, apenas foi vedado o acesso aos
documentos constantes de fls. 1181 a 1240-A e 1241-A, por aplicação do disposto
nos artºs. 18 n. º1– d) e 26 nº 5 da L. 18/2003 de 11/06.
Entende a recorrente que, por esse facto, foi afectado o seu direito de defesa.
Cremos não lhe assistir razão.
Desde logo, porque à recorrente foi-lhe dado conhecimento de todos os aspectos
relevantes para a decisão, nas matérias de facto e de direito, tendo sido
notificada para exercer o seu direito de defesa e assim o fez, respondendo ao
que lhe foi imputado,
O facto de existirem documentos nos autos, a que a arguida não teve acesso, não
permite concluir sem mais que o seu direito de defesa não foi exercido, tanto
que, tal prova documental nem sequer foi determinante, atenta a fundamentação
constante da sentença, quanto à fundamentação da matéria de facto, para a sua
condenação.
Por outro lado, o direito de confidencialidade de informações e documentos, está
expressamente consagrado na Lei da Concorrência — art.º 18º n.º 1 al. d) e 26º
n.º 5 e não nos parece que, o mesmo viole o direito de defesa do arguido.
A jurisprudência citada pela recorrente (teor da doutrina que perpassa pelo
Assento n.º 1/2003, de 28/11/2002, publicado in D.R. Série 1-A, de 25/01/2003)
não contempla os casos em que o conhecimento de certos elementos processuais é
vedada, por imperativo legal, a certos intervenientes.
De acordo com tal doutrina “I – Quando, em cumprimento do disposto no artigo 50º
do RGCO, o órgão instrutor optar, no termo da instrução contra-ordenacional,
pela audiência escrita do arguido, notificá-lo-á para – no prazo que o regime
específico do procedimento previr ou, na falta deste, em prazo não inferior a
dez dias – dizer o que se lhe oferecer (artigo 101 º, n.º 1, do Código de
Procedimento Administrativo).
II – A notificação fornecerá os elementos necessários para que o interessado
fique a conhecer todos os aspectos relevantes para a decisão, nas matérias de
facto e de direito (artigo 101º, n.º 2) e, na resposta, o interessado pode
pronunciar-se sobre as questões que constituem objecto do procedimento, bem como
requerer diligências complementares e juntar documentos (artigo 101º, n.º 3)”.
Ora in casu, a recorrente tomou conhecimento de todos os aspectos relevantes
para a decisão, tendo sido notificada para exercer o seu direito de defesa, o
que fez, não havendo, pois, violação de tal direito (no mesmo sentido, entre
outros: (Ac. do TCAS, de 19/11/2002, e Ac. do TCAS, de 11/05/2002, in,
www.tca.pt; e Ac. do TCAS, de 24/02/2005, in, www.tca.pt).
Estando o direito de confidencialidade de informações e documentos expressamente
consagrado nos artºs. 18 n.º 1 – d) e 26 nº 5 da Lei da Concorrência, que obriga
a entidade administrativa de guardar e fazer respeitar a confidencialidade das
informações prestadas por empresas ou outros intervenientes, o indeferimento da
permissão de exame a certos documentos confidenciais, não afecta os direitos de
defesa, sobretudo quando se não demonstra, que a decisão condenatória se baseou
em tais documentos para fundamentar a existência da infracção.
Em conformidade, mantendo-se o decidido no despacho de fls. 6860 a 6862,
improcede nesta parte o recurso interposto pela recorrente, A..
11 – RECURSO PRINCIPAL:
Para a apreciação das questões suscitadas neste recurso, relembremos o teor da
decisão condenatória.
[…]
12 – Cumpre Apreciar e Decidir:
[…]
As questões suscitadas pela recorrente, como já se observou, são:
a) - nulidade das provas obtidas, por violação do direito ao silêncio, por
entender a recorrente, ser inconstitucional a norma que resulta da aplicação
conjugada dos artºs. 17 nº 1 – c); 18 e 43 nº 3 da L. 18/2003, por contender com
os artºs. 1, 2, 20 n.º 4 e 32 n.º 2,
8 e 10 da C.R.P.);
b) - nulidade resultante da falta de determinação do tipo subjectivo da
infracção imputada.
c) - nulidade do processo, logo em fase administrativa, decorrente da invocação
tardia pela autoridade administrativa de documentação constante do processo
desde Outubro de 2004;
d) - nulidade do processo decorrente da não disponibilização à recorrente, na
fase administrativa, de elementos documentais que já constavam do procedimento
quando da resposta à nota de ilicitude e da impugnação judicial.
e) - incorrecta interpretação jurídica das consequências que resultam de um
certificado negativo/isenção emitido pela Comissão Europeia ao abrigo do
Regulamento (CEE) nº 17;
f) - determinação da medida da coima aplicada, que a recorrente entende não
corresponder ao volume de negócios alcançados, que no seu entender serão de
18.294.838,40 e não 59.793.685,40, a que corresponderia a coima de 39.669,79€.
13 – Quanto a estas questões, algumas das quais suscitadas no recurso de
impugnação judicial, o Tribunal recorrido decidiu-as da seguinte forma:
[…]
14 - Cumpre Decidir:
Quanto a estas cinco questões suscitadas pela recorrente no recurso de
impugnação judicial e neste, o Tribunal recorrido já as analisou, da forma supra
transcrita, com profundidade bastante.
Ademais, todos os dados factuais e jurídicos, bem como o discurso
lógico-discursivo e decisório correspondente, se encontram inequivocamente
enunciados e descritos no aresto reclamado.
E o raciocínio no mesmo plasmado, quanto a tais questões, revela-se
perfeitamente cristalino e clarividente, por forma a que este tribunal ad quem,
o subscreve integralmente.
15 - Quanto à determinação da medida da coima aplicada:
[…]
Decisão:
Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acordam os mesmos Juízes, em
conferência, em rejeitar os recursos, por manifestamente improcedentes,
confirmando a sentença recorrida.
[…]”
2.
É deste acórdão que a recorrente interpõe o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada pela
Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro) suscitando três questões de
inconstitucionalidade que identifica desta forma no requerimento de
interposição:
– A (in)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação conjugada dos
artigos 17.º, n.º 1, alínea a), 18.º e 43º, n.º 3, da Lei n.º 18/2003, no
sentido de obrigar o Arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob
pena de coima, determinadas informações e documentos, por violação dos artigos
1.º, 2.º, 20º, n.º 4 e 32º, nºs 2, 8 e 10 da CRP.
– A (in)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo 3.º,
n.º 1 e 2, do RGCO, no sentido de que a infracção permanente fica integralmente
sujeita à lei nova, ainda que mais desfavorável ao arguido, por violação do
princípio da culpa, o qual vem consagrado nos artigos 1.º, 2.º, 25º, n.º 1,
27.º, n.º 1, e 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, todos da CRP.
– A (in)constitucionalidade da norma que resulta da interpretação do artigo
18.º, n.º 1, alínea d), e do artigo 26.º, n.º 5, ambos da Lei n.º 18/2003, no
sentido de que o Arguido possa ser julgado e condenado em processo de
contra-ordenação, sem conhecer a totalidade dos elementos probatórios que foram
reunidos durante a fase de instrução do processo, e que constam desse mesmo
processo, por violação do artigo 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 10, e do artigo 18.º, n.º
2, ambos da Constituição.
O recurso foi recebido. Notificada para produzir alegações, a recorrente
rematou-as com as seguintes conclusões:
“ […]
1. No âmbito da aplicação da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, que estabelece o
regime jurídico da concorrência, e em sede de processo contra-ordenacional, a
Autoridade da Concorrência solicitou, ao abrigo dos artigos 17.º, n.º 1, alínea
a), 18.º, e 43.º, n.º 3, da referida lei, à Arguida um conjunto de informações e
de documentos, ameaçando com a aplicação de uma coima de valor especialmente
elevado.
2. A participação do arguido no processo contra-ordenacional é sempre limitada
pelo integral respeito pela sua vontade, ao longo de todo o procedimento, quer
estejamos em sede de inquérito, de instrução ou de julgamento – sendo este
sujeito e não objecto do processo a sua posição há-de ser sempre de livre e
esclarecida declaração e participação, não podendo, em consequência, ser
penalizado pelo silêncio a que se reserve.
3. Nestes termos, fica proibida a aplicação de uma coima, ainda mais de uma
medida sancionatória, com o intuito de obrigar o arguido a colaborar, sem
qualquer tipo de reservas, na sua auto-incriminação perante a autoridade
administrativa.
4. Contudo, o disposto nos artigos 17.º, n.º 1, alínea a), 18.º e 43.º, n.º 3 da
Lei n.º 18/2003, interpretados de forma conjugada, vêm excepcionar o referido
regime previsto no RGCOC (artigo 41.º, ex vi do artigo 22.º, n.º 1, da Lei n.º
18/2003), por remissão para o artigo 61.º, n.º 1, alínea c), e 191.º, n.º 1,
ambos do CPP, determinando que, sob pena de aplicação de coimas o Arguido tem a
obrigação de revelar com verdade e de forma completa todas e quaisquer
informações que lhe sejam solicitadas pela Autoridade da Concorrência.
5. Tais normas contendem com o privilégio da não auto-incriminação (nemo tenetur
se ipsum accusare) cuja consagração constitucional decorre dos artigos 1.º,
20.º, n.º 4 e 32.º, 2, 8 e 10 da CRP, bem como do artigo 6.º da CEDH.
6. Os direitos processuais dos arguidos em processo de contra-ordenação passaram
a ter assento no texto da Lei Fundamental, no respectivo artigo 32.º, n.º 10,
com a revisão constitucional de 1989, tendo essa norma sido integrada em termos
sistemáticos, no âmbito das normas relativas às garantias dos arguidos em
processo crime e não – como em tese seria admissível – no Título IX da CRP
respeitante à Administração Pública, em particular no artigo 268.º da CRP – o
que se traduz na constatação de que o legislador constitucional pretende, no
plano das garantias processuais dos arguidos aproximar o Direito
Contra-Ordenacional do Direito Penal e Processual Penal, e dos respectivos
princípios estruturais e estruturantes, de entre os quais se contam o princípio
da legalidade (nullum crime sine lege e nulla poena sine lege), o princípio da
jurisdicionalidade (possibilidade de acesso a um Tribunal judicial) e o
princípio da presunção de inocência.
7. Um dos principais corolários do princípio da presunção de inocência do
arguido (para além do in dubio pro reo) consiste, exactamente, na recusa
absoluta de qualquer forma de tortura, coacção, agressão ou qualquer outra
medida (in casu, ameaça de aplicação de uma coima) que limite ou condicione a
liberdade do Arguido, no sentido de o obrigar, sem reservas, a prestar
declarações, disponibilizar documentos ou esclarecimentos sobre os factos em
causa no processo.
8. O arguido em processo contra-ordenacional, no âmbito da Lei n.º 18/2003, não
pode ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação, devendo todas as
provas obtidas ao abrigo da norma que resulta da interpretação conjugada dos
artigos 17.º, n.º 1, alínea a), 18.º e 43.º, n.º 3, da Lei n.º 18/2003 (norma
essa que é inconstitucional) ser consideradas nulas.
9. Ao contrário do sustentado pelo Tribunal a quo, existe, com consagração e
protecção constitucional, um verdadeiro “direito ao silêncio”, no âmbito dos
processos abertos por infracção ao regime concorrencial, padecendo as normas em
crise de inconstitucionalidade — como não podia, aliás, deixar de ser, no âmbito
de um processo leal, de um due process of law, que o Estado de direito
democrático postula. É absolutamente pacífico — é absolutamente pacífico na
doutrina e na jurisprudência — que o direito ao silêncio resulta directa e
imediatamente do princípio de presunção de inocência, o qual tem assento
expresso no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, pelo que toda e qualquer excepção ao
referido direito não poderá colocar em crise o conteúdo essencial desse mesmo
direito, por força do artigo 18.º da CRP.
10. A sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa, à qual o Tribunal da Relação
de Lisboa adere, estabelece que os elementos que a arguida foi obrigada a
fornecer traduzem elementos “objectivos” que não levam a arguida a reconhecer o
ilícito, no entanto, esses mesmos elementos “objectivos” são considerados
essenciais para fundamentar a prática do ilícito pela arguida, tal como resulta
do já acima exposto e que se dá aqui por reproduzido.
11. A constitucionalização, a partir de 1989, dos direitos de audiência e de
defesa no processo contra-ordenacional envolve um redignificação e projecção
desses direitos, tendo sido nesse sentido que operou também o Decreto-Lei n.º
244/95, que veio alterar o RGCOC, aproximando de forma notória o processo
contra-ordenacional do processo penal, concorrendo, no mesmo sentido, o Assento
de Fixação de Jurisprudência n.º 1/2003, do STJ.
12. A importância de que se reveste a produção de prova em processo
contraordenacional enquanto superação de um modelo inquisitorial do processo e
conquista basilar do processo de estrutura acusatória, tem subjacente a ideia da
existência de limites intransponíveis à prossecução da verdade, limites que se
traduzem nos conceitos e regime das proibições de prova.
13. As normas colocadas em crise não respeitam as exigências constitucionais de
adequação, de exigibilidade e de proporcionalidade, dado que ao abrigo da Lei
n.º 18/2003, a autoridade administrativa pode, tal como resulta expressamente do
artigo 17.º, n.º 1, alíneas c) e d), e n.º 2, da Lei n.º 18/2003, mediante
“despacho de autoridade judiciária que autorize a sua realização”, “proceder,
nas instalações das empresas ou das associações de empresas envolvidas, à busca,
exame, recolha e apreensão de cópias ou extractos da escrita e demais
documentação, quer se encontre ou não em lugar reservado ou não livremente
acessível ao público (…)”, sem colocar em crise o direito ao silêncio e à não
auto-incriminação da arguida.
14. Verifica-se, por conseguinte, que a Lei n.º 18/2003, confere outros meios à
Autoridade da Concorrência que lhe permitem, de igual modo, aceder a informações
e elementos relativos à arguida, sem colocar em crise os princípios informadores
do direito de defesa.
15. As normas em crise da Lei n.º 18/2003, são excessivas, inquisitoriais,
desadequadas e desproporcionadas para a prossecução das finalidades específicas
do processo contra-ordenacional e para os fins previstos na Lei da Concorrência,
dado que coarctam, sem qualquer tipo de limite, o direito à não
auto-incriminação, exigindo a disponibilização de forma completa, com verdade e
sem reservas, de todo e qualquer tipo de informação e de elementos solicitados
pela autoridade administrativa à arguida, incluindo aqueles que levam a
verificação dos pressupostos do ilícito contra-ordenacional, tal como sucedeu no
caso sub judice.
16. Nestes termos, deve ser declarada a inconstitucionalidade da norma que
resulta da interpretação conjugada dos artigos 17.º, n.º 1, alínea a), 18.º e
43.º, n.º 3, da Lei n.º 18/2003, no sentido de obrigar o arguido a revelar, com
verdade, sem reservas e de forma completa, sob pena de coimas, determinadas
informações e documentos, por violação dos artigos 1.º, 2.º, 20.º, n.º 4 e 32.º,
n.ºs 2, 8 e 10 da CRP, bem como do artigo 6.º da CEDH.
17. A infracção contra-ordenacional nos presentes autos foi caracterizada como
permanente, tendo tido início em 2001, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 371/93
(correspondendo o montante máximo da coima abstractamente aplicável, ao abrigo
do respectivo artigo 37.º, a 200.000.000$00) e terminado em 2004, já na vigência
da Lei n.º 18/2003 (equivalendo, neste último caso, o montante máximo da coima
abstractamente aplicável a 10% do volume de negócios agregado anual das empresas
associadas da arguida que hajam participado no comportamento proibido, no caso
sub judice 5.973.368,54 euros).
18. Na infracção permanente existe uma só acção, uma só resolução delitual,
tendo a (alegada) consciência da ilicitude sido formada pela arguida na vigência
do Decreto-Lei n.º 371/93, sendo certo que o conhecimento da proibição legal é
sempre indispensável para que se tenha acesso à consciência da ilicitude, uma
vez que o comportamento subjacente é axiologicamente neutro.
19. A infracção teve início em 2001, tendo a arguida actuado durante dois anos e
meio ao abrigo da vigência do Decreto-Lei n.º 371/93, sendo que o comportamento
prolongou-se ao abrigo da Lei n.º 18/2003 apenas durante seis meses, pelo que a
aplicação a todo o alegado comportamento da Lei n.º 18/2003, traduz uma violação
do princípio da culpa e da proporcionalidade, visto que implica a aplicação de
lei mais gravosa do que aquela que estava em vigor no momento em que a arguida
formou a consciência da ilicitude da sua conduta.
20. Para tal conclusão concorrem igualmente os princípios – que são gerais e
estruturantes de qualquer ordenamento jurídico sancionatório – do tratamento
mais favorável do arguido. O qual, se tem aplicação na situação em que a lei
mais favorável é posterior à consumação do facto ilícito, por maioria de razão,
deverá também ter aplicação quando a lei mais favorável é contemporânea do facto
ilícito.
21. Pelo que qualquer interpretação do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do RGCOC, no
sentido de que a infracção permanente fica integralmente sujeita à lei nova,
ainda que mais desfavorável ao arguido, para além de violar o artigo 7.º, n.º 1,
da CEDH, viola o princípio da culpa, o qual vem consagrado nos artigos 1.º, 2.º,
25.º, n.º 1, 27.º, n.º 1, 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, todos da CRP.
22. No âmbito da Lei n.º 18/2003, especificamente no âmbito do procedimento
contra‑ordenacional, a partir do momento da notificação da Nota de Ilicitude
(Acusação), o arguido tem de ter acesso, sempre que o solicite, aos elementos
probatórios do processo que poderão alicerçar e fundamentar – ainda que, em
concreto, possam vir a ser considerados como não relevantes – a decisão final.
23. Ainda que o processo contra-ordenacional não assuma a complexidade do
processo penal, não pode revestir uma estrutura inquisitória que atente às
garantias fundamentais consagradas nos artigos 32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 10, e 18.º,
n.º 2, ambos da CRP. Destarte, as formas do exercício do direito de defesa sob a
vertente da total aplicação do contraditório são, como tal, um direito
fundamental do arguido do processo de contra‑ordenação que tem lugar perante um
Estado de direito.
24. No processo que suscitou a presente inconstitucionalidade normativa, a
autoridade administrativa e o Tribunal a quo, tiveram contudo, entendimento
diverso, dado que foi precludido o direito de exercer o contraditório, aquando
da Resposta à Nota de Ilicitude (Acusação) e da Impugnação Judicial,
impedindo-se o acesso da arguida a elementos documentais constantes do processo,
que foram, aliás, invocados contra a arguida.
25. A questão de inconstitucionalidade normativa resulta da violação do artigo
32.º, n.ºs 1, 2, 5 e 10, e do artigo 18.º, n.º 2, ambos da CRP, uma vez que,
ainda que as decisões judiciais do presente processo (não) se tenham
fundamentado nos documentos e informações qualificadas como “confidenciais”, a
verdade é que a arguida viu postergada a possibilidade de verificar se esses
documentos tinham serventia e utilidade para a respectiva Defesa.
26. Num Estado de direito democrático, regido pelo due processo of law, não é
admissível que uma autoridade administrativa [que concentra as funções de
direcção do inquérito, da instrução (formulação da Acusação), condução da
instrução e prolação da decisão condenatória], ainda arrogue o poder de
determinar quais os elementos do processo que interessam (ou não) à defesa e que
podem (ou não) ser acedidos pela defesa – possibilidade essa confirmada, sem
delongas, pelo Tribunal do Comércio de Lisboa e pelo Tribunal a quo.
27. Qualquer interpretação do artigo 18.º, n.º 1, alínea d), e do artigo 26.º,
n.º 5, ambos da Lei n.º 18/2003, no sentido de que o arguido possa ser julgado e
condenado em processo de contra-ordenação, sem conhecer a totalidade dos
elementos probatórios que foram reunidos durante a fase de inquérito e de
instrução (aquando da resposta à Acusação, aquando da Impugnação judicial ou
aquando da audiência de julgamento), e que constam desse mesmo processo, redunda
em norma materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 32.º, n.ºs 1,
2, 5, e 10, e 18.º, n.º 2, ambos da CRP, bem como dos artigos 5 n.º 2 e 6.º n.ºs
1 e 3, alíneas a) e b), da CEDH.
[…]”.
O representante do Ministério Público neste Tribunal e a Autoridade da
Concorrência apresentaram as suas contra-alegações. O relator convidou a
recorrente a pronunciar-se sobre questão determinante do não conhecimento do
objecto do recurso. A recorrente respondeu nos termos que constam a fls. 7941 e
seguintes.
Fundamentação
3.
O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC cabe das decisões
dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido levantada
durante o processo, devendo o recorrente ter suscitado a questão da
inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer –
n.º 2 do artigo 72º da LTC. O recurso radica-se no pressuposto de que a norma
cuja conformidade constitucional o recorrente visa apreciar tenha sido
efectivamente aplicada na decisão recorrida enquanto seu fundamento, pois só
assim a eventual procedência do recurso terá utilidade, determinando a
pretendida alteração daquela decisão.
Daqui decorre que a tarefa do Tribunal se não estende à verificação dos
pressupostos de aplicação da norma impugnada, nem visa apurar se a interpretação
com que foi aplicada ao caso é correcta e própria. Isto é: não cabe ao Tribunal
Constitucional sindicar a decisão recorrida em si mesmo considerada,
incumbindo-lhe apenas averiguar, num primeiro passo, da verificação dos
pressupostos do recurso e, depois, se a norma que o tribunal recorrido aplicou
se mostra, ou não, desconforme com a Constituição.
Como resulta do requerimento de interposição de recurso e das alegações
apresentadas, o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a
conformidade constitucional de três normas cujo enunciado apresenta da seguinte
forma:
(i.) a interpretação conjugada dos artigos 17.º n.º 1 alínea a), 18.º, e 43º
n.º 3 da Lei n.º 18/2003 de 11 de Junho, no sentido de obrigar o arguido a
revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de aplicação de uma coima, as
informações e documentos que lhe sejam solicitados pela Autoridade da
Concorrência;
(ii.) a interpretação do artigo 18.º n.º 1 alínea d) e do artigo 26.º n.º 5,
ambos da Lei n.º 18/2003 de 11 de Junho, no sentido de que o arguido possa ser
julgado e condenado em processo de contra-ordenação sem conhecer a totalidade
dos elementos probatórios que foram reunidos durante a fase de instrução do
processo, e que constam desse mesmo processo;
(iii.) a interpretação do artigo 3.º n.ºs 1 e 2 do RGCO, no sentido de que a
infracção permanente fica integralmente sujeita à lei nova, ainda que mais
desfavorável ao arguido.
Ora, a decisão recorrida não aplicou as normas identificadas em (i.) e (ii.).
Com efeito, a Relação de Lisboa não aplicou os artigos 17.º n.º 1 alínea a),
18.º, e 43º n.º 3 da Lei n.º 18/2003 de 11 de Junho, no sentido de obrigar o
arguido a revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de aplicação de uma
coima, as informações e documentos que lhe sejam solicitados pela Autoridade da
Concorrência.
Como decorre do texto da sentença do Tribunal do Comércio de Lisboa, a cuja
fundamentação a decisão recorrida aderiu, entendeu-se que dos citados preceitos
decorre para o arguido a obrigação de revelar, com verdade e de forma completa,
sob pena de aplicação de uma coima, os elementos documentais e informativos
“objectivos”, que lhe sejam solicitados pela Autoridade da Concorrência, não
susceptíveis de “per si” levar o arguido a admitir a existência de uma
infracção.
Ou seja, o tribunal recorrido não adoptou o entendimento, que a recorrente
pretende ver sindicado, de que o arguido é obrigado a revelar, com verdade e de
forma completa, sob pena de aplicação de uma coima, “todo e qualquer tipo de
informação e de elementos solicitados pela autoridade administrativa” (cfr.
conclusões 4. e 15.).
Pelo contrário, entendeu o tribunal recorrido que a obrigação de o arguido
revelar, com verdade e de forma completa, sob pena de aplicação de uma coima,
informações e documentos se restringe a elementos objectivos que não permitem de
“per si” levar o arguido a admitir a existência de uma infracção.
Confrontada com esta questão, a recorrente respondeu. Invoca, essencialmente:
14. A referência aos «elementos documentais e informativos “objectivos”, que lhe
sejam solicitados pela Autoridade da Concorrência, não susceptíveis de “per si”
levar o arguido a admitir a existência da infracção», que pode ser encontrada na
sentença recorrida, funciona como mero obiter dictum, que visa, apenas,
confirmar o alegado bem fundado da posição do Tribunal do Comércio à luz da
jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
Contudo, não é certo que a interpretação retirada pelo tribunal recorrido da
disposição legal em causa constitua um mero obiter dictum. Na verdade, tal
elemento é essencial à norma e sem ele não é possível identificar, com o
necessário rigor, o sentido com que foi aplicada; é que é exactamente esta a
questão de inconstitucionalidade que foi suscitada pela recorrente, e que agora
é apresentada ao Tribunal conjuntamente com a invocação do chamado 'privilégio
da não auto-incriminação' que garantiria que o arguido 'não pode ser obrigado a
contribuir para a sua própria incriminação', como sustenta na sua alegação. A
questão apresenta-se, por isso, totalmente ligada à virtualidade de os elementos
pedidos pela autoridade administrativa fundamentarem a incriminação do
apresentante. Ora, é a essa questão que o tribunal respondeu na fórmula acima
descrita, que altera radicalmente o seu alcance preceptivo; a norma enunciada
pela recorrente não coincide, portanto, com aquela que foi aplicada pelo
tribunal recorrido.
O Tribunal recorrido também não aplicou o artigo 18.º n.º 1 alínea d) e o artigo
26.º n.º 5 ambos da Lei n.º 18/2003 de 11 de Junho, com o sentido que a
recorrente enuncia, ou seja, no sentido de que o arguido pode ser julgado e
condenado em processo de contra-ordenação sem conhecer a totalidade dos
elementos probatórios que foram reunidos durante a fase de instrução do
processo, e que constam desse mesmo processo.
O que o Tribunal recorrido entendeu, como decorre do texto da decisão do
Tribunal do Comércio de Lisboa e do acórdão da Relação de Lisboa, é que o
arguido em processo de contra-ordenação pode não ter acesso às informações que
foram recolhidas pela autoridade administrativa numa fase inicial do
procedimento, com a menção de confidencialidade devidamente fundamentada pelas
empresas que as forneceram, mas que não são usadas como elementos probatórios da
existência e prática da infracção imputada ao arguido.
Na sua resposta a recorrente reconhece que a decisão recorrida não se baseou
'nos documentos e informações qualificados como confidenciais'. Sustenta, ainda
assim, que não tendo podido consultar esses elementos, ficou impedida de
verificar 'se tinham serventia e utilidade para a sua defesa'. Ora, assim
equacionada, a questão é bem diversa da que é apresentada pela proposição
normativa invocada pela recorrente: ao invocar o desconhecimento dos elementos
probatórios que constam do processo, a recorrente está obviamente a referir-se a
outra realidade, que não aquela que a decisão recorrida sufragou, pois não pode
haver dúvida alguma que uma coisa são elementos probatórios, outra, bem diversa,
são elementos constantes de documentos e informações qualificados como
confidenciais, recolhidos no procedimento administrativo, que não fundamentaram
a decisão sancionatória.
Assim, não coincidindo estas interpretações normativas com aquelas que foram
efectivamente aplicadas pela decisão recorrida, não pode conhecer-se, na parte
correspondente, do objecto do recurso.
Quanto à interpretação enunciada em (iii.) verifica-se que a recorrente,
alegando que na infracção permanente existe uma só resolução delitual, tendo a
(alegada) consciência da ilicitude sido formada pela arguida na vigência do
Decreto-Lei n.º 371/93, imputa a inconstitucionalidade, por violação do
princípio da culpa, da proporcionalidade, e do tratamento mais favorável ao
arguido à aplicação, pela decisão recorrida, da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho,
“a todo o alegado comportamento”, por “implicar a aplicação de lei mais gravosa
do que aquela que estava em vigor no momento em que a arguida formou a
consciência da ilicitude da sua conduta” (cfr. conclusões 18. e 19.).
Como já se recordou, compete ao Tribunal, no âmbito do recurso disciplinado pela
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, fiscalizar a conformidade
constitucional das normas aplicadas na decisão recorrida como razão de decidir.
A jurisprudência do Tribunal é fértil na enunciação de limites ao poder
jurisdicional do Tribunal, circunscrito, como está, à aludida questão de
natureza normativa; são, por isso, dispensáveis mais aprofundadas considerações
sobre a matéria, interessando agora apenas sublinhar que é pacífico o
entendimento de que ficam obrigatoriamente de fora da sindicância do Tribunal as
decisões jurisdicionais em si mesmas consideradas, ou seja, o conteúdo típico
das determinações jurisdicionais, a actividade relacionada com a selecção dos
factos adquiridos no processo e com a escolha do direito aplicável. Mas é útil
recordar que nem todos os passos lógicos que conduzem à decisão são sindicáveis
pelo Tribunal Constitucional. E não será certamente por o recorrente enunciar
tais ponderações com uma aparência de 'norma' que o Tribunal ganha competência
para sindicar directamente as decisões recorridas.
É o que ocorre com a questão em análise.
Ao pretender fazer avaliar uma 'norma' que a recorrente retira isoladamente do
teor da decisão recorrida segundo a qual 'a infracção permanente fica
integralmente sujeita à lei nova, ainda que mais desfavorável ao arguido', a
recorrente pretende sindicar, exactamente, a opção do tribunal pelo direito
aplicável e não a norma concretamente aplicada, que fica, em tal formulação,
totalmente encoberta. É certo que o enunciado assim apresentado denuncia um
conteúdo facilmente sujeito a uma apreciação negativa face aos parâmetros
constitucionais habitualmente invocados neste tipo de matérias. Mas a verdade é
que essa constatação alerta o Tribunal para a circunstância de, ao invés da
pretensa norma, o enunciado representar, afinal, a censura que a recorrente
formula contra uma decisão que lhe é desfavorável.
Ou seja, não obstante a recorrente sustentar que pretende ver apreciada a
inconstitucionalidade de uma determinada interpretação normativa do artigo 3.º,
n.º 1 e 2, do RGCO – a de que a infracção permanente fica integralmente sujeita
à lei nova, ainda que mais desfavorável ao arguido –, a verdade é que,
desacompanhada a pretensão da norma efectivamente aplicada na decisão recorrida,
a invocada inconstitucionalidade passa a referir-se a essa própria decisão na
parte em que decidiu qual a lei aplicável à punição da infracção.
Com efeito, o que se pretende essencialmente é que o Tribunal Constitucional
aprecie se foi correcto o entendimento do tribunal recorrido de que “perdurando
no tempo a consumação da infracção a mesma deve ser punida ainda que mais
severamente à luz da lei nova e não à luz da lei mais favorável”.
Nestes termos, estando em causa a inconstitucionalidade da própria decisão
judicial, também nesta parte não pode conhecer-se do objecto do recurso.
Decisão
4.
Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não conhecer do objecto do
recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 29 de Abril de 2009
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Maria João Antunes
José Borges Soeiro (de harmonia com a declaração que junto,
relativamente ao ponto i) i) i).
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Dissenti da decisão que fez vencimento, no que se refere ao não conhecimento do
recurso, relativo à matéria enunciada como i), i), i), porquanto considero que
se está perante uma questão de constitucionalidade normativa.
Com efeito, a recorrente pretende sindicar a opção do tribunal pelo direito
aplicável, quando refere “o que se pretende essencialmente é que o TC aprecie se
foi correcto o entendimento do tribunal recorrido de que ‘perdurando no tempo a
consumação da infracção a mesma deve ser punida ainda que mais severamente à luz
da lei nova e não à luz da lei mais favorável’”.
Na sua alegação de recurso, para este Tribunal, exarou a seguinte conclusão (sob
o n.º 21):
“Pelo que qualquer interpretação do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2 do RGCO, no sentido
de que a infracção permanente fica integralmente sujeita à lei nova, ainda que
mais desfavorável ao arguido, para além de violar o artigo 7.º n.º 1 da CEDH,
viola o princípio da culpa, o qual vem consagrado nos artigos 1.º, 2.º, 25.º n.º
1, 27.º n.º 1 e 29.º n.ºs 1, 3 e 4, todos da CRP.”
Por sua vez, na resposta dada ao convite formulado pelo Exmo. Conselheiro
Relator, prévio à prolação do projecto de acórdão, a mesma recorrente, sob o
ponto 49, exarou o seguinte: “há uma circunstância que é inquestionável e
incontestável, e que é a seguinte: o Tribunal de primeira instância e o Tribunal
de recurso interpretaram o n.º 1 do artigo 3.º do RGCO (…) no sentido do
comportamento ilícito que “permanece” durante a vigência de duas leis
sucessivas, deve ser punido ao abrigo da lei recente, ainda que mais gravosa”.
Ora, na minha perspectiva, este é o sentido com que o aludido artigo 3.º n.º 1
do RGCO foi interpretado e aplicado pelas instâncias ao caso, em que se
considerou existir uma contra ordenação “permanente”.
Esta foi, assim, a interpretação normativa aplicada e a questão, assim
formulada, apresenta-se como uma verdadeira que não “encoberta”, questão de
constitucionalidade normativa.
Conheceria, pois, nesta parte do recurso.
José M. Borges Soeiro
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