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Processo n.º 1014/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra da sentença do
Tribunal da Comarca de Torres Novas que o condenou pela prática de um crime de
abuso de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido nos artigos
30º, n.º 2, e 79º do Código Penal e 7º, n.º 1, e 105.º, nº 1, do Regime Geral
das Infracções Tributárias (RGIT), invocando, além do mais, a prescrição do
procedimento criminal por terem decorrido cinco anos desde a data em que foi
notificado da acusação (30 de Abril de 1999) ou da data em que foi designada a
audiência de julgamento (15 de Julho de 1999).
O Tribunal da Relação de Coimbra, por acórdão de 16 de Julho de 2008, negou
provimento ao recurso, fundamentando a decisão, na parte respeitante à
prescrição do procedimento criminal, nos seguintes termos:
A questão da prescrição do procedimento criminal foi objecto de apreciação
detalhada no acórdão recorrido.
Ali se pondera, além do mais:
“O prazo da prescrição e por referência ao que dispõe o art° 21.º, n° 1, do RGIT
é que o procedimento criminal por crime tributário extingue-se por efeito da
prescrição logo que sobre a sua prática sejam decorridos 5 anos.
E o n° 2 diz que o disposto no n° 1 não prejudica os prazos de prescrição
estabelecidos no CP quando o limite máximo da pena de prisão for igual ou
superior a 5 anos.
O prazo de prescrição interrompe-se e suspende-se nos termos estabelecidos no
Código Penal, mas a suspensão da prescrição verifica-se também por efeito da
suspensão do processo nos termos previstos no n° 2 do art° 42.º e no art° 47.º
do RGIT.
O crime previsto e punido pelo art° 105.º, n° 1, do RGIT é punido com a pena de
prisão até 3 anos.
O procedimento criminal prescreve no prazo de 5 anos quando se tratar de crimes
puníveis com a pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano
mas inferior a 5 anos. – art° 118.º, n° 1, alínea c), do CP.
O art° 120.º do CP enumera as causas de suspensão da prescrição, que uma vez
cessada faz voltar a correr a prescrição.
A prescrição do procedimento criminal suspende-se durante o tempo em que o
procedimento criminal estiver pendente a partir da notificação da acusação ou
não tendo esta sido deduzida a partir da notificação da decisão instrutória que
pronunciar o arguido (...) – art° 120.º, n° 1, alínea b), do CP.
Neste caso a suspensão não pode ultrapassar 3 anos – artº 120.º, n.º 2, do CP.
O art° 121.º do CP enumera as causas de interrupção da prescrição sendo que
depois de cada interrupção começa a correr novo prazo de prescrição.
Por outro lado, a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando,
desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão tiver decorrido o prazo
normal da prescrição acrescido de metade – art° 120.º, n° 3, do CP.
São causas de suspensão da prescrição a notificação da acusação – art° 120.º, n°
1, alínea b), do CP.
São causas de interrupção da prescrição a constituição de arguido, a notificação
da acusação, a notificação do despacho que designa dia para a audiência – art°
121.º, n° 1, alíneas a), b) e d), do CP.
O início do prazo da prescrição nos crimes continuados começa a correr desde o
dia da prática do último acto.
O último acto ocorreu em Novembro de 1997.
Em 10/8/98, A. por si e como representante do B. foram constituídos arguidos fls
224 e 225 do 1° volume) em 30/4/99 foram os mesmos notificados da acusação,
facto que teve a virtualidade de interromper e suspender a prescrição (fls 390
verso do 2° volume) e em 15/7/99 foram os mesmos notificados da data da
audiência (fls 400 do 2° volume), factos que tiveram a virtualidade de
interromper a prescrição.
Atento o que se deixa dito, ainda não decorreram 10 anos e meio desde aquela
data (5 anos - prazo normal, mais 2 anos e meio de interrupção e 3 anos de
suspensão) pelo que o ilícito ainda não prescreveu” (fim de transcrição).
A esta fundamentação o recorrente apenas contrapõe (conclusão 6) que “a
notificação efectuada em 10.08.98 não tem natureza interruptiva”.
Ora não há dúvida – nem o recorrente questiona – que em 10/8/98 A. por si e como
representante do B. foram constituídos arguidos (fls 224 e 225 do 1° volume) –
que tem efeito interruptivo nos termos do art. 121º, n.º 1, alínea a), do CP,
com a consequente inutilização do prazo decorrido até então.
E que em 30/4/99 foram os mesmos notificados da acusação (fls 390 verso do 2°
volume). Facto que teve a virtualidade de interromper novamente e suspender o
prazo da prescrição – art. 121°, n.º 1, alínea a), e art. 120°, n.º 1, alínea
b), do CP.
Assim o prazo normal da prescrição contado desde a interrupção, acrescido de
metade, ressalvado o tempo máximo da suspensão (art. 121° do CP) consumar-se-ia
no final do mês de Maio de 2008.
Sucede, porem, que - como resulta do ponto 31º da matéria provada - os arguidos
aderiram ao chamado “Plano Mateus” em 31.01.2007.
Mantendo-se o acordo de pagamento subjacente à referida adesão ao “Plano Mateus”
até à declaração de falência da sociedade comercial, em 19.12.2007 – cfr. ponto
35° da matéria provada.
Resultando ainda do ponto 36º da matéria provada que foi a declaração de
falência que inviabilizou o pagamento ao abrigo do Plano Mateus.
Ora o referido “Plano Mateus” foi instituído pelo DL 124/96, de 10.08,
estabelecendo um regime de “pagamento em prestações dos créditos por dívidas de
natureza fiscal ou à Segurança Social cujo prazo de cobrança voluntária tenha
terminado até 31.07.1996”.
Por sua vez a Lei n.° 51-A/96, de 09.12, veio estabelecer as consequências da
autorização desse regime de pagamento em prestações relativamente aos crimes de
fraude e abuso de confiança fiscal.
Postulando, no seu art. 2º:
1. Se o agente obtiver da administração fiscal autorização para efectuar o
pagamento do imposto e respectivos acréscimos legais em regime prestacional o
processo será suspenso enquanto se mantiver o pagamento das prestações.
2. A autorização a que se refere o número anterior suspende igualmente o
processo de averiguação fiscal enquanto se mantiver o pagamento pontual das
prestações.
3. O prazo de encerramento do processo de averiguação ... bem como o prazo da
prescrição do procedimento criminal por crime fiscal, suspendem-se por efeito da
suspensão do processo, nos termos dos números anteriores.
Assim à contagem do prazo da prescrição supra efectuado há que somar o tempo
durante o qual o procedimento esteve suspenso por efeito da adesão ao referido
“Plano Mateus”.
Suspensão da prescrição que bem se compreende: se existe um acordo de pagamento
voluntário susceptível de extinguir o procedimento criminal (artigo 3º da citada
Lei 51-A/96) não faria sentido que durante o cumprimento de tal acordo, com o
processo suspenso por essa razão, continuasse a correr o prazo da prescrição
como se o processo corresse os seus termos normais.
Assim, por efeito da referida Lei, durante o período que vai de 31.01.2007 até
19.12;2007, o prazo da prescrição esteve suspenso.
E tal suspensão, prevista em Lei especial, não se engloba no limite máximo da
suspensão previsto no n.° 2 do art. 120° do C. Penal - aplicável apenas ao “caso
previsto na alínea b)” do mesmo preceito.
Somando assim ao prazo máximo previsto no citado art. 120°, n.° 2.
Pelo que, adicionando aquele período em que não correu o prazo da prescrição, à
data limite de 31.05.2008 apenas prescreverá volvidos 11 meses e 19 dias sobre
aquela data. O que sucederá num horizonte ainda distante.
Não estando pois completado o prazo da prescrição.
Através do requerimento de 30 de Julho de 2008, o recorrente arguiu a nulidade
do acórdão e a sua inconstituicionalidade por falta de fundamentação, que o
Tribunal da Relação julgou improcedente por decisão de 11 de Novembro seguinte.
O recorrente interpôs então recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do
disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das normas do artigo 120.º, n°
1, alínea b), e n° 2, do Código Penal, quando interpretadas no sentido de que a
suspensão da prescrição do procedimento criminal por crime fiscal, constante do
n° 3 do artigo 2° da Lei n° 51-A/96, de 9 de Dezembro, não se engloba no limite
máximo da suspensão previsto no n° 2 do artigo 120.º do Código Penal, mesmo
tendo tal suspensão ocorrido em data anterior ao começo do prazo da prescrição.
Tendo o recurso sido admitido, o recorrente apresentou alegações em que formula
as seguintes conclusões:
1 — Pretende-se ver apreciada e julgada inconstitucional a norma extraída do
artigo 120º, nº 1, alínea b), e n° 2 do Código Penal, na dimensão e
interpretação que lhe foi dada e aplicada pelo Tribunal a quo na decisão
recorrida;
2 — Segundo a qual, a suspensão da prescrição do procedimento criminal, por
crime fiscal constante do n° 3 do artigo 2° da Lei n° 51-A/96, de 9.12, com
referência aos n°s 1 e 2 do mesmo artigo da Lei, não se engloba no limite máximo
da suspensão previsto no n° 2 do artigo 120.º do Código Penal, aplicável apenas
ao caso previsto na alínea b) do n° 1 do mesmo preceito legal, somando-se assim
ao prazo máximo previsto no citado artigo 120, n° 2. do Código Penal, mesmo
tendo tal suspensão ocorrido em data anterior à data de inicio ou começo do
prazo de prescrição, constante do artigo 119.º, n° 2, alínea b), do Código
Penal;
3 - Que determina que, nos crimes continuados a prescrição só começa a correr
desde o dia da prática do último acto;
4 — Tal interpretação viola os princípios constitucionais consagrados nos
artigos 20.º, 18°, 20,º, 32° e 204°, da Constituição da República Portuguesa;
5 — Porquanto se entende não poder ser ampliada inovatoriamente a tipologia de
causas de suspensão aí previstas;
6 — No Acórdão recorrido, proferido em 16.07.2008, foi apreciada e decidida a
questão da prescrição do procedimento criminal, no caso dos autos, levantada
pelo recorrente;
7 — O início do prazo de prescrição, nos crimes continuados, só começa a correr
desde o dia da prática do último acto, que no caso dos autos, ocorreu em
Novembro de 1997;
8 — No caso em análise, o prazo normal da prescrição, contado desde a
interrupção acrescido de metade, ressalvado o tempo máximo da suspensão (art°
120.º do C. P.), consumar-se-ia no final do mês de Maio de 2008;
9 — O arguido aderiu ao denominado Plano Mateus (Decreto-Lei n° 124/96), em
31.01.1997, mantendo-se o acordo de pagamento em prestações até 19.12.1997.
10 — Estabelecendo o art° 2° do Decreto-Lei n° 51-A/96 que o processo será
suspenso enquanto se mantiver o pagamento das prestações.
11 — Entendeu assim o douto acórdão que à contagem do prazo de prescrição
efectuado e que terminava segundo ele, em 31 de Maio de 2008, há que somar o
tempo durante o qual o procedimento esteve suspenso por efeito da adesão ao
Plano Mateus;
12 — Porque tal suspensão não se engloba no limite máximo previsto no n° 2 do
artigo 120.º do Código Penal, aplicável apenas ao caso previsto na alínea b) do
n° 1 do mesmo preceito legal;
13 — Somando-se assim ao prazo máximo previsto no artigo 120.º, n° 2, do Código
Penal,
14 – Pelo que, adicionado tal período de suspensão à data limite de 31.05.2008,
a prescrição apenas operaria passados mais 11 meses e 19 dias daquela data.
15 — Mesmo que tal período de tempo em que ocorreu a adesão ao Plano Mateus seja
anterior à data de início da prática do último acto criminoso, que ocorreu em
Novembro de 1997;
16 — Data esta que, no caso dos autos, delimita e legalmente marca o início do
prazo da prescrição, relativamente aos crimes continuados (art° 119.º, n° 2,
alínea b), do Código Penal);
17 — O Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão recorrido, ao interpretar a
norma que regula as causas de suspensão de prescrição (art° 120.º do Código
Penal), ampliou inovatoriamente a tipologia das causas aí previstas;
18 — Nelas incluindo a possibilidade da suspensão do prazo da prescrição, quando
este prazo ainda não se podia legalmente iniciar.
19 — Não sendo constitucionalmente admissível ocorrer a suspensão de um prazo de
prescrição, quando este ainda não começou a correr;
20 — Nem se pode iniciar ou adicionar posteriormente, um prazo ou período de
tempo, respeitante a facto ocorrido em data anterior à data do início ou começo
da contagem do prazo da prescrição;
21 — Por conflituante e em violação das normas e princípios constitucionais da
proporcionalidade e dos direitos e garantias de defesa (arts. 32.º e 204.º da
Constituição da República Portuguesa).
22 — O artigo 2° do Decreto-Lei n° 51-A/96 refere expressamente que “o processo
será suspenso enquanto se mantiver o pagamento a prestações;
23 — Portanto apenas durante aquele período de Janeiro a Novembro de 1997;
24— E se tal for legalmente possível.
25 — É materialmente inconstitucional, por ofensa dos princípios da
proporcionalidade e dos direitos e garantias de defesa (art° 32.º da
Constituição da República Portuguesa), a interpretação normativa que amplia, sem
qualquer limite temporal, os prazos de prescrição do procedimento criminal, como
consequência de uma suspensão, iniciada ou resultante de facto ocorrido em data
anterior à data do legal do início ou começo daquele prazo de prescrição.
26 — Tal interpretação viola os princípios constitucionais consagrados nos arts.
2º, 18.º, 20.º, 32.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa, porquanto
se entendem feridos os princípios de certeza e paz jurídica, de defesa do Estado
de Direito Democrático e do progressivo esbatimento da necessidade de
perseguição penal, com o decurso do tempo, à luz dos fins que tal perseguição
serve.
27 — Tais valores, reclamam por si só, que o instituto da prescrição tenha de
ser visto e considerado como um valor constitucional em si mesmo, para o comum
dos ilícitos:
28 — Sendo razoável que a sociedade civil possa entender, mantendo-se em vigor,
na sua essência, os preceitos que instituem a prescrição que, uma vez decorrido
o tempo previsto nesses preceitos, não se reclame perseguição criminal aos
agentes de crimes, cuja prática há muito ocorreu;
29 — E que aquela perseguição não opere, mediante normas ou processos
interpretativos, de onde resulta, na prática, a ineficácia do instituto de
prescrição, ou injustas incertezas quanto ao seu termo ou prazo.
30— A dimensão normativa e interpretativa das normas do artigo 120.º, n° 1,
alínea b), e n° 2 do Código Penal deve ser dada no sentido de não permitir a
soma ou ampliação ao prazo máximo nele previsto, de qualquer outro prazo de
suspensão do procedimento criminal por factos ocorridos em data anterior à data
de inicio do prazo de prescrição estabelecido do artigo 119.º, n° 2, alínea b),
do Código Penal.
Termos em que, devem as normas constantes do artigo 120.º, n° 1, alínea b), e no
n.º 2 do Código Penal, quando interpretadas e aplicadas como o foram na decisão
recorrida, em termos de admitir e permitir que a suspensão da prescrição do
procedimento criminal, por crime fiscal constante do n° 3 do artigo 2° da Lei n°
51-A/96, com referência aos n°s 1 e 2 do mesmo artigo, não se englobe no limite
máximo da suspensão previsto no n° 2 do artigo 120.º do Código Penal, aplicável
apenas ao caso previsto na alínea b) do n° 1 do mesmo preceito legal, somando-se
assim ao prazo máximo previsto no citado artigo 120.º, n° 2, do Código Penal,
mesmo tendo tal suspensão ocorrido em data anterior à data de início ou começo
do prazo de prescrição, constante do artigo 119.º, n° 2, alínea b), do Código
Penal, serem julgadas inconstitucionais por limitarem as garantias de defesa do
arguido e violarem os princípios constitucionais consagrados nos artigos 2°,
18°, 20.º, 32° e 204° da Constituição da República Portuguesa.
O magistrado do Ministério Público contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
1. Não é inconstitucional a norma resultante do artigo 120º, nº 1, alínea b), e
nº 2 do Código Penal, “quando interpretada e aplicada como o foi na decisão
recorrida, em termos de admitir e permitir que a suspensão da prescrição do
procedimento criminal, por crime fiscal constante do n° 3 do artigo 2° da Lei n°
51-A/96, com referência aos n°s 1 e 2 do mesmo artigo, não se englobe no limite
máximo da suspensão previsto no n° 2 do artigo 120.º do Código Penal, aplicável
apenas ao caso previsto na alínea b) do n° 1 do mesmo preceito legal, somando-se
assim ao prazo máximo previsto no citado artigo 120.º, n° 2, do Código Penal,
mesmo tendo tal suspensão ocorrido em data anterior à data de início ou começo
do prazo de prescrição, constante do artigo 119.º, n° 2, alínea b), do Código
Penal”.
2. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.
Cabe apreciar e decidir.
II – Fundamentação
2. Os factos que relevam para a apreciação do recurso de constitucionalidade são
os seguintes:
- num período que mediou entre Fevereiro de 1995 e Outubro de 1997, A., na
qualidade de representante do B., Lda., remeteu ao serviço de finanças
declarações periódicas relativas ao Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no
total de 39 862 554$00, sem que as fizesse acompanhar dos respectivos meios de
pagamento (n.º 5 da matéria de facto);
- nos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 1997, o B., Lda., através de A.,
liquidou aos clientes o IVA relativo às transacções realizadas e recebeu as
respectivas importâncias (n.º 6 da matéria de facto);
- e enviou ao serviço de finanças, em Novembro e Dezembro de 1997 e em Janeiro
de 1998 as competentes declarações periódicas, sem as fazer acompanhar dos
respectivos meios de pagamento, nos montantes de 1 499 162$00, 593 695$00 e 1
949 331$00, respectivamente (n.ºs 7 e 8 da matéria de facto).
- A. e o B., Lda., em cujo nome e interesse actuou, nos períodos anteriormente
referidos, receberam, por diversas vezes, montantes de IVA não inferiores a 43
904 742$00, que fizeram seus, destinando-os, entre outros fins, ao pagamento de
salários e de fornecedores, apesar de saberem que a eles não tinham direito,
sendo aqueles montantes resultantes do imposto liquidado a terceiros e
efectivamente recebido (n.º 9 da matéria de facto).
- em 31 de Janeiro de 1997, A. aderiu ao chamado “Plano Mateus” com o propósito
de regularizar as dívidas da empresa ao Estado (n.º 31 da matéria de facto).
- por sentença de 19 de Dezembro de 1997, foi decretada a falência da sociedade
B., Lda. (n.º 35 da matéria de facto);
- esta situação inviabilizou o pagamento gradual das dívidas ao abrigo do Plano
Mateus (n.º 36 da matéria de facto).
Resulta ainda dos elementos do processo que A., por si e como representante do
B., foi constituído arguido, no âmbito do presente processo penal, em 10 de
Agosto de 1998 (fls 224-225), foi notificado da acusação em 30 de Abril de 1999
(fls 390 verso) e da designação de data para a audiência em 15 de Julho seguinte
(fls 400).
Com base nos factos muito sucintamente relatados, o arguido, ora recorrente, foi
condenado, por decisão de primeira instância, pela prática de um crime de abuso
de confiança fiscal, na forma continuada, previsto e punido nos artigos 30º, n.º
2, e 79º, do Código Penal e 7º, n.º 1, e 105.º, nº 1, do RGIT.
Em sede de recurso, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou o julgado e,
contrariando a tese sufragada pelo recorrente, deu como não verificada a
prescrição do procedimento criminal, essencialmente com base na seguinte ordem
de considerações:
- o prazo prescricional, iniciado em Novembro de 1997, data em que ocorreu o
último acto ilícito, interrompeu-se por efeito da notificação da acusação ao
arguido, mantendo-se suspenso desde esse momento até ao limite máximo de três
anos, nos termos previstos no artigo 120º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do Código
Penal;
- nestes termos, a prescrição nunca poderia operar, ressalvado o tempo de
suspensão, antes de transcorrido o prazo de prescrição aplicável (cinco anos)
acrescido de metade (dois anos e meio), como prevê o artigo 121º, n.º 3, do
Código Penal;
- havendo ainda que acrescer ao prazo normal de suspensão resultante do artigo
120º, n.º 2, do Código Penal, o prazo de suspensão especialmente previsto no
artigo 2º, n.º 3, da Lei n.º 51-A/96, de 9 de Dezembro, por virtude da adesão do
arguido ao regime de pagamento de dívidas fiscais em prestações a que se refere
o Decreto-Lei n.º 124/96, de 10 de Agosto;
- implicando o prolongamento do prazo prescricional pelo período de 11 meses e
19 dias correspondente ao intervalo entre 31 de Janeiro a 19 de Dezembro de
1997, durante o qual vigorou o regime prestacional do Decreto-Lei n.º 124/96.
Não se conformando com o assim decidido, o recorrente considera serem
inconstitucionais as normas do artigo 120.º. n° 1, alínea b), e n.º 2 do Código
Penal, por violação do disposto nos artigos 2°, 18°, 20.º, 32° e 204° da
Constituição, quando interpretadas – tal como o foram pela decisão recorrida –
no sentido de que a suspensão da prescrição do procedimento criminal a que se
refere o n° 3 do artigo 2° da Lei n° 51-A/96 não se engloba no limite máximo da
suspensão previsto no n° 2 do artigo 120.º do Código Penal, e poderá ainda
acrescer a esse limite, mesmo quando o facto determinante de tal suspensão tenha
ocorrido em data anterior à do começo do prazo prescricional.
Para explicitar o invocado vício de inconstitucionalidade, o recorrente refere
que a interpretação normativa efectuada pelo acórdão recorrido amplia
inovatoriamente a tipologia de causas de suspensão previstas no artigo 120º do
Código Penal (conclusões 5ª e 17ª), alarga, sem qualquer limite temporal, os
prazos de prescrição do procedimento criminal (conclusão 25ª), e põe em causa o
progressivo esbatimento da necessidade de perseguição penal por efeito do
decurso do tempo (conclusão 26ª).
De tudo devendo concluir-se – como alega - que a referida interpretação
normativa viola o princípio da proporcionalidade e as garantias de defesa do
arguido, bem como o princípio da certeza e paz jurídica.
A tese da inconstitucionalidade radica, por conseguinte, na existência de uma
diminuição das garantias de defesa do arguido por via da configuração de uma
suspensão do prazo de prescrição não prevista na lei penal e sem limite
temporal, de onde também decorre a violação do princípio da proporcionalidade;
e, por outro lado, na violação do princípio da segurança jurídica, na medida em
que o alargamento do período de suspensão do prazo prescricional põe em causa o
esbatimento pelo decurso da necessidade de perseguição criminal e, desse modo, a
paz social.
3. O que o tribunal recorrido fez - deve começar por dizer-se - foi aditar, para
efeito da contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, os períodos
de suspensão do prazo que resultavam de diferentes regimes jurídicos: a
suspensão por efeito da notificação da acusação ao arguido, nos termos do artigo
120.º, n° 1, alínea b), do Código Penal, e que não podia ultrapassar o limite de
3 anos como prevê o n.º 2 desse artigo; e a suspensão resultante de um diverso
facto jurídico, que consistiu na adesão do arguido ao regime prestacional de
pagamento das dívidas fiscais, a que se refere o artigo 2°, n.º 3, da Lei n°
51-A/96.
De facto, o Código Penal prevê que a prescrição do procedimento criminal se
suspenda, para além dos casos especialmente previstos na lei, durante o tempo em
que decorreram as situações descritas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo
120º, incluindo o caso de o procedimento criminal se encontrar pendente «a
partir da notificação da acusação», hipótese versada na primeira parte da alínea
b) desse n.º 1; e o período de suspensão precisamente previsto nessa alínea b)
não pode ultrapassar, como explicita o n.º 2 do mesmo artigo 120º, o prazo de 3
anos.
A Lei n° 51-A/96, por sua vez, instituiu um regime especial de suspensão do
processo penal fiscal e do prazo de prescrição do procedimento criminal, que é
apenas aplicável aos crimes de fraude fiscal, abuso de confiança fiscal e
frustração de créditos fiscais que resultem de condutas ilícitas que tenham dado
origem às dívidas abrangidas pelo disposto no Decreto-Lei n.º 225/94, de 5 de
Setembro, e no Decreto-Lei n.º 124/96, dde 10 de Agosto (artigo 1º), e que
engloba as situações em que o agente do crime tenha sido autorizado a efectuar o
pagamento das dívidas fiscais em regime de prestações (artigo 2º); sendo ainda
certo que o pagamento integral dos impostos e acréscimos legais, de acordo como
esse regime legal, extingue a responsabilidade criminal (artigo 3º).
Nada permite concluir, neste contexto, que a aplicação conjugada de ambos os
regimes de suspensão do prazo prescricional viole qualquer dos princípios
constitucionais invocados pelo recorrente.
O Código Penal ressalva a possibilidade de a legislação avulsa instituir regimes
especiais de suspensão do prazo de prescrição do procedimento criminal (proémio
do artigo 120º), e essas outras disposições especiais têm igual valor
legislativo desde que cumpram os critérios de repartição de competência
legiferante e, em especial, observem o regime de reserva parlamentar que for
aplicável (cfr. artigos 112º, n.º 1, e 165º, n.º 1, alínea c), da Constituição).
Nenhuma norma ou princípio constitucional impõe que todo o direito penal e
processual penal, e designadamente as matérias a que se referem os artigos 27º a
32º da Constituição, deva constar de um único diploma legal, colocando-se aí
apenas um problema de técnica legislativa que o legislador deverá ponderar,
dentro da sua margem de livre conformação, em função da conveniência de regular
de forma unitária e sistemática a disciplina fundamental de um certo ramo de
direito ou sector da vida social.
Não é, por isso, constitucionalmente ilegítimo que um novo regime de suspensão
do prazo prescricional tenha sido introduzido por um diploma avulso, quando é,
aliás, certo que essa alteração normativa surge como medida legislativa de
natureza conjuntural, no quadro global de regularização das dívidas ao Estado
(que havia sido implementada pelos citados Decretos-Leis n.ºs 225/94 e 124/96),
e que se justifica plenamente que tenha sido objecto de tratamento autónomo e
diferenciado (cfr. preâmbulo deste último diploma legal).
Por outro lado, como o Tribunal Constitucional tem também reconhecido, não
existe norma constitucional que explicitamente consagre a regra da
imprescritibilidade do procedimento criminal (acórdão n.º 629/2005), sendo
apenas exigível, como emanação do princípio da legalidade da perseguição
criminal, que o Estado proceda à regulamentação da prescrição - incluindo o
regime de interrupção e suspensão dos prazos prescricionais - de uma forma
precisa e concreta, obviando a situações em que se opere, na prática, a
ineficácia do instituto da prescrição (Faria e Costa, Linhas de Direito Penal e
de Filosofia: alguns cruzamentos reflexivos, Coimbra, 2005, págs. 179 e 187;
neste sentido aponta também o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 483/2002).
Ora, no caso concreto, não pode deixar de considerar-se cumprido este
desiderato. Segundo dispõe a Lei n° 51-A/96, nos casos em que o agente tiver
obtido da administração fiscal, nos termos legais, a autorização para efectuar o
pagamento dos impostos e respectivos acréscimos legais em regime prestacional,
há lugar à suspensão do processo de averiguações, bem como do processo penal
fiscal, enquanto se mantiver o pagamento pontual das prestações, e, por efeito
da suspensão do processo, ocorre também a suspensão do prazo de prescrição do
procedimento criminal pelo mesmo período de tempo (artigo 2º).
O comando legal não pode deixar qualquer dúvida de interpretação e, enquanto
medida de política legislativa, é também perfeitamente inteligível.
Visando o legislador criar incentivos à regularização de dívidas fiscais, e
tendo previsto a extinção da responsabilidade criminal em relação às condutas
ilícitas que tenham originado essas dívidas, desde que tenha sido efectuado o
pagamento integral dos impostos e acréscimos legais em regime prestacional, não
faria qualquer sentido que, simultaneamente com o procedimento de pagamento a
prestações, continuasse a decorrer o processo penal em vista a obter a
condenação do agente pela sua actividade ilícita.
Neste condicionalismo, a única solução juridicamente defensável, do ponto de
vista da protecção da confiança dos cidadãos, era a de assegurar a suspensão do
processo administrativo ou criminal que estivesse já em curso, tendo em linha de
conta que a adesão das entidades devedoras ao plano de pagamento das dívidas
conduziria normalmente à inutilidade da lide por extinção da responsabilidade
criminal.
Por outro lado, em face dos curtos prazos de prescrição que estão definidos na
lei penal geral (artigo 118º do Código Penal), a suspensão do processo deveria
ter como lógica consequência a própria suspensão do prazo de procedimento
criminal, sob pena de o mecanismo de regularização de dívidas poder ser
utilizado fraudulentamente como forma de o agente se eximir, pelo decurso do
tempo, à perseguição criminal.
Além de que, neste caso, a causa suspensiva do prazo de prescrição do
procedimento criminal foi criada por lei em benefício do agente, e não pode ser
imputada ao funcionamento da administração da justiça ou a um outro qualquer
factor externo à posição processual do arguido .
Há por isso fundamento material bastante para o estabelecimento de uma nova
causa de suspensão da prescrição, sendo que esta é tão ou mais justificável que
qualquer das outras elencadas no artigo 120º do Código Penal. E tratando-se de
uma causa suspensiva fundada em facto jurídico diverso daquele que está previsto
na alínea b) do n.º 1 deste artigo, nenhuma razão subsistia para que o lapso de
tempo durante o qual o processo estivesse suspenso com aquele fundamento devesse
encontrar-se abrangido pelo limite estipulado no n.º 2 desse preceito, que
apenas se reporta às situações em que o processo está pendente após a
notificação da acusação ou da decisão instrutória.
4. Acresce que, contrariamente ao que vem alegado, a suspensão do prazo de
prescrição do procedimento criminal a que se refere o artigo 2º, n.º 3, da Lei
n° 51-A/96 não opera de forma ilimitada.
Embora esse dispositivo não fixe expressamente qualquer limite temporal para a
suspensão, esta está necessariamente indexada ao próprio sistema legal de
diferimento do pagamento dos créditos, conforme o previsto no artigo 5º do
Decreto-Lei n.º 124/96, o qual não poderá exceder o período correspondente a 150
prestações mensais. Além de que as dívidas tornam-se exigíveis quando deixe de
ser efectuado o pagamento integral e pontual das prestações previstas, ou seja
revogada a autorização para a regularização de dívidas através desse
procedimento ou o devedor incorra em incumprimento de qualquer obrigação
tributária principal (artigo 3º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 124/96).
E havendo razão – como se pôde constatar - para instituir esta nova causa
suspensiva da prescrição, bem se compreende que ela não deva cessar enquanto se
mantiver a situação jurídica que lhe deu origem, e, portanto, enquanto se não
extinguir, por qualquer motivo legalmente relevante, o procedimento de pagamento
das dívidas em regime prestacional.
Como facilmente se pode concluir, não há, nestas circunstâncias, qualquer
preterição das garantias de defesa do arguido, ou sequer violação do princípio
da proporcionalidade ou do princípio da legalidade da perseguição criminal.
O regime da citada Lei n° 51-A/96 foi instituído em benefício do agente do
crime, que poderá eximir-se, por via da adesão ao plano de regularização de
dívidas e a consequente suspensão do processo criminal, à responsabilidade
decorrente da sua anterior actividade ilícita que era legalmente punível. O
prazo pelo qual o processo se encontra suspenso (com a correspondente suspensão
da prescrição) é aquele que permite dar concretização prática ao procedimento
pelo qual se obtém a isenção da responsabilidade criminal, e é, por conseguinte,
uma medida necessária, adequada e proporcional ao objectivo que se pretende
atingir. Não pode dizer-se, por outro lado, que o regime legal assim gizado põe
em causa a paz social (na medida em que prolonga o período de tempo durante o
qual é ainda possível ao Estado exercer a pretensão punitiva), quando a verdade
é que a causa suspensiva da prescrição é determinada pela oportunidade que é
dada ao agente, através do pagamento diferido das dívidas fiscais, de obter o
arquivamento do processo crime e se colocar a coberto da perseguição penal.
5. O recorrente sustenta, no entanto, que a interpretação normativa efectuada
pelo tribunal recorrido é constitucionalmente ilegítima, também na medida em que
permite operar a suspensão antes ainda da data em que se iniciou o prazo de
prescrição.
Esta arguição assenta na circunstância de o acórdão recorrido ter relevado, para
efeitos do artigo 2º, n.º 3, da Lei n° 51-A/96, o prazo decorrido entre a adesão
do arguido ao plano de regularização de dívidas, em 31 de Janeiro de 1997, e o
momento em que essa situação cessou por efeito da declaração de falência, em 19
de Dezembro seguinte, quando é certo que o último facto ilícito, que determinou
o início da contagem do prazo prescricional, ocorreu em Novembro de 1997.
Não compete ao Tribunal Constitucional, como se sabe, tomar posição sobre a
correcção da solução jurídica adoptada pelo tribunal recorrido, na perspectiva
da interpretação e aplicação do direito ordinário, mas tão-só controlar a
conformidade constitucional da interpretação normativa que foi acolhida.
E, neste plano, o único princípio constitucional que pode estar em causa, e a
que deverá reconduzir-se a alegação do recorrente, tendo em conta o
circunstancialismo do caso, é o da segurança jurídica.
Uma das exigências que decorre do princípio da segurança jurídica, como elemento
essencial de um Estado de Direito, que poderá extrair-se do artigo 2º da
Constituição, é a previsibilidade e calculabilidade da actuação estadual (Reis
Novais, Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa,
Coimbra, 2004, pág. 261).
E neste sentido também o Tribunal Constitucional tem afirmado que o princípio do
Estado de direito democrático postula «uma ideia de protecção da confiança dos
cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que
implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas
expectativas que a elas são juridicamente criadas», conduzindo à consideração de
que «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou
demasiado opressiva àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a
comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de
direito democrático terá de ser entendida como não consentida pela lei básica»
(entre outros, o Acórdão nº 303/90, in “Acórdãos do Tribunal Constitucional”,
17º vol. V, pág.65).
E ainda no recente acórdão n.º 50/2009 se ponderou a necessidade de proceder, em
cada caso, a um justo balanceamento entre a protecção das expectativas dos
cidadãos, decorrentes do princípio do Estado de direito democrático, e a
liberdade constitutiva e conformadora do legislador, ao qual, inequivocamente,
há que reconhecer a legitimidade de tentar adequar as soluções jurídicas às
realidades existentes, consagrando as soluções mais acertadas e razoáveis. Um
tal equilíbrio, como se afirma no mesmo aresto, será postergado nos casos em que
«a lei viola aquele mínimo de certeza e segurança que as pessoas devem poder
depositar na ordem jurídica de um Estado de direito, impondo-se, então, a
intervenção do princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica que
está implícito no princípio do Estado de direito democrático, por forma que a
obstar a que nova lei vá desrespeitar os mínimos de certeza e segurança dos
destinatários na ordenação da sua vida de acordo com a ordem jurídica vigente».
No caso vertente, importa notar que os factos ilícitos a que se reporta o
processo penal, e pelos quais o arguido, ora recorrente, foi condenado, remontam
ao período que mediou entre 1994 e 1997, sendo o último facto ilícito cometido
em Novembro deste ano.
O arguido aderiu ao plano de pagamento diferido das dívidas fiscais em Janeiro
de 1997, num momento em que estava já incurso na prática continuada de crime de
abuso de confiança fiscal, por falta de entrega à administração fiscal das
prestações tributárias que estava obrigado a liquidar. A própria possibilidade
de acesso aos procedimentos de regularização de dívidas previsto no Decreto-Lei
n.º 124/96 – de que depende o funcionamento do regime de suspensão de processo
fiscal penal mencionado na Lei n° 51-A/96 e a consequente suspensão da
prescrição – pressupunha que as dívidas em causa tivessem origem em actuações
ilícitas puníveis por qualquer dos tipos legais definidos nessa Lei e, entre
eles, o crime de abuso de confiança fiscal.
Estando em causa uma continuação criminosa nada impedia, por outro lado, que o
correspondente procedimento criminal pudesse ser instaurado a partir da notícia
de qualquer dos actos ilícitos praticados, e por isso também a partir do
primeiro desses actos ou de qualquer dos actos intermédios até ao termo da
actividade ilícita.
A circunstância de a lei determinar que o prazo de prescrição só corre, nos
crimes continuados, desde o dia da prática do último acto, deve-se apenas ao
facto de existir aí uma unidade de propósito criminoso, com conexão temporal e
uniformidade de processo de actuação, que justifica a unificação dos diversos
actos de execução do mesmo tipo legal de crime, e que permite reportar ao último
acto praticado o momento a partir do qual se torna exigível, em ordem ao valor
social da paz jurídica, a imposição de um limite temporal para a perseguição
penal.
Não significa isso que a acção penal não possa ser exercida em relação a
qualquer uma das plúrimas condutas do agente que preencham o tipo de ilícito
penal.
Em todo este contexto, o arguido não podia ignorar que se encontrava sujeito à
eventualidade de lhe ser aplicado o regime de suspensão do processo penal fiscal
logo que este lhe fosse instaurado, com implicações também na contagem do prazo
de prescrição por efeito da suspensão prevista no n.º 3 do artigo 2º da Lei n.º
51-A/96.
A adesão ao esquema de pagamento diferido das dívidas fiscais implicava à
sujeição ao regime legal globalmente considerado e, portanto, também, às suas
diversas incidências, incluindo no tocante à repercussão que poderia ter na
sustação do processo crime e consequente suspensão da prescrição.
Não poderá considerar-se, neste condicionalismo, que a interpretação normativa
adoptada pelo tribunal recorrido represente uma violação do princípio da
segurança jurídica, em termos de poder ser tida como constitucionalmente
desconforme.
Não ocorre, pois, a violação do disposto nos artigos 2°, 18°, 20.º e 32° da
Constituição. A norma do artigo 204° - também invocada pelo recorrente -, na
medida em que se limita a permitir aos tribunais a recusa de aplicação de normas
que infrinjam o disposto na Constituição, tem um carácter meramente adjectivo e
não assume relevo autónomo como parâmetro de constitucionalidade, pelo que não
tem de ser considerada.
III. Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC.
Lisboa, 12 de Março de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Gil Galvão
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