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Processo nº 634/08
1ª Secção
Relatora: Conse4lheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Comarca de Leiria, em que é
recorrente o Ministério Público e recorrida Banco A., SA, foi interposto recurso
para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do artigo 70º da
Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
da sentença daquele Tribunal de 17 de Junho de 2008.
2. A decisão recorrida homologou a lista definitiva de créditos apresentada pelo
administrador da insolvência e graduou os créditos constantes de tal lista,
recusando a aplicação do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de
Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio mobiliário geral conferido à
Segurança Social prefere sempre ao penhor, ainda que de constituição anterior,
com fundamento em inconstitucionalidade. De tal lista constava um crédito do
Banco A., SA, garantido por penhor sobre a aplicação financeira “Obrigações de
Caixa Rendimento Cresce 6%” de que era titular a insolvente.
Para o que cumpre apreciar e decidir importa transcrever o seguinte:
«(…)
Nos termos do disposto no artigo 10º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio, os
créditos decorrentes das contribuições para a Segurança Social e os respectivos
juros de mora, gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os
créditos referidos na alínea a) do n° l do artigo 747° do Código Civil,
prevalecendo tal privilégio sobre qualquer penhor, ainda que de constituição
anterior.
Relativamente aos juros, o artigo 734º do Código Civil impõe uma limitação
temporal, determinando que o privilégio creditório só abranja os juros relativos
aos últimos dois anos, se forem devidos.
Contudo, tal limitação não se encontra prevista no Decreto-lei nº 103/80 de 9 de
Maio, pelo que, há-de entender-se que o legislador pretendeu consagrar um regime
próprio para os juros relativos aos créditos em causa e à margem do regime geral
consagrado no Código Civil.
*
Por sua vez, dispõe o artigo 666º nº 1 do Código Civil que, o penhor confere ao
credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se os houver,
com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa móvel, ou
pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca,
pertencentes ao devedor ou a terceiro.
O penhor só produz os seus efeitos pela entrega da coisa empenhada, ou de
documento que confira a exclusiva disponibilidade dela, ao credor ou a terceiro,
podendo a entrega consistir na simples atribuição da composse ao credor, se essa
atribuição privar o autor do penhor da possibilidade de dispor materialmente da
coisa (artigo 669º do Código Civil).
Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 679º do mesmo código, as regras
relativas ao penhor de coisas são extensivas ao penhor de direitos, com as
necessárias adaptações, em tudo o que não seja contrariado pela natureza
especial desse penhor ou pelo preceituado nos artigos 680º a 685º.
Nos termos do artigo 681º nº 1 do Código Civil, a constituição do penhor de
direitos está sujeita à forma e publicidade exigidas para a transmissão dos
direitos empenhados.
Ao que acresce que, nos termos conjugados dos artigos 397º e 402º do Código
Comercial, para que o penhor seja considerado mercantil é mister que a dívida
que se cauciona proceda de acto comercial, com ressalva das disposições
especiais que regulam os adiantamentos empréstimos sobre penhores feitos por
bancos ou outros institutos para isso autorizados.
Importando considerar, contudo, que o Decreto nº 32 032 de 22 de Maio de 1942,
estabeleceu, por seu turno, que, para que o penhor constituído em garantia de
créditos de estabelecimentos autorizados produza efeitos em relação a terceiros,
basta que conste de documento particular, ainda que o dono do objecto empenhado
não seja comerciante.
E que o penhor mercantil em relação ao crédito bancário é regulado igualmente
pelo Decreto-Lei 29833 de 17 de Agosto de 1939 e por força do qual, produz os
seus efeitos sem necessidade de o dono do objecto empenhado fazer a entrega dele
ao credor ou a outrem.
*
Ponderando o supra exposto, há que concluir que o privilégio creditório
mobiliário geral de que beneficiava o crédito do Estado, identificado no nº 1 da
alínea g), referente a IRS do ano de 2004, cuja data limite de pagamento ocorreu
no dia 12/10/2005, se extinguiu, atento a data da sua constituição e o disposto
no artigo 97º nº 1 alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas.
E o mesmo se refira relativamente ao crédito do Instituto de Segurança Social
identificado em e), relativo a contribuições em divida desde Outubro de 2004 até
Novembro de 2006.
*
Por outro lado, importa ainda aferir da preferência do crédito Instituto de
Segurança Social, IP – Centro Distrital de Segurança Social de Leiria,
identificado sob a alínea d), relativo a contribuições em divida desde Dezembro
de 2006 até Janeiro de 2008 relativamente ao crédito reclamado pelo Banco A.,
S.A. no montante de € 25.000,00 e identificado sob a alínea h), crédito
garantido por penhor sobre a aplicação financeira identificada como verba nº 1.
Como se referiu, nos termos do disposto no artigo 666º do Código Civil, o penhor
confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito, bem como dos juros, se
os houver, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa
móvel, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de
hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro.
Todavia, o legislador consagrou uma excepção no que se refere a tal preferência
legal, já que, expressamente previu no artigo 10º nº 2 do Decreto-lei nº 103/80,
de 9 de Maio, que o privilégio mobiliário geral conferido aos créditos da
segurança social prevalecessem sobre qualquer penhor, ainda que de constituição
anterior.
Assim, à partida, ainda que o penhor de que beneficia o crédito do Banco A.,
S.A. seja anterior, caberia graduá-lo após o referido crédito da Segurança
Social.
Cumpre, todavia, ter presente que, no acórdão do Tribunal Constitucional nº
363/2002 publicado no DR de 16/10/2002, decidiu-se declarar a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, por violação do principio da
confiança, das normas constantes do artigo 11º do Decreto-lei nº 103/80, de 9 de
Maio, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nelas
conferido à segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do
Código Civil.
Como ali se deixou expresso, citando outros arestos, o principio do Estado de
direito democrático, consagrado no artigo 2º da Constituição da Republica
Portuguesa, “postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas
expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações
inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se
poderia moral e razoavelmente contar”
Entre as razões fundamentadoras de tal decisão – para lá das razões que se
prendem com a segurança jurídica decorrente do registo predial – apontaram-se
razões que se prendem com o principio da confidencialidade tributária, o qual
impossibilita os particulares de previamente indagarem se as entidades com quem
contratam são ou não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
Ali se referiu igualmente que, “não se encontrando este privilégio sujeito a
limite temporal e atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo
qualquer conexão entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a
dívida (no caso à Segurança Social), ao contrário do que sucede com os
privilégios especiais referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua
subsistência, com a amplitude acima assinalada, implica também uma lesão
desproporcionada do comércio jurídico”.
E que o “princípio da confiança é violado na medida em que, gozando o privilégio
de preferência sobre os direitos reais de garantia, de que terceiros sejam
titulares, sobre os bens onerados, esses terceiros são afectados sem, no
entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer da existência do crédito,
protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus do privilégio, devido à
inexistência de registo”.
Como bem salienta MIGUEL LUCAS PIRES (Dos Privilégios Creditórios: Regime
Jurídico e sua Influência no Concurso de Credores, Coimbra, 2004, p. 132), “os
fundamentos utilizados pelos arestos que consideraram inconstitucional a
aplicação do regime do art.° 751.° aos privilégios imobiliários da Segurança
Social - a falta de publicidade a falta de conexão entre o bem sobre que recai a
garantia e a causa do crédito, a inexistência de limite temporal e a existência
de garantias alternativas - são perfeitamente extensíveis ao regime delineado
pelo n.° 2 do art.° 10.°para os privilégios mobiliários gerais.
Nem se diga que, pelo facto de se tratar de bens móveis e de estes não se
encontram sujeitos a registo nunca o titular de uma garantia real poderia, ao
constituir o seu direito, ter absoluta certeza quanto à inexistência de outra
garantia anterior.
Antes de mais, o argumento não procede quanto aos bens móveis sujeitos a
registo, mas mesmo relativamente aos demais não colhe, uma vez que a questão
aqui em causa prende-se com a prevalência de um privilégio geral - incidente
sobre bens móveis ou imóveis - sobre qualquer direito real de garantia, ainda
que anterior, com a consequente paralisação do direito de preferência inerente a
estes direitos reais”.
Subscrevendo-se, de igual forma, o entendimento vertido no acórdão do Tribunal
da Relação do Porto de 09/11/2006 (…)
É verdade que a conformidade constitucional do preceito em apreço foi já objecto
de apreciação, no acórdão nº 688/98 do Tribunal Constitucional, aí se tendo
decidido a sua não inconstitucionalidade.
Todavia, da análise de tal aresto ressalta que tal juízo foi sustentado,
essencialmente, à luz e por referência à invocada violação do direito
fundamental de acesso à justiça, consagrado no artigo 20º da Constituição da
Republica Portuguesa e do princípio da igualdade.
Destacamos, todavia, o voto de vencido ali expresso por MARIA DOS PRAZERES
BELEZA, a qual, de forma clara e profícua, entendeu que a norma objecto de
análise contraria os princípios constitucionais da protecção da confiança e da
proporcionalidade.
“Viola o princípio da protecção da confiança porque o exequente credor comum vê
o seu crédito ultrapassado por outros que sobre ele preferem, sem ter o ónus ou,
a mais das vezes, a mera possibilidade de os conhecer quando decide instaurar a
acção executiva, da qual frequentemente acaba por não tirar qualquer proveito.
Acresce que a preferência, tal como é conferida, não toma em conta a prioridade
relativa na constituição dos créditos, não tem limites temporais e não é objecto
de publicidade.
Infringe o princípio da proporcionalidade porque, apesar das características
apontadas, a preferência é absoluta, não permitindo a ponderação concreta do
sacrifício sofrido pelos credores em confronto, lesando sempre um deles
independentemente das circunstâncias do caso. Note-se que a Segurança Social
tem, como qualquer credor, o poder de tomar a iniciativa na instauração das
acções executivas para cobrança dos créditos de que é titular”.
Tudo para concluir que entendemos que as razões que motivaram a declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral, no acórdão do Tribunal
Constitucional nº 363/2002, publicado no DR de 16/10/2002, se mantêm vigentes e
são aplicáveis no que concerne à disposição constante do artigo 10º nº 2 do
Decreto-lei nº 103/80, de 9 de Maio, na interpretação segundo a qual o
privilégio mobiliário geral conferido à Segurança Social prefere sempre ao
penhor, ainda que de constituição anterior.
(…)
Nos termos do artigo 140º nº 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas, a graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para
os bens a que respeitam direitos reais de garantia e privilégios creditórios.
Assim, pelo produto da venda da aplicação financeira apreendida nos autos sob a
verba nº1, graduar-se-ão os créditos reconhecidos da seguinte forma:
1) O crédito do Banco A., S.A. no montante de € 25.000,00 identificado em
h), garantido por penhor e até ao valor de tal bem;
2) Os créditos reclamados pelo Instituto de Segurança Social, IP,
identificados em d), garantidos por privilégio creditório mobiliário geral, no
montante de € 2.247,79, sendo € 2.108,47 de capital e € 139,32 de juros de mora,
acrescidos de juros de mora vencidos após a data da insolvência e até ao valor
de tal bem;
(…)».
3. Notificado para alegar, o recorrente concluiu que:
«1º
Os privilégios creditórios gerais, mobiliários e imobiliários, não se configuram
actualmente como direitos reais de garantia, face ao disposto na lei civil,
estando desprovidos de sequela sobre os bens que oneram e de prevalência sobre
as garantias gerais que incidam sobre tais bens.
2º
A norma constante do n° 2 do artigo 100º[10º] do Decreto-Lei n° 103/80, de 08
[9] de Maio, ao conferir eficácia real ao privilégio mobiliário geral, outorgado
à Segurança Social, abrangendo todos os bens móveis existentes no património da
entidade devedora, susceptível de prevalecer sobre qualquer penhor; ainda que de
constituição anterior, afecta o princípio da confiança e da segurança no
comércio jurídico, ao possibilitar a existência de ónus ocultos sobre o
património do devedor, susceptíveis de precludir, em absoluto, um direito real
de garantia, constituído sobre bens determinados, ultrapassando a regra da
prioridade temporal na eficácia das várias garantias.
3º
Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
pela decisão recorrida».
4. Notificado para alegar, o recorrido não respondeu.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O Ministério Público requer a apreciação do nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº
103/80, de 9 de Maio, na interpretação de que o privilégio mobiliário geral
conferido aos créditos da Segurança Social prefere sempre ao penhor, ainda que
de constituição anterior, por referência ao princípio da confiança, consagrado
no artigo 2º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O artigo 10º (Privilégio mobiliário) tem a seguinte redacção:
«1 – Os créditos das caixas de previdência por contribuições e os respectivos
juros de mora gozam de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os
créditos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil.
2 – Este privilégio prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição
anterior».
A norma que é objecto do presente recurso foi recentemente apreciada no Acórdão
nº 64/2009 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt). O Tribunal
Constitucional decidiu não julgar inconstitucional o artigo 10º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, enquanto faz prevalecer sobre qualquer
penhor, ainda que de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que
gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros
de mora, com a seguinte fundamentação:
«2. Os créditos por contribuições devidas a caixas sindicais de previdência,
caixas de reforma ou de previdência e caixas de abono de família gozavam, já em
1951, do privilégio mobiliário geral que lhes era concedido pelo artigo 14º do
Decreto-Lei nº 38 538, de 24 de Novembro.
Posteriormente, o artigo 167º do Decreto-Lei nº 45 266, de 23 de Setembro de
1963, manteve o privilégio mobiliário geral dos créditos por contribuições
devidas às caixas sindicais de previdência, tendo sido, no entanto, questionada
a subsistência deste privilégio face ao texto do artigo 8º do Decreto-Lei nº 47
344, de 25 de Novembro de 1966, diploma que aprovou o Código Civil (sobre isto,
cf. Vaz Serra, “O privilégio mobiliário geral das caixas sindicais de
previdência”, Revista dos Tribunais, Ano 90º, nº 1875, 1972, p. 387 e ss. e
Pessoa Jorge, “Privilégio creditório a favor das instituições de previdência”,
Ciência e Técnica Fiscal, nºs 169-170, 1973, p. 67 e ss.).
As dúvidas foram definitivamente dissipadas com a publicação do Decreto-Lei nº
512/76, de 3 de Julho – diploma que tinha por objectivo definir as garantias que
assistiam aos créditos por contribuições do regime geral de previdência e aos
respectivos juros de mora –, cujo artigo 1º prescrevia que os créditos pelas
contribuições do regime geral de previdência e respectivos juros de mora gozam
de privilégio mobiliário geral, graduando-se logo após os créditos referidos na
alínea a) do nº 1 do artigo 747º do Código Civil, prevalecendo este privilégio
sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior.
Esta garantia dos créditos das caixas de previdência por contribuições e
respectivos juros de mora manteve-se no artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80,
diploma que estabeleceu o Regime Jurídico das Contribuições para a Previdência.
“O pagamento pontual das contribuições devidas às instituições de previdência é
absolutamente indispensável como fonte básica de financiamento das prestações da
segurança social” (ponto 1. da Exposição de motivos do diploma).
3. O Tribunal Constitucional já se pronunciou pela não inconstitucionalidade do
nº 1 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, concluindo que o privilégio
mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições
e os respectivos juros de mora tem justificação do ponto de vista
jurídico-constitucional (Acórdão nº 688/98, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido, cf. Acórdão nº 153/2002,
disponível no mesmo sítio, relativamente ao privilégio mobiliário geral
outorgado ao Estado para garantia de créditos fiscais provenientes de IVA e
respectivos juros compensatórios).
No Acórdão nº 688/98 escreveu-se, entre o mais, o seguinte:
«4.1. Definidos assim os contornos do princípio da igualdade, importa analisar
se a consagração do privilégio levado a efeito pelo artº 10º do D.L. nº 103/80,
tendo como pano de fundo (reitera-se) a par conditio creditorum estabelecida
pelo principal compêndio legislativo civil, é perspectivável como uma
arbitrariedade, irrazoabilidade ou algo carecido de fundamento material bastante
(ou, se se quiser, não estribado em motivo constitucionalmente próprio).
A resposta a esta questão deve, no entender do Tribunal, sofrer resposta
negativa.
Na realidade, de entre os direitos sociais, institui a Constituição o direito à
segurança social (nº 1 do artigo 63º), impondo como uma das tarefas do Estado
organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado (nº 2
do mesmo artigo).
Ora, não podendo aceitar-se que os recursos do Estado são ilimitados, e sabido
que é que uma importante parte dos réditos da segurança social advêm das
contribuições impostas para esse fim, designadamente a cargo ou da
responsabilidade das entidades patronais, não se afigura como irrazoável ou
injustificado que, havendo débitos surgidos pela não satisfação daquelas
contribuições, os correspectivos créditos venham a ser dotados de uma mais
vincada garantia de cumprimento das obrigações subjacentes.
A isto acresce, e decisivamente, que, de uma banda, sendo um privilégio
mobiliário geral, não incide ele sobre determinados ou concretos bens móveis do
devedor (desta arte postergando outros direitos reais de garantia - excepção
feita ao penhor - que sobre eles fosse constituído), e, de outra, que não está
em causa uma garantia dotada de sequela oponível a credores titulados por
garantias ou direitos reais sobre os bens objecto de penhora.
Daí que se não lobrigue qualquer excesso ou desproporção intolerável na
consagração desta forma de garantia especial da obrigação de cumprimento das
contribuições para a segurança social, antes, e como se viu, existindo um motivo
ou fundamento constitucionalmente adequado ou válido, alicerçado no artigo 63º
da Lei Fundamental, para tal consagração e que, referentemente à mencionada par
conditio creditorum, representa uma distinção de tratamento ou, pelo menos,
comporta uma certa forma de sacrifício para o credor comum não munido de
qualquer garantia especial».
Naqueles dois acórdãos foi feito um julgamento de não inconstitucionalidade de
normas que outorgam privilégios mobiliários gerais para garantia de créditos da
segurança social ou de créditos fiscais, fundado na ideia de que as finalidades
subjacentes ao sistema da segurança social e ao sistema fiscal justificam a
quebra da regra da par conditio creditorum, consagrada no artigo 604º, nº 1, do
Código Civil. Uma justificação de há muito avançada pela doutrina, nomeadamente
para sustentar a manutenção do privilégio mobiliário geral que garantia créditos
por contribuições devidas a instituições de previdência, face ao texto do artigo
8º do diploma que aprovou o Código Civil (cf., entre outros, Sousa Franco,
“Aspectos fiscais do novo Código Civil”, Ciência e Técnica Fiscal, nº 98, 1967,
p. 80 e s., Vaz Serra, loc. cit., p. 391 e Pessoa Jorge, loc. cit., p. 82 e
ss.).
4. Não obstante os privilégios creditórios da Segurança Social terem
justificação do ponto de vista jurídico-constitucional, o Tribunal
Constitucional julgou inconstitucional o artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80,
enquanto confere à Segurança Social um privilégio imobiliário geral, dotado de
sequela sobre todos os imóveis existentes à data da instauração da execução no
património do devedor, oponível independentemente do registo a todos os
adquirentes de direitos reais de gozo sobre os bens onerados (cf. acórdãos nºs
354/2000 e 561/2000, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). E declarou a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes do
artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, e do artigo 2º do Decreto-Lei
nº 512/76, de 3 de Julho, na interpretação segundo a qual o privilégio
imobiliário geral nelas conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos
termos do artigo 751º do Código Civil (Acórdão nº 363/2002, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt. No mesmo sentido, cf. Acórdão nº 362/2002,
disponível no mesmo sítio, que declara a inconstitucionalidade, com força
obrigatória geral, da norma constante, na versão primitiva, do artigo 104º do
Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, aprovado pelo
Decreto-Lei nº 442-A/88, de 30 de Novembro, e, hoje, na renumeração resultante
do Decreto-Lei nº 198/2001, de 3 de Julho, do seu artigo 111º, na interpretação
segundo a qual o privilégio imobiliário geral nele conferido à Fazenda Pública
prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do Código Civil).
No Acórdão nº 160/2000, uma das decisões que deu origem à declaração de
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, constante do Acórdão nº
363/2002, escreveu-se o seguinte:
«5. - É indiscutível que o legislador com as normas dos artigos 2º do
Decreto-Lei n.º 512/76 e 11º do Decreto-Lei n.º 103/80 pretendeu dar alguma
preferência aos créditos da Segurança Social ao determinar que os créditos ali
consignados sejam graduados logo a seguir aos do Estado e das autarquias locais,
referidos no artigo 748º do Código Civil.
No entanto, a interpretação que o acórdão recorrido fez destas normas, mediante
a aplicação do regime do artigo 751º do Código Civil, confere a este privilégio
a natureza de verdadeiro direito real de garantia, munido de sequela sobre todos
os imóveis existentes no património da entidade devedora das contribuições para
a previdência, à data da instauração da execução, e, atribui-lhe preferência
sobre direitos reais de garantia - a consignação de rendimentos, a hipoteca e o
direito de retenção - ainda que anteriormente constituídos.
Este privilégio, com esta amplitude, funciona à margem do registo (já que a ele
não está sujeito) e sacrifica os demais direitos de garantia consignados no
artigo 751º, designadamente a hipoteca - que é o caso dos autos.
Não se questiona que face à natureza, às finalidades e às funções atribuídas a
certos créditos de entidades públicas que visam permitir ao Estado a satisfação
de relevantes necessidades colectivas constitucionalmente tuteladas - como é o
caso da Segurança Social cujo imperativo constitucional resulta do artigo 63º -,
se possa conferir algum privilégio ao credor, expresso, nomeadamente, na quebra
do princípio da 'par conditio creditorum' (como se concluiu no do já citado
acórdão 688/98), nem, tão pouco, que se atribua um regime procedimental
específico para a cobrança coerciva de tais créditos (cfr. acórdãos 51/99
publicado no Diário da República IIª série, de 05/04/99, e 281/99, inédito).
6. - A orientação jurisprudencial que estes arestos reflectem não
pode, no entanto, sem mais, ser aplicada ao concreto caso, referente a um
privilégio imobiliário geral.
Com efeito, o princípio da protecção da confiança, ínsito na ideia de Estado de
direito democrático, postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas
expectativas que lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações
inadmissíveis, arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se
poderia moral e razoavelmente contar (cfr. inter alia, os acórdãos nºs. 303/90 e
625/98, publicados no Diário da República, II Série, de 26 de Dezembro de 1990 e
18 de Março de 1999, respectivamente).
A esta luz, pergunta-se – e os recorrentes fazem-no – que segurança jurídica,
constitucionalmente relevante, terá o cidadão, perante uma interpretação
normativa que lhe neutraliza a garantia real (hipoteca) por si registada,
independentemente de o ter sido em data posterior ao início da vigência das
normas em causa.
É que, por um lado, o registo predial tem uma finalidade prioritária que radica
essencialmente na ideia de segurança e protecção dos particulares, evitando ónus
ocultos que possam dificultar a constituição e circulação de direitos com
eficácia real sobre imóveis, bem como das respectivas relações jurídicas – que,
em certa perspectiva, possam afectar a segurança do comércio jurídico
imobiliário (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil. Reais, Coimbra, 1993, pág.
333; Isabel Pereira Mendes, “Repercussão no Registo das Acções dos Princípios do
Direito Registral e da Função Qualificadora dos Conservadores do Registo
Predial” in – O Direito, ano 123, 1991, págs. 599 e segs., maxime, pág. 604;
Paula Costa e Silva, “Efeitos do Registo e Valores Mobiliários. A Protecção
Conferida ao Terceiro Adquirente”, in – Revista da Ordem dos Advogados, ano 58,
1998, II, págs. 859 e ss., maxime pág. 862).
Por outro lado, o princípio da confidencialidade tributária impossibilita os
particulares de previamente indagarem se as entidades com quem contratam são ou
não devedoras ao Estado ou à Segurança Social.
Ora, não estando o crédito da Segurança Social sujeito a registo, o particular
que registou o seu privilégio, uma vez instaurada a execução com fundamento
nesse crédito privilegiado, ou que ali venha a reclamar o seu crédito, pode ser
confrontado com uma realidade – a existência de um crédito da Segurança Social –
que frustra a fiabilidade que o registo naturalmente merece.
Acresce que, não se encontrando este privilégio sujeito a limite temporal e
atento o seu âmbito de privilégio 'geral', e não existindo qualquer conexão
entre o imóvel onerado pela garantia e o facto que gerou a dívida (no caso à
Segurança Social), ao contrário do que sucede com os privilégios especiais
referidos nos artigos 743º e 744º do Código Civil, a sua subsistência, com a
amplitude acima assinalada, implica também uma lesão desproporcionada do
comércio jurídico.
Finalmente, ainda se dirá não se surpreender suporte razoável adequado para esta
desproporcionada lesão na tutela dos interesses da Segurança Social e no destino
das contribuições que esta deixou de receber, pois a Segurança Social dispõe de
meios adequados para assegurar a efectividade dos seus créditos, sem frustração
das expectativas de terceiros: bastar-lhe-á proceder ao oportuno registo da
hipoteca legal, nos termos do artigo 12º do Decreto-Lei n.º 103/80.
A interpretação normativa em sindicância viola, em conclusão, o princípio da
confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no
artigo 2º da Constituição da República».
Para além da remissão para os fundamentos desta decisão, pode ainda ler-se no
Acórdão nº 363/2002 que:
«(…) como se entendeu no acórdão nº 109/01 [02], tirado em plenário – ao
debruçar-se sobre a norma do artigo 104º do CIRS, quando interpretada no sentido
de que o privilégio imobiliário geral nela conferido prefere à hipoteca, nos
termos do artigo 751º do Código Civil (…) –, o princípio da confiança é violado
na medida em que, gozando o privilégio de preferência sobre os direitos reais de
garantia, de que terceiros sejam titulares, sobre os bens onerados, esses
terceiros são afectados sem, no entanto, lhes ser acessível o conhecimento quer
da existência do crédito, protegido que está pelo segredo fiscal, quer do ónus
do privilégio, devido à inexistência de registo».
Nos acórdãos mencionados, o Tribunal Constitucional apreciou normas que outorgam
privilégios imobiliários gerais para garantia de créditos da segurança social ou
de créditos fiscais, susceptíveis de preferir a direitos reais de gozo ou de
garantia, independentemente de registo prévio, concluindo pela
inconstitucionalidade por violação do princípio da confiança, ínsito no
princípio do Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP).
5. Porém, no Acórdão nº 193/2003 o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional
a norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº 103/80, de 8 de Maio,
interpretada em termos de o privilégio imobiliário geral nela conferido às
instituições de segurança social preferir à garantia emergente do registo da
penhora sobre determinado imóvel (no mesmo sentido, cf. Acórdãos nºs 231/2003 e
697/2004, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). Relativamente a esta
norma o Tribunal concluiu que a ponderação a efectuar entre os fundamentos da
existência do privilégio, por um lado, e a confiança dos cidadãos, por outro,
não pende no sentido de se considerar aquele como incompatível com a
Constituição. Ou seja, as razões que levaram este Tribunal a concluir pela
inconstitucionalidade da prevalência do privilégio sobre a hipoteca
anteriormente registada não valem, da mesma forma, relativamente a essa
prevalência face à penhora.
6. Nos presentes autos, a decisão recorrida foi no sentido de estas razões,
constantes do Acórdão nº 362/2002, valerem também para a norma que faz
prevalecer o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos da Segurança
Social por contribuições e os respectivos juros de mora sobre qualquer penhor,
ainda que de constituição anterior (artigo 10º, nº 2, do Regime Jurídico das
Contribuições para a Previdência). O tribunal recorrido aderiu expressamente às
razões que levaram o Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade,
com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 11º do Decreto-Lei nº
103/80, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral nela
conferido à Segurança Social prefere à hipoteca, nos termos do artigo 751º do
Código Civil. Para a sentença, a falta de publicidade, a falta de conexão entre
o bem sobre que recai a garantia e a causa do crédito, a inexistência de limite
temporal e a existência de garantias alternativas são fundamentos “perfeitamente
extensíveis ao regime delineado pelo nº 2 do artigo 10º para os privilégios
mobiliários gerais”.
Importa, por isso, começar por aferir se tais fundamentos são todos eles
perfeitamente extensíveis à norma que cumpre apreciar.
7. Antecipando a conclusão, é de afirmar que nem todos aqueles fundamentos são
extensíveis ao nº 2 do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80 e que o primeiro
fundamento não é perfeitamente extensível a esta disposição legal.
7.1. Nos autos que deram origem à decisão recorrida, o privilégio mobiliário
geral em causa tem um limite temporal – o decorrente do disposto no artigo 97º,
nº 1, alínea a), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, segundo
o qual com a declaração de insolvência os privilégios creditórios gerais
acessórios de créditos sobre a insolvência de que for titular a Segurança Social
constituídos mais de 12 meses antes da data do início do processo de insolvência
extinguem-se, passando os créditos que deles beneficiavam a créditos comuns. E
um tal limite, que a sentença recorrida aplica de forma expressa, pode
repercutir-se no juízo sobre a constitucionalidade da norma em apreciação, por
referência à proporcionalidade da lesão do comércio jurídico (cf. supra, ponto
4. da Fundamentação, na parte em que se transcreve o Acórdão nº 160/2000).
Por outro lado, a Segurança Social não dispõe relativamente aos bens móveis que
estão em causa nos presentes autos de meio equivalente ao previsto no artigo 12º
daquele Decreto-Lei – hipoteca legal sobre imóveis existentes no património das
entidades patronais. O que pode ter repercussão na apreciação da conformidade
constitucional da norma em causa, por referência à proporcionalidade da lesão do
comércio jurídico (cf. supra, ponto 4. da Fundamentação, na parte em que se
transcreve o Acórdão nº 160/2000).
7.2. O fundamento da falta de publicidade não é perfeitamente extensível ao nº 2
do artigo 10º do Decreto-Lei nº 103/80, na medida em que a fundamentação do
Acórdão nº 363/2002, a este propósito, nunca perdeu de vista a circunstância de
estar em causa uma garantia real (hipoteca) registada pelo credor. Face à
finalidade prioritária do registo predial e ao princípio da confidencialidade
tributária, o Tribunal concluiu que “não estando o crédito da Segurança Social
sujeito a registo, o particular que registou o seu privilégio, uma vez
instaurada a execução com fundamento nesse crédito privilegiado, ou que ali
venha a reclamar o seu crédito, pode ser confrontado com uma realidade – a
existência de um crédito da Segurança Social – que frustra a fiabilidade que o
registo naturalmente merece”.
Na norma em apreciação também se contrapõe ao privilégio conferido à Segurança
Social um direito real de garantia – o penhor (artigo 666º do Código Civil) –,
só que, diferentemente do que sucede com a hipoteca (artigo 687º do Código
Civil), tal direito não é objecto de registo. Desta forma, não é frustrada a
fiabilidade que o registo naturalmente merece, devendo concluir-se que o credor
pignoratício não tem uma expectativa jurídica equiparável à do credor
hipotecário.
É certo que, nos presentes autos, está em causa um penhor de acções e que os
valores mobiliários são também objecto de registo. Sucede, porém, que este
registo não se destina essencialmente a dar publicidade à situação jurídica de
tais bens, tendo em vista a segurança do comércio jurídico de valores
mobiliários, diferentemente do que sucede com o registo predial (cf. artigo 1º
do Código do Registo Predial). O registo de valores mobiliários não está sujeito
à regra da publicidade (sobre isto, cf. Paula Costa e Silva, “Efeitos do registo
e valores mobiliários. A protecção conferida ao terceiro adquirente”, Revista da
Ordem dos Advogados, Ano 58, 1998, p. 862 e ss. e Ferreira de Almeida, “Registo
de valores mobiliários”, Direito dos Valores Mobiliários, volume VI, Coimbra
Editora, 2006, p. 99).
8. Subsiste, no entanto, a questão de saber se o nº 2 do artigo 10º do
Decreto-Lei nº 103/80, enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que
de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos
da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora, viola o
princípio da confiança (artigo 2º da CRP).
Para além de um dos fundamentos do Acórdão nº 363/2002 ser perfeitamente
extensível à norma cuja aplicação foi recusada com fundamento em
inconstitucionalidade – a falta de conexão entre o bem sobre que recai a
garantia e a causa do crédito –, é um facto que o princípio da confidencialidade
tributária tem repercussões na publicidade daquele privilégio. Devendo notar-se,
no entanto, que o legislador foi atenuando este princípio, reduzindo,
consequentemente, a existência de ónus ocultos: segundo o artigo 20º do
Decreto-Lei nº 103/80, dos relatórios anuais das empresas públicas e das
sociedades, de publicação obrigatória, deverá constar se as mesmas são ou não
devedoras à respectiva caixa de previdência e qual o montante em dívida; de
acordo com o disposto nos nºs 5 e 6 do artigo 64º da Lei Geral Tributária, na
redacção introduzida pela Lei nº 60-A/2005, de 30 de Dezembro, permite-se a
divulgação de listas de contribuintes cuja situação tributária não se encontre
regularizada.
9. Este Tribunal tem entendido que o princípio da confiança, ínsito na ideia do
Estado de direito democrático (artigo 2º da CRP), é violado apenas quando haja
uma afectação inadmissível, arbitrária ou demasiadamente onerosa de expectativas
legitimamente fundadas dos cidadãos (cf., entre muitos outros, Acórdãos n.º
287/90, 303/90, 625/98, 634/98, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
Seguindo o critério do Acórdão n.º 287/90:
«A ideia geral de inadmissibilidade poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois
seguintes critérios:
a) A afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação na ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e, ainda
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes
(deve recorrer-se aqui ao princípio da proporcionalidade, explicitamente
consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no nº 2 do artigo
18º da Constituição, desde a 1ª revisão).
Pelo primeiro critério, a afectação de expectativas será extraordinariamente
onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se
excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária».
Ora, relativamente à norma em apreciação não se pode sequer afirmar uma mutação
na ordem jurídica. Por um lado, de há muito que o privilégio mobiliário geral de
que gozam os créditos da Segurança Social por contribuições e os respectivos
juros prevalece sobre qualquer penhor, ainda que de constituição anterior (cf.
supra, ponto 2. da Fundamentação); por outro, na falta de registo público, a
ordem jurídica instituída não criou expectativas jurídicas atinentes à segurança
do comércio jurídico que a norma impugnada tenha alterado (cf. supra, ponto 7.
da Fundamentação)».
Reiterando este entendimento, é de concluir que o artigo 10º, nº 2, do
Decreto-Lei nº 103/80, de 9 de Maio, não viola o princípio da confiança, ínsito
na ideia do Estado de direito democrático (artigo 2º da Constituição da
República Portuguesa), enquanto faz prevalecer sobre qualquer penhor, ainda que
de constituição anterior, o privilégio mobiliário geral de que gozam os créditos
da Segurança Social por contribuições e os respectivos juros de mora –
privilégio creditório com justificação constitucional por referência ao artigo
63º da CRP.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, determinando a
reforma da decisão recorrida em conformidade com o decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Março de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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