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Processo nº 772/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A., S.A. interpôs recurso de anulação do acto proferido pelo Secretário de
Estado dos Assuntos Fiscais (o SEAF) que indeferiu os pedidos de isenção de Sisa
por si apresentados e relativos à transmissão de prédios entre empresas
abrangidas pelo regime de tributação pelo lucro consolidado.
A isenção do imposto municipal de Sisa havia sido requerida pela sociedade A. em
17.11.2000, 21.11.2000 e 21.12.2000, tendo as transmissões dos prédios em
questão ocorrido já depois de 31.12.2000 (mais concretamente, as transmissões
foram declaradas em 07.02.2003 e 26.02.2003).
A então recorrente alegou, no que importa aos presentes autos, que a alteração
do n.º 31.º do artigo 11.º do Código do Imposto Municipal de Sisa e do Imposto
sobre as Sucessões e Doações (o CIMSISSD), alteração operada através do artigo
7.º, n.º 3, da Lei n.º 30.º-G/2000, de 29 de Dezembro, não seria aplicável às
transmissões em questão e, portanto, não determinava a extinção do seu direito à
isenção do imposto de Sisa.
A isenção do imposto de Sisa de que, como se diz, a A. seria titular,
encontrava-se prevista no n.º 31 do artigo 11.º do CIMSISSD, norma esta revogada
pelo n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, sendo que,
nesta última, se determina (i) a revogação do n.º 31 do artigo 11.º do
CIMISISSD, (ii) a revogação do n.º 7 do artigo 16.º do CIMISISSD e (iii) que as
transmissões anteriores à entrada em vigor daquele diploma deixam de beneficiar
da isenção de Sisa logo que as sociedades transmitente e transmissária deixem de
estar abrangidas, nos três exercícios seguintes ao da transmissão, pelo regime
de tributação do lucro consolidado ou pelo regime especial de tributação dos
lucros de sociedades.
Alegou a então recorrente que a aplicação da norma em causa às transmissões por
si realizadas consubstanciava a aplicação de uma lei fiscal retroactiva e,
portanto, esta interpretação do diploma de 2000 violaria o disposto no artigo
103.º, n.º 3, da Constituição da República.
2. Por acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (o TCA Sul), de 28 de
Março de 2006, foi concedido provimento ao recurso tendo sido anulados os
despachos da autoria do SEAF. Neste acórdão, e quanto à questão de saber se nos
despachos recorridos havia sido aplicada norma (o artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º
30-G, de 29 de Dezembro) que viola os princípios constitucionais da não
retroactividade da lei fiscal e da segurança jurídica, o TCA Sul veio dizer que,
à data dos requerimentos de isenção de Sisa, vigorava o n.º 31 do artigo 11.º do
CIMSISSD. À luz do entendimento daquele tribunal, os requisitos do requerimento
para isenção de Sisa eram, à data, que o requerente se encontrasse no regime de
tributação pelo lucro consolidado e que o requerimento desse entrada antes do
acto ou facto translativo do bem.
Disse, pois, o TCA Sul que a nova versão do artigo 11.º, do n.º 31 do CIMSISSD,
dada pela Lei n.º 30-G, de 29 de Dezembro, não se aplicaria ao requerimento
objecto do despacho do SEAF em juízo nos autos, porquanto esta lei não estaria
em vigor no momento em que a Administração Fiscal deveria ter averiguado do
preenchimento dos requisitos do requerimento de isenção de Sisa, requisitos
estes que, segundo a interpretação do TCA SUL, não incluiriam a transmissão dos
prédios. Adiantou ainda este tribunal que a mencionada Lei n.º 30-G/2000, de 29
de Dezembro não continha qualquer regulação quanto aos pressupostos
para o reconhecimento da isenção de Sisa ainda pendentes.
3. Inconformado com esta decisão, veio o SEAF interpor recurso para o Supremo
Tribunal Administrativo, alegando, em síntese, que o acórdão do TCA Sul havia
violado o disposto no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 30-G/2000.
A questão colocada era, então, a de saber qual o momento relevante para
verificação dos pressupostos para a concessão da isenção do imposto municipal de
Sisa e quando deveria ter-se por aplicável a norma ínsita ao artigo 7.º, n.º 3,
da Lei n.º 30-G/2000.
O Supremo Tribunal Administrativo entendeu, ao contrário do que havia sido
decidido pelo TCA Sul, que o pressuposto da constituição do benefício fiscal na
esfera jurídica do contribuinte era a transmissão dos prédios.
Aponta neste sentido o seguinte trecho da decisão recorrida que ora se
transcreve (fls. 152):
(…) da análise do referido art.º 11, n.º 31 ressalta com mediana evidência que o
legislador elegeu como pressuposto da constituição do benefício fiscal na esfera
jurídica do contribuinte, ainda que esteja dependente de reconhecimento, com
efeito meramente declarativo (art.º 4.º, n.º 2 do EBF), pela administração
fiscal, a realização do acto translativo, “enquanto facto tributário do qual
emerge a obrigação tributária” e não, como se decidiu no aresto recorrido, a
data do início do procedimento destinado à obtenção do benefício.
O Tribunal a quo entendeu, pois, que antes da transmissão dos prédios não tinha
sido concedido o benefício fiscal havendo, tão só, e quanto a tal concessão, uma
mera expectativa, não juridicamente tutelada.
Apesar de divergir, neste ponto, relativamente à decisão proferida pelo TCA Sul,
o Supremo Tribunal Administrativo veio, no entanto, negar provimento ao recurso
interposto pelo SEAF. Nesta linha, veja-se o que ficou dito, no ponto que nos
importa, na decisão recorrida:
Contudo e pese embora este entendimento, nem por isso os despachos em causa
deixam de merecer censura.
Na verdade, tendo as transmissões dos bens em causa sido efectuadas em 7/2/03 e
26/2/03, durante, portanto, os exercícios em que vigorava a autorização para a
tributação da recorrida pelo lucro consolidado, para o qual estava autorizada
para o período compreendido entre 2000 e 2004, esta não podia, assim, deixar de
beneficiar da isenção requerida, uma vez que estariam verificados os seus
pressupostos.
5 – Alega, porém, a entidade recorrente, que a recorrida não podia beneficiar de
tal isenção uma vez que o art 7.º, n.º 3 da Lei n.º 30-G/00 de 29/12 revogou o
benefício fiscal do artº 11º, nº 31 do CIMSISD, com efeitos a partir de 1/1/01,
sendo certo que e como vimos, as transmissões dos bens em causa só operaram em
2003.
Mas não lhe assiste razão.
Com efeito, dispõe o citado artº 7º, nº 3 que “é revogado o n.º 31 do artigo
11.º do Código Municipal de Sisa e de Imposto sobre Sucessões e Doações,
deixando de beneficiar de isenção de imposto municipal de sisa as transmissões
anteriores à entrada em vigor da presente lei logo que as sociedades deixem de
estar abrangidas, nos três exercícios seguintes ao da transmissão, pelo regime
da tributação pelo lucro consolidado ou pelo regime especial de tributação dos
grupos de sociedades”.
Deste preceito legal resulta, assim, que é revogado o artº 11º, nº 31 do
CIMSISD, deixando de beneficiar de isenção de imposto municipal de sisa as
transmissões anteriores à entrada em vigor da citada Lei, muito embora com a
condição resolutiva de só se consolidar se as sociedades deixarem de estar
abrangidas, nos três exercícios seguintes ao da transmissão, pelo regime do
lucro consolidado ou pelo regime especial de tributação dos grupos de
sociedades.
Do regime, assim, fixado naquele normativo, ressalta à evidência que o
legislador pretendeu atribuir-lhe eficácia retroactiva.
A nossa Constituição apenas contém cláusulas gerais de proibição de
retroactividade em matéria de leis restritivas de direitos, liberdades e
garantias (art. 18.º, n.º 3, da C.R.P.), de aplicação da lei criminal (art.
29.º, n.º 4) e de pagamento de impostos (art. 103.º, n.º 3).
Para além desses casos, o Tribunal Constitucional tem vindo a entender que
apenas é proibida constitucionalmente a retroactividade intolerável, por
incompatibilidade com o princípio da confiança, ínsito na ideia de Estado de
direito democrático (art. 2.º da C.R.P.).
Abrange-se nesta proibição de retroactividade, desde logo, os graus de
retroactividade propriamente dita, normalmente assinalados pela doutrina, entre
os quais, quando a lei nova se aplica a factos passados, mas respeita os efeitos
jurídicos já produzidos por esses factos (que é a retroactividade a que se
refere o n.º 1 do art. 12.º do Código Civil).
À face da jurisprudência do Tribunal Constitucional, o princípio da confiança,
ínsito na ideia de Estado de Direito democrático (art. 2.º da Constituição)
postula um mínimo de certeza nos direitos das pessoas e nas expectativas que
lhes são juridicamente criadas, censurando as afectações inadmissíveis,
arbitrárias ou excessivamente onerosas, com as quais não se poderia
razoavelmente contar.
Neste sentido, pode ver-se, por todos, o acórdão deste Tribunal Constitucional
n.º 128/02, de 14-3-2002, proferido no processo n.º 382/01.
No caso em apreço, da circunstância de as transmissões de bens gozarem de
isenção de sisa desde que as mesmas se operem durante o exercício em que vigorar
a autorização para a tributação segundo o regime do lucro consolidado, está-se
perante a referida situação de retroactividade propriamente dita, supra
referida, pois o regime introduzido pelo artº 7º, nº 3 da Lei n.º 30-G/00 afecta
os efeitos jurídicos já produzidos por factos passados.
Por outro lado, o contribuinte é, assim, atingido nos seus direitos que havia
adquirido anteriormente.
Com efeito, dispõe o artº 2º, nº 2 do Decreto-Lei nº 215/89 de 1/7 (Decreto-Lei
Preambular ao EBF) que “para efeitos do disposto no número anterior, são
direitos adquiridos os benefícios fiscais de fonte internacional e contratual e
os benefícios temporários e condicionados, sem prejuízo do disposto nos Códigos
do IRS, do IRC e da CA”.
E não há qualquer dúvida de que no predito artº 11º, nº 31 está implícito a
concessão de um benefício temporário, uma vez que só é concedida a isenção desde
que, como vimos, as transmissões se operem durante o exercício em que vigorar a
autorização para a tributação segundo o regime do lucro consolidado.
Por último e com a aplicação do referido artº 7º, nº 3, atingida é também a
convicção do contribuinte de que gozava dessa isenção durante este período.
O que viola o princípio constitucional da confiança integrante do princípio do
Estado de Direito (artº 2º da CRP), já que foram afectadas expectativas
juridicamente criadas, de forma a que os que beneficiavam daquela isenção não
pudessem razoavelmente contar.
Efectivamente, deste princípio decorre, com efeito, para os cidadãos o direito à
protecção da confiança na previsibilidade do direito, como forma de orientação
da vida, já que os cidadãos têm direito a um mínimo de certeza e de segurança
quanto aos direitos e expectativas que, legitimamente, forem criando no
desenvolvimento das relações jurídicas. Por isso que « não é consentida uma
normação tal que afecte, de forma inadmissível, intolerável, arbitrária ou
desproporcionadamente onerosa, aqueles mínimos de segurança que as pessoas, a
comunidade e o direito devem respeitar.» (Cf. Ac. TC nº 365/91, DR II Série, de
27.09.91).
Sendo assim, há que concluir que o predito artº 7º, nº 3 da Lei nº 30-G/00 de
29/12 é materialmente inconstitucional, pelo que os despachos impugnados, que se
basearam nessa norma, enfermam de erro sobre os pressupostos de direito, que
constitui ilegalidade que justifica também a sua anulação.
4. Desta decisão recorreu o representante do Ministério Público junto do Supremo
Tribunal Administrativo, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada por último pela Lei n.º
13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal Constitucional), por, na decisão
proferida em 18 de Abril de 2007 pelo Supremo Tribunal Administrativo, se ter
considerado inconstitucional a norma constante do artigo 7º, nº 3, da Lei n.º
30-G/2000, de 29 de Dezembro, por força da “violação do princípio da confiança,
ínsito no princípio do Estado de direito democrático”.
Neste Tribunal, o Ministério Público concluiu assim as suas alegações:
1º
A norma constante do artigo 7°, n° 3, da Lei n° 30-G/2000, de 29/12, enquanto
estabelece a preclusão da isenção do imposto municipal de sisa às transmissões
de imóveis realizadas em data ulterior à vigência de tal preceito legal, por
sociedades que deixem de estar abrangidas, nos três exercícios seguintes aos da
transmissão, pelo regime de tributação pelo lucro consolidado, não comporta
qualquer eficácia retroactiva, pelo que não afronta a cláusula geral de não
retroactividade dos impostos, afirmada pelo artigo 103°, n° 3, da Constituição.
2°
A aplicação da revogação do referido benefício fiscal – decorrente de lei
publicitada em 2000 – a actos translativos apenas realizados em 2003 não implica
qualquer frustração de expectativas fundadas e legítimas dos contribuintes na
subsistência de um beneficio fiscal, há muito derrogado, não violando,
consequentemente, o princípio da confiança.
3º
Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com um juízo
de não inconstitucionalidade da norma desaplicada na decisão recorrida.
A recorrida A. contra-alegou concluindo que:
I – Diversamente do pretendido nas doutas alegações em resposta, o acto
translativo não constituía pressuposto de verificação necessária à concessão do
beneficio fiscal, sendo que os pressupostos de tal – in casu verificados – eram,
apenas, que o respectivo requerente se encontrasse no regime de tributação pelo
lucro consolidado e que o reconhecimento da isenção fosse pedido à administração
fiscal antes do facto translativo do bem – cfr. art.° 15° n° 1 do CIMSISD –,
sendo que o momento em que se adquire o direito ao benefício coincide com o
momento da verificação dos respectivos pressupostos e já não com o da efectiva
transmissão dos bens, mera condição suspensiva da eficácia (cfr. n° 2 do art° 2°
do Decreto‑Lei n° 215/89 de 1/7, Preambular do Estatuto dos Benefícios Fiscais);
II – Acresce que o reconhecimento declarativo pela administração fiscal do
direito ao beneficio fiscal é praticado no exercício de poderes vinculados e não
discricionários, o que determina que o reconhecimento tenha natureza declarativa
e não constitutiva do direito ao beneficio fiscal respectivo, sendo que o
direito ao benefício nasce no momento da verificação histórica dos respectivos
pressupostos legais (supra enunciados) e não ao momento da prática do próprio
reconhecimento (cfr. n° 2 do art.° 40 e art.° 11°, ambos do Estatuto dos
Benefícios Fiscais).
III – A norma constante do art.° 7º, n° 3, da Lei n° 30-G/2000, de 29/12,
comporta eficácia retroactiva e afronta o princípio da não retroactividade da
lei fiscal consagrado no artigo 103°, no 3 da Constituição, como “parcela do
direito de resistência fiscal” (neste sentido, Jorge Bacelar Gouveia in A
Irretroactividade da Norma Fiscal na Constituição Portuguesa, CTF – BDGI, n.°
387, Jul/Set, 1997, págs. 49ss. p. 81).
IV – Tal norma afronta, aliás, o princípio da segurança jurídica ínsito na
referida proibição expressa de leis fiscais retroactivas o qual é afectado
também ‘quando a exigência da justiça, traduzida na constancy of the law trough
time (Gezetzeskonstanz), é desrespeitada, nomeadamente sempre que uma lei, em
cuja manutenção e estabilidade os destinatários tenham confiado, seja revogada
ou alterada para o futuro o que vale sobretudo em matéria de benefícios fiscais”
(Casalta Nabais in O Dever Fundamental de Pagar impostos, Almedina, 1998, pág.
407).
V – Considerando o referido na conclusão “I” supra, a aplicação da revogação do
beneficio fiscal atinge também a convicção do contribuinte de que gozava dessa
isenção durante o período, sendo, por isso, violado o princípio constitucional
da confiança integrante do princípio do Estado de Direito (art° 2° da
Constituição), já que foram afectadas expectativas juridicamente criadas, uma
vez que a Recorrida beneficiava efectivamente daquela isenção por se verificarem
os respectivos pressupostos legais, não podendo razoavelmente contar com
situação diversa, maxime quando requereu a concessão do beneficio e promoveu a
verificação dos pressupostos da sua concessão, tudo nos termos da Lei.
VI – Aliás, mesmo que se demonstrasse que a alteração não era completamente
imprevisível nem por isso deixaria a norma em causa de escapar ao juízo de
inconstitucionalidade porquanto, como sublinhou este Tribunal Constitucional, a
propósito das leis interpretativas em matéria fiscal, “a proibição
constitucional explícita de retroactividade em matéria fiscal não pode ser
interpretada em termos semelhantes à jurisprudência anterior do Tribunal, corno
se não tivesse sido alterado o texto constitucional e apenas resultasse dos
princípios gerais. Na expressa proibição de retroactividade não pode deixar de
estar ínsita uma garantia forte de objectividade e auto‑vinculação do Estado
pelo Direito” (Ac. deste Tribunal n.° 172/2000 de 22/03/2000), isto é, “com o
novo texto constitucional a proibição da norma retroactiva passa a ser
“automática”, sem que deva haver lugar ao exame de quaisquer outras
circunstâncias, nomeadamente o grau de lesão do valor da confiança presente em
cada caso. Assim parece que mesmo as alterações com o que o contribuinte podia
legitimamente contar, como sejam as resultantes da utilização de autorizações
legislativas constantes da Lei do Orçamento (portanto anteriores ao inicio do
período fiscal) ou previamente anunciadas por outra forma, passam a dever ser
consideradas inconstitucionais.” (Rui Morais in A revisão da Constituição
Fiscal, in JURIS ET DE JURE, UCP, Porto, 1998, págs 1153).
VII – O artigo 7°, n° 3, da Lei n° 30-G/2000 de 29 de Dezembro, ao estabelecer a
revogação do benefício fiscal ainda que os pedidos de isenção hajam sido
formulados, como in casu, antes da respectiva publicação e início da respectiva
vigência, viola efectivamente o princípios constitucional da não retroactividade
da lei fiscal, plasmado no artigo 103°, n° 3, da CRP, e da segurança e confiança
jurídicas, nenhuma censura merecendo, por isso, a douta Decisão recorrida.
Nestes termos, e nos que V.s Ex.as muito doutamente suprirão:
Deve ser recusado provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
5. A questão de constitucionalidade
O presente recurso vem interposto, pelo Ministério Público, ao abrigo do
que dispõe a alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional.
O principal pressuposto deste tipo de recurso de constitucionalidade é o de que
tenha havido um tribunal que, decidindo, recusou a aplicação de qualquer norma,
com fundamento em inconstitucionalidade.
Naturalmente, a decisão que o Tribunal venha a proferir no âmbito deste recurso
de constitucionalidade parte sempre da decisão do tribunal a quo pois que é
nesta que se encontram os termos da questão de constitucionalidade.
Fez-se já uma breve descrição dos autos. Importa agora, porque se trata aqui de
tornar clara a fundamentação da decisão do Tribunal, indagar sobre o que é que
há de essencial a reter quanto à decisão (no caso, o acórdão do Supremo Tribunal
Administrativo) de que interpôs recurso o Ministério Público.
Como decorre do relato atrás feito, o Supremo Tribunal Administrativo recusou a
aplicação do artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 30-G/2000, na parte em que veio
revogar o n.º 31 do artigo 11.º do CIMSISSD.
A recusa de aplicação da norma mencionada funda-se, diz o Supremo Tribunal
Administrativo, na sua «natureza» retroactiva. A norma em juízo viola pois, aos
olhos do tribunal a quo, o n.º 3 do artigo 103.º da Constituição da República.
Além disso, o tribunal a quo diz também que a norma sancionada viola o princípio
da confiança ínsito ao princípio do Estado de direito (artigo 2.º da
Constituição da República).
Estes são os contornos da questão de constitucionalidade que, por intermédio do
presente recurso, o Tribunal é chamado a conhecer. A par destes dados retirados
da decisão recorrida, importa ainda atentar ao iter percorrido pelo Supremo
Tribunal Administrativo para a determinação da norma aplicável ao caso.
A lógica da decisão comporta dois passos essenciais: num primeiro passo, o
Supremo Tribunal Administrativo identifica a questão essencial para a resolução
do caso. Assim, o Supremo entende que o nó górdio do processo se prende com a
determinação dos pressupostos para a concessão da isenção da sisa. Identificada
a questão essencial, e num segundo passo, o STA elege como pressuposto da
isenção a realização do acto translativo do imóvel. No fundo, o que a lógica da
decisão traduz é o seguinte: para o Supremo Tribunal Administrativo o facto
relevante para a determinação da norma aplicável (no tempo) é o da transmissão
dos imóveis, e não – como o tinha dito o TCA SUL – o do requerimento do pedido
de isenção da Sisa.
A este respeito, devem reter-se as seguintes palavras do Supremo Tribunal
Administrativo, que se retranscrevem:
(…) da análise do referido art.º 11, n.º 31 ressalta com mediana evidência que o
legislador elegeu como pressuposto da constituição do benefício fiscal na esfera
jurídica do contribuinte, ainda que esteja dependente de reconhecimento, com
efeito meramente declarativo (art.º 4.º, n.º 2 do EBF), pela administração
fiscal, a realização do acto translativo, “enquanto facto tributário do qual
emerge a obrigação tributária” e não, como se decidiu no aresto recorrido, a
data do início do procedimento destinado à obtenção do benefício.
Assim sendo – e formando este «dito» algo que não cabe, naturalmente, ao
Tribunal Constitucional reexaminar – torna-se irrelevante, para efeitos da
resolução da questão de constitucionalidade, a alegação apresentada pela
recorrida, segundo a qual o facto tributário constitutivo da relação seria, in
casu, não a transmissão dos imóveis, mas o pedido de isenção formulado perante
a Administração fiscal e anterior à transmissão.
6. A norma sob juízo
Incide, como se disse já, o presente recurso de constitucionalidade sobre a
«norma» contida em parte do n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de
Dezembro, entrada em vigor a 1 de Janeiro de 2001.
O n.º 3 do artigo 7.º da Lei n.º 30-G/2000 prescreve assim:
n.º 3 – É revogado o n.º 31 do artigo 11.º e o n.º 7 do artigo 16.º do Código do
Imposto Municipal de Sisa e do Impostos sobre Sucessões e Doações, deixando de
beneficiar da isenção de imposto municipal de sisa as transmissões anteriores à
entrada em vigor da presente lei logo que as sociedades deixem de estar
abrangidas, nos três exercícios seguintes ao da transmissão, pelo regime da
tributação pelo lucro consolidado ou pelo regime especial de tributação dos
lucros de sociedades.
Esta disposição tem, conforme decorre do seu elemento literal, natureza
revogatória. Pretendeu, pois, o legislador, revogar duas normas do CIMSISSD: o
n.º 31 do artigo 11.º e o n.º 7 do artigo 16.º. Quer isto dizer que, em boa
verdade, a disposição sancionada inclui duas diferentes «normas»: a que decorre
da primeira parte do artigo e que determina a revogação do n.º 31 do artigo 11.º
do CIMSISD e a que decorre da segunda parte do artigo e que determina o «regime»
da revogação do artigo 16.º, n.º 7 do CIMSISSD.
Da análise da decisão recorrida conclui-se ter o tribunal a quo desaplicado
apenas a «norma revogatória» do n.º 31 do artigo 11º, do CIMSISSD. Conclui-se
ainda, maxime a fls. 153, ser esta a ratio decidendi da decisão recorrida. Assim
sendo, é esta a «norma» sob juízo.
O n.º 31 do artigo 11.º do CIMSISSD apresentava, à data de aprovação da Lei n.º
30-G/2000, de 29 de Dezembro, a seguinte redacção (redacção dada pelo
Decreto-Lei n.º 377/90, de 30 de Novembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º
142-B/91, de 10 de Abril que foi objecto da Declaração de Rectificação n.º
139/91, de 29 de Junho):
[são isentas de imposto municipal de sisa] [A]as transmissões realizadas entre
sociedades autorizadas a ser tributadas pelo lucro consolidado, desde que as
mesmas se operem durante os exercícios em que vigorar a autorização para a
tributação segundo aquele regime.
Era a seguinte a redacção do n.º 7 do artigo 16.º do CIMSISSD, sob a epígrafe
“Caducidade do benefício da isenção” e aplicável, para além das demais, às
transmissões de que tratam do n.º 31 do artigo 11:
As transmissões de que tratam (…) o n.º 31 do artigo 11 deixarão de beneficiar
da isenção logo que se verifique, respectivamente:
(…)
7.º Que as sociedades deixaram de estar abrangidas, nos três exercícios
seguintes ao da transmissão, pelo regime de tributação pelo lucro consolidado;
Perante estes dados normativos (e atendendo aos dados que se inscrevem na
decisão recorrida), a questão de constitucionalidade colocada ao Tribunal pode
ser equacionada do seguinte modo:
Uma norma que determine a revogação de uma isenção de Sisa, aplicável a
transacções ocorridas depois da sua entrada em vigor e a sociedades abrangidas
pelo regime de tributação do lucro consolidado é inconstitucional por violação
do princípio da irretroactividade da lei fiscal ou da protecção da confiança?
Como é bom de ver, a questão que se coloca chama a pronúncia do Tribunal em duas
diferentes vertentes: por um lado, o Tribunal deve ponderar se, in casu, a norma
sancionada assume uma verdadeira natureza retroactiva. A ser assim, deve ainda o
Tribunal ponderar se a especial natureza da norma (integrante de uma lei fiscal)
a faz cair no princípio geral de irretroactividade das leis fiscais consagrado
no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição. Por outro lado - e apenas se se não
chegar, desde logo e por este motivo, a um juízo de inconstitucionalidade - o
Tribunal deve ainda ponderar se a aplicação da norma lesou, efectivamente, a
«confiança legítima» da recorrida, de modo tal que se deva ter por violado, no
caso, o princípio da protecção da confiança ínsito na ideia de Estado de
direito, nos termos do artigo 2º da Constituição.
7. Da proibição da retroactividade da lei fiscal
7.1 Foi na revisão constitucional de 1997 que o legislador constituinte tomou a
opção de consagrar, no n.º 3 do artigo 103.º da Constituição, o princípio geral
de proibição de cobrança, pelo Estado, de impostos retroactivos. Explicitou-se,
aqui, diz a doutrina, algo que já decorria do princípio da protecção de
confiança e da ideia de Estado de direito nos termos do artigo 2.º da CRP (Cfr.
Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada,
Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 1092 e ss).
Decorre deste preceito constitucional que qualquer norma fiscal desfavorável
(não se entrando aqui na questão de saber se normas fiscais favoráveis podem, e
em que medida, ser retroactivas) será constitucionalmente censurada quando
assuma natureza retroactiva, sendo a expressão «retroactividade» usada, aqui, em
sentido próprio ou autêntico: proíbe-se a aplicação de uma lei fiscal nova,
desvantajosa, a um facto tributário ocorrido no âmbito da vigência da lei fiscal
revogada (a lei antiga) e mais favorável.
Em bom rigor, deve dizer-se que, para além de explicitar um princípio que
decorria já de outro constitucionalmente consagrado, o legislador constituinte,
na revisão de 1997, veio lançar luz sobre a polémica que povoava a
jurisprudência do Tribunal.
As decisões do Tribunal, até 1997, assentavam no seguinte argumento: uma lei
fiscal seria inconstitucional (por violação do princípio da confiança) apenas
quando imposta a retroactividade em “termos que choquem a consciência jurídica e
frustrem as expectativas fundadas dos contribuintes”. Desenvolvendo este
critério, disse o Tribunal que a retroactividade das leis fiscais seria
constitucionalmente legítima sempre que não ferisse “de forma inadmissível ou
intolerável, a certeza e a confiança na ordem jurídica dos cidadãos por ela
afectados; ou que não trai[sse], de forma arbitrária e injustificada, as
expectativas juridicamente tuteladas e criadas na esfera jurídica dos cidadãos
ao abrigo das disposições vigentes à data da ocorrência dos factos que as
geraram”. (Cfr. neste sentido, e por exemplo, o Parecer da Comissão
Constitucional n.º 25/81, em Pareceres da Comissão Constitucional, 16º Vol.,
p.257; o Parecer nº 14/82, em Pareceres…, 19º Vol, p. 183; o Acórdão do Tribunal
n.º 11/83, em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 1º Vol. p. 11; o Acórdão nº
141/85, em Acórdãos …, 6º Vol., p. 39; e ainda os Acórdãos nºs 409/89, 216/90,
410/95 e 1006/96, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt)
Estes critérios, de natureza necessariamente fluida, levaram a que, em diversos
arestos, o Tribunal viesse dar como boas leis fiscais retroactivas. Foi o que
sucedeu, por exemplo, nos Acórdãos n.º 11/83 e 66/84 (este último em Acórdãos,
4º Vol. p. 35) e ainda nos Acórdãos nºs 67/91, 1006/96, 1204/96 e 416/02 (todos
disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) . Noutros casos, ao invés, o
Tribunal entendeu que, por inexistirem razões de interesse público que
prevalecessem sobre o valor da segurança jurídica, as normas retroactivas seriam
intoleráveis e, consequentemente, constitucionalmente ilegítimas (Cfr., por
exemplo, os Acórdão ns.º 409/89, 216/90, 410/95 e 185/2000, também disponíveis
no mesmo lugar).
Uma vez expresso no texto da Constituição a proibição da retroactividade em
matéria fiscal, o Tribunal passou a ler esta proibição já não numa dimensão
subjectiva (dependendo, em concreto, do contexto dos sujeitos da relação
tributária resultante da aplicação da lei) mas antes numa dimensão objectiva.
Diz o Tribunal, a este propósito, que à proibição expressa da retroactividade da
lei fiscal “não pode deixar de estar ínsita uma garantia forte de objectividade
e auto-vinculação do Estado pelo Direito” (Cfr. Acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 172/2000, in www.tribunalconstitucional.pt)
Quer isto dizer que, actualmente, e consagrado que está o princípio geral de
irretroactividade da lei fiscal, a mera natureza retroactiva de uma lei fiscal
desvantajosa para os particulares é sancionada, de forma automática, pela
Constituição, qualquer que tenha sido, em concreto, a conduta da administração
fiscal ou do particular tributado. Por outras palavras, o juízo de
inconstitucionalidade decorre apenas da mera análise dos dados normativos, não
dependendo, em nenhum momento, da averiguação de quaisquer elementos
circunstanciais que resultem da condição, em concreto, de uma certa relação
jurídico-tributária.
7.2. Esclarecido o sentido da proibição constitucional consagrada no n.º 3 do
artigo 103.º da Constituição, importa agora atentar na norma sancionada e
verificar de que forma pode esta contrariar o preceito da CRP.
No dito do tribunal a quo está gravado que o facto relevante para a
determinação da norma aplicável (no tempo) é a data da transmissão dos imóveis.
Este juízo, cuja bondade não cabe ao Tribunal questionar, é essencial para
aferir se teve ou não razão a decisão recorrida, ao recusar a aplicação do
preceito contido no nº 3 do artigo 7º da Lei nº 30-G/2000 com fundamento em
violação do princípio geral de não retroactividade da lei fiscal.
Como se disse já, a retroactividade proibida no n.º 3 do artigo 103.º da
Constituição é a retroactividade própria ou autêntica. Ou seja, proíbe-se a
retroactividade que se traduz na aplicação de lei nova a factos (no caso, factos
tributários) antigos (anteriores, portanto, à entrada em vigor da lei nova).
Ora, se o Supremo Tribunal Administrativo entende, como se viu já, que o que
constitui a relação jurídica é, neste caso, a transmissão dos imóveis – por ser
esse, no seu entendimento, o facto tributário hoc sensu, ou o facto-pressuposto
da constitução da obrigação tributária – tem forçosamente que concluir-se também
que, antes dele, não existia nada que se assemelhasse a uma «relação tributária»
já formada.
Assim sendo, deve dizer-se que decorre dos autos que o acto constitutivo da
relação tributária (aquele que o Supremo Tribunal Administrativo elegeu enquanto
momento relevante para determinação da lei aplicável (no tempo)) decorreu depois
da entrada em vigor da lei nova: com efeito, a Lei nº 30-G/2000 entrou em vigor
em 2001; os actos de transmissão de imóveis foram declarados em 2003. Quer isto
dizer que, in casu, a norma sob juízo se aplicou a factos novos, ocorridos
depois da sua entrada em vigor. Não havendo por isso – e retomando a formulação
tradicional do princípio da irretroactividade da lei fiscal – aplicação da lei
nova a factos (tributários) antigos, não pode igualmente concluir-se que existiu
violação do disposto no nº 3 do artigo 103º da CRP.
É claro que se não exclui que, pelo seu enunciado semântico, a norma em juízo
possa ter a aparência de uma norma retroactiva – quando se diz que se aplica o
seu regime a transmissões efectuadas antes da sua entrada em vigor. Mas este é
um problema (apenas equacionado, que não resolvido) que, em fiscalização
concreta, se torna irrelevante: os recursos de constitucionalidade não se
dirigem a juízos sobre a conformidade constitucional das normas em si,
abstractamente tomadas, e portanto cindidas do modo e das circunstâncias da sua
efectiva aplicação ao caso concreto. E o que ressalta das circunstâncias do
caso, e em especial da decisão recorrida, é a inexistência de retroactividade: a
lei nova aplicou-se a um facto novo (ocorrido, portanto, depois da sua entrada
em vigor).
8. O lugar do princípio da protecção da confiança no confronto com o
princípio geral da irretroactividade da lei fiscal
8.1 Questão diferente da que se deixou resolvida é a de saber se a decisão
recorrida deve ser mantida quanto ao outro fundamento de inconstitucionalidade
(violação do princípio da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito
consagrado no artigo 2.º da Constituição).
O tema da protecção da confiança tem sido abundantemente tratado pelo Tribunal
Constitucional. Contudo – e em matéria tributária – a jurisprudência do Tribunal
sobre o que queira dizer «a necessária protecção da confiança legítima» não pode
deixar de ser olhada com cautela, consoante a sua produção tenha ocorrido antes
ou depois da revisão Constitucional de 1997. Na verdade – e como o tem dito a
doutrina –, com a formulação actual do nº 3 do artigo 103º da CRP alterou-se o
lugar constitucional que o princípio decorrente do artigo 2º ocupa em matérias
de natureza fiscal: a aprovação, em 1997, de um princípio geral de
irretroactividade da lei fiscal veio modificar (e não diminuir ou aumentar) a
relevância do princípio. Quer isto dizer exactamente o seguinte.
A proibição expressa da retroactividade da lei fiscal não tornou inútil a
eventual aplicação, a matérias de natureza tributária, do parâmetro da protecção
da confiança. Como diz Casalta Nabais, (Cfr. “Direito Fiscal”, 3ª Edição,
Almedina, Coimbra, p. 149) a protecção da confiança não foi absorvida pelo novo
preceito constitucional. Ao textualizar a proibição de normas fiscais
retroactivas, a Constituição conferiu uma especial corporização ao princípio,
corporização essa que se traduz na necessária ausência de ponderações sempre que
ocorram casos [de leis tributárias] que sejam retroactivas em sentido próprio ou
autêntico. Nesses casos – nos quais, recorde-se, se não inclui o presente - não
há lugar a ponderações: a norma retroactiva é, por força do nº 3 do artigo 103º,
inconstitucional. Mas tal não significa que, por causa disso, se tenha esgotado
ou exaurido a «utilidade» do princípio da confiança em matéria tributária. Pode
haver outras situações – de retroactividade imprópria, ou até de não
retroactividade – que convoquem a questão constitucional que é resolvida pela
tutela da confiança.
Sucede, porém, que, ao contrário do que sucede com a aplicação do princípio
contido no nº 3 do artigo 103º da Constituição, a «mobilização» do princípio da
confiança em matéria tributária obriga a um juízo que não prescinde de
ponderações: saber se a norma é ou não inconstitucional (por violação da
protecção da confiança) obriga a que se tenha em conta, e se pondere, tanto o
contexto da administração tributária quanto o contexto do particular tributado.
8.2. No Acórdão n.º 287/90, de 30 de Outubro, o Tribunal estabeleceu já os
limites do princípio da protecção da confiança na ponderação da eventual
inconstitucionalidade de normas dotadas de «retroactividade inautêntica,
retrospectiva». Neste caso, à semelhança do que sucede agora, tratava-se da
aplicação de uma lei nova a factos novos havendo, todavia, um contexto anterior
à ocorrência do facto que criava, eventualmente, expectativas jurídicas. Foi
neste aresto ainda que o Tribunal procedeu à distinção entre o tratamento que
deveria ser dado aos casos de «retroactividade autêntica» e o tratamento a
conferir aos casos de «retroactividade inautêntica» que seriam, disse-se,
tutelados apenas à luz do princípio da confiança enquanto decorrência do
princípio do Estado de direito consagrado no artigo 2.º da Constituição.
De acordo com esta jurisprudência sobre o princípio da segurança jurídica na
vertente material da confiança, para que esta última seja tutelada é necessário
que se reúnam dois pressupostos essenciais:
a) a afectação de expectativas, em sentido desfavorável, será inadmissível,
quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os
destinatários das normas dela constantes não possam contar; e ainda
b) quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes
(deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente
consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do artigo
18.º da Constituição).
Os dois critérios enunciados (e que são igualmente expressos noutra
jurisprudência do Tribunal) são, no fundo, reconduzíveis a quatro diferentes
requisitos ou “testes”. Para que para haja lugar à tutela
jurídico-constitucional da «confiança» é necessário, em primeiro lugar, que o
Estado (mormente o legislador) tenha encetado comportamentos capazes de gerar
nos privados «expectativas» de continuidade; depois, devem tais expectativas
ser legítimas, justificadas e fundadas em boas razões; em terceiro lugar, devem
os privados ter feito planos de vida tendo em conta a perspectiva de
continuidade do «comportamento» estadual; por último, é ainda necessário que não
ocorram razões de interesse público que justifiquem, em ponderação, a não
continuidade do comportamento que gerou a situação de expectativa.
Este princípio postula, pois, uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e
da comunidade na estabilidade da ordem jurídica e na constância da actuação do
Estado. Todavia, a confiança, aqui, não é uma confiança qualquer: se ela não
reunir os quatro requisitos que acima ficaram formulados a Constituição não lhe
atribui protecção.
Por isso, disse-se ainda no Acórdão nº 287/90 – e importa ter este dito
presente no caso – que, em princípio, e tendo em conta a autorevisibilidade das
leis, “não há (…) um direito à não-frustração de expectativas jurídicas ou a
manutenção do regime legal em relações jurídicas duradoiras ou relativamente a
factos complexos já parcialmente realizados”.
9. A norma sob juízo e o princípio da protecção da confiança
9.1. Sustenta a recorrida que a revogação do benefício fiscal operada pela
norma sob juízo atingiu a sua «convicção» (as suas expectativas juridicamente
criadas, diz) de que gozaria desse benefício durante o período em que estava
abrangida pelo regime de tributação pelo lucro consolidado. Daqui decorre, alega
ainda a recorrida, que a norma sancionada viola o princípio constitucional da
confiança integrante do princípio do Estado de Direito (art° 2° da
Constituição).
É certo que, em Estado de direito, os cidadãos devem poder saber com o que
contam. É igualmente certo que a confiança, a ser justificada, deve ser
tutelada, conforme se tem vindo a decidir, em firme jurisprudência, pelo
Tribunal.
Importa, porém, indagar dos contornos (o contexto) da situação de confiança que
o tribunal a quo (e a recorrida) entendeu existir no presente caso.
Do relato que foi feito da matéria dos autos, e conforme se disse já, trata-se
neste lugar da aplicação de uma lei nova a um facto novo: a lei nova é o n.º 3
do artigo 7.º da Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, entrada em vigor a 1 de
Janeiro de 2001, o facto novo é a transmissão dos imóveis que só se verificou no
ano de 2003. A descrição dos autos assim realizada é, todavia, incompleta. Com
efeito, apesar de o direito à isenção de pagamento de Sisa nascer apenas com a
transmissão dos imóveis, antes disso não se pode, a priori, dizer que a
recorrida não tinha uma expectativa jurídica no surgimento do seu futuro direito
à isenção de pagamento de Sisa. Na verdade, há que ponderar a relevância que
assume, no caso, o «especial estatuto» da recorrida e que decorre da
circunstância de esta estar abrangida, durante o período de tempo que termina em
2004, pelo regime de tributação do lucro consolidado.
Este «estatuto», indaga-se agora, pode justificar a existência de uma
expectativa jurídica que, à luz do princípio da confiança, torne
inconstitucional a norma sob juízo?
A norma sancionada, incluída na categoria de benefício fiscal, veio, muito
simplesmente, revogar um tratamento excepcional. Por outras palavras, e
considerando a regra geral à data aplicável, segundo a qual todas as
transmissões, a título oneroso, do direito de propriedade ou de figuras
parcelares desse direito, sobre bens imóveis são tributadas em sede de Sisa, o
que n.º 31 do artigo 11.º do CIMSISSD determina é que, a esta regra geral, se
aplique uma excepção à incidência do imposto: transacções entre sociedades, em
princípio sujeitas a imposto de Sisa, estarão isentas de Sisa quando as
sociedades relevantes sejam tributadas ao abrigo do regime do lucro consolidado.
Esta excepção é, todavia, condicionada: as transacções serão isentas de Sisa
conquanto que as sociedades transmitentes e transmissária se mantenham
abrangidas pelo regime de tributação do lucro consolidado nos três anos
seguintes ao da transmissão (cfr. n.º 7 do artigo 16.º do CIMSISSD). Este regime
aponta, necessariamente, para uma natureza precária da isenção.
A este respeito, importa ainda dizer que outro elemento há, para além do que
dispõe o n.º 7 do artigo 16.º do CIMISISSD, que indicia o carácter
necessariamente temporário da isenção. Ao integrar-se na categoria geral dos
benefícios fiscais (artigo 1º, nº 2 do Estatuto dos Benefícios Fiscais), a
isenção apresenta-se tendencialmente como uma medida de natureza conjuntural, ou
seja, decorrente de uma opção legislativa por natureza mutável. Se se recordar a
distinção feita, a propósito dos elementos essenciais do imposto, por Alberto
Xavier (Manual de Direito Fiscal, I, Lisboa, 1974, p. 282) entre contribuinte
isento e não contribuinte, a situação da recorrida é a de uma contribuinte que,
em dado contexto temporário, se viu na posição de contribuinte isento.
Assim sendo, e atentando agora aos pressupostos ou requisitos da protecção de
confiança que se deixaram já enunciados, necessário é concluir pelo não
preenchimento de, pelo menos, dois desses pressupostos. Desde logo, não pode
afirmar-se que, in casu, tenha o Estado (maxime, o legislador) encetado
comportamentos capazes de gerar nos privados «expectativas» de continuidade
(pois desde o momento em que a isenção foi aprovada que os particulares sabem
tratar-se, aqui, de uma situação excepcional e condicionada). Depois, também não
pode considerar-se que fossem fundadas em «boas razões» as expectativas privadas
de manutenção do regime jurídico da isenção: já que de nenhum elemento do regime
de Sisa se pode deixar de retirar a regra geral segundo a qual todas as
transmissões de imóveis são objecto de tributação, a revogação da norma que
previa a isenção não podia surgir aos olhos da recorrida como algo de improvável
ou inverosímil.
Atenta a especial natureza desta isenção – que, repete-se, desde o início da sua
consagração assumia uma natureza condicional (porque dependia da manutenção de
uma situação de tributação do lucro consolidado pelo prazo mínimo de três anos)
– dos autos decorre, pois, que a recorrida tem, aqui, unicamente uma expectativa
de manutenção de um status quo, expectativa esta que não pode considerar-se
juridicamente relevante para o efeito de merecer a tutela dispensada pelo
princípio constitucional da tutela da confiança.
Adianta-se ainda que também o terceiro requisito – o de que a recorrida fez
planos de vida, investimentos, tendo em conta a expectativa da continuidade do
«comportamento» estadual – não se afigura preenchido. Pode, neste caso,
indagar-se sobre a existência de um «investimento» na confiança sob duas
perspectivas: a de que a recorrida transmitiu os imóveis apenas porque confiava
que esta transmissão estaria isenta de Sisa; ou, ainda, a de que a recorrida
optou pelo regime de tributação pelo lucro consolidado apenas porque confiava
que as transmissões «entre-grupo» não seriam tributadas em sede de Sisa.
Quanto à primeira vertente enunciada, decorre claramente dos autos não ter
ocorrido este investimento. Com efeito, à data das transmissões, a recorrida
sabia já que não lhe seria eventualmente aplicável o regime de isenção de Sisa.
Acresce que não se pode afirmar, com certeza, ter a recorrida optado pelo regime
de tributação pelo lucro consolidado apenas porque este regime lhe proporcionava
a vantagem consubstanciada na isenção de Sisa, no âmbito das transmissões entre
sociedades do mesmo grupo económico. É certo que a concessão de uma isenção de
pagamento de imposto de Sisa, no caso das transmissões realizadas entre
sociedades do mesmo grupo económico, foi gizada pelo legislador com o intuito de
incentivar a criação de «grupos empresariais» pois, caso contrário, seria
necessário justificar o tratamento privilegiado destas transmissões face a todas
as outras transmissões que são não-isentas de Sisa. Mas, a este respeito,
importa notar que a isenção de Sisa não era a única vantagem decorrente da opção
por este regime de tributação. Na verdade, o regime de tributação pelo lucro
consolidado (introduzido pelo Decreto-Lei n.º 414/87, de 31 de Dezembro,
alterado pela Lei n.º 71/93, de 26 de Novembro) proporcionava outras vantagens
para o grupo societário, nomeadamente: a eliminação total da dupla tributação,
em sede de IRC e de imposto sobre as Sucessões e Doações por Avença,
relativamente aos lucros/dividendos distribuídos entre as sociedades do grupo, a
não realização de quaisquer retenções na fonte, em sede de IRC, nas relações
entre as sociedades do grupo, a possibilidade de as mais e menos-valias apuradas
na transmissão onerosa de elementos do activo imobilizado, assim como quaisquer
ganhos e perdas realizados em transacções entre as diversas sociedades do grupo
não serem consideradas ganhos/perdas na determinação da matéria colectável em
sede de IRC e a possibilidade de compensação dos lucros e prejuízos gerados no
mesmo ano pelas diversas sociedades do grupo (Assim, Luís Belo, “As novas regras
da tributação pelo lucro consolidado”, Fisco, Vol. 5, Julho 1994, pp. 3-11 e, do
mesmo autor, “Algumas reflexões ao nível do impacto sobre os grupos económicos
da designada reforma fiscal”, Fisco, Vol. XII, t. 99/100, pp. 67-83. Por esta
razão, não se pode aqui dizer que tenha sido necessariamente a isenção sob
análise a justificação da opção da recorrida por este regime de tributação. Ou
seja, não se vislumbra aqui que a recorrida tenha realizado um investimento na
confiança da manutenção do regime legal vigente.
Assim sendo, também o terceiro requisito para protecção da confiança não se
afigura, no caso, preenchido.
Não tem por isso razão o tribunal a quo quando sustenta ser materialmente
inconstitucional a norma ínsita ao artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º 30-G/2000, de 29
de Dezembro, na parte em que revoga o n.º 31 do artigo 11.º do Código Municipal
de Sisa e de Imposto sobre Sucessões e Doações.
III
Decisão
Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucional a norma ínsita ao artigo 7.º, n.º 3 da Lei n.º
30‑G/2000, de 29 de Dezembro, na parte em que revoga o n.º 31 do artigo 11.º do
Código Municipal de Sisa e de Imposto sobre Sucessões e Doações quando aplicável
a transacções ocorridas depois da sua entrada em vigor e a sociedades abrangidas
pelo regime de tributação do lucro consolidado;
b) Consequentemente, concedendo provimento ao recurso, ordenar a reforma da
decisão recorrida em conformidade com o agora decidido quanto à questão de
constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 12 de Março de 2009.
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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