|
Processo n.º 1027/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., S.A., requereu no Tribunal Judicial de Leiria (processo n.º 7266/07.3TBLRA,
do 4º Juízo Cível), a declaração de insolvência de B. e C..
Realizada audiência de julgamento, foi proferida sentença em 29-4-2008, que
decretou a insolvência dos requeridos.
Inconformados, estes interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra
e apresentaram alegações em que impugnaram a decisão com fundamento na audição
da prova gravada.
Foi proferido despacho que ordenou o desentranhamento daquelas alegações por
terem sido entregues fora de prazo, tendo sido julgado deserto o recurso por
falta de alegações.
Os requeridos interpuseram recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de
Coimbra que, por acórdão proferido em 18 de Novembro de 2008, julgou
improcedente o recurso.
Os requeridos recorreram então para o Tribunal Constitucional, nos seguintes
termos:
“…Em cumprimento do disposto no n.º 2, do artº 75º - A, da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro, informa-se que os ora recorrentes suscitaram a questão da
inconstitucionalidade da norma do artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo
Civil, na interpretação que dela fez o Tribunal de 1ª instância, por violação do
disposto nos artº 18.º, n.º 2 e 3, 20.º e 26º, todos da Constituição da
República Portuguesa (CRP), quer no requerimento para emissão das guias para
pagamento da multa, a que alude o n.º 5 do artº 145º do CPC, remetido a juízo
via fax, em 14 de Julho último, quer nas alegações de recurso interposto do
despacho proferido pelo Tribunal de 1ª instância que indeferiu tal requerimento.
Esse Venerando tribunal, apreciando o recurso interposto da decisão proferida
pelo Tribunal da 1ª instância a que acima se faz referência, confirmou a
interpretação que aquele fez da norma do artº 698º, n.º 6, do CPC, com o sentido
interpretativo cuja inconstitucionalidade havia sido suscitada pelos ora
recorrentes”.
Foi proferida decisão sumária, em 13-1-2009, que julgou improcedente este
recurso, com a seguinte fundamentação.
“1. Do objecto do recurso
A questão de constitucionalidade suscitada pelos recorrentes nas alegações de
recurso apresentadas perante o Tribunal da Relação de Coimbra respeita ao
disposto no artigo 698.º, n.º 6, do Código de Processo Civil (CPC), com a
redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de Setembro,
na interpretação de que o prazo do recurso que tenha por objecto a reapreciação
da prova gravada é um prazo único, pelo que é a constitucionalidade desta
interpretação que os recorrentes pretendem que o Tribunal Constitucional
fiscalize.
Estando nós perante a enunciação de um critério dotado de suficiente abstracção
e generalidade para se qualificar como normativo e tendo ele sido, efectiva e
adequadamente, suscitado pelos recorrentes e sustentado, como ratio decidendi,
pelo acórdão recorrido, nada obsta à fiscalização pretendida.
Contudo, como a questão colocada se apresenta de solução simples, revelando-se
o recurso interposto manifestamente infundado, justifica-se que o seu
conhecimento seja efectuado por decisão sumária, nos termos do artigo 78.º - A,
n.º 1, da LTC.
2. Do mérito do recurso
O artigo 698.º, na redacção do Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de Setembro,
relativamente ao prazo para apresentação de alegações em recurso, dispunha o
seguinte:
“(…)
2 – O recorrente alega por escrito no prazo de 30 dias, contados da notificação
do despacho de recebimento do recurso, podendo o recorrido responder, em
idêntico prazo, contado da notificação da apresentação da alegação do apelante.
3 – Se tiverem apelado ambas as partes, o primeiro apelante tem ainda, depois
de notificado da apresentação da alegação do segundo, direito a produzir nova
alegação, no prazo de 20 dias, mas somente para impugnar os fundamentos da
segunda apelação.
4 – Havendo vários recorrentes ou vários recorridos, ainda que representados por
advogados diferentes, o prazo das respectivas alegações é único, incumbindo à
secretaria providenciar para que todos possam proceder ao exame do processo
durante o prazo de que beneficiam.
5 – Se a ampliação do objecto do recurso for requerida pelo recorrido nos termos
do artigo 684º-A, pode ainda o recorrente responder à matéria da ampliação, nos
20 dias posteriores à notificação do requerimento.
6 – Se o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada, são
acrescidos de 10 dias os prazos referidos nos números anteriores.”
(Note-se que o transcrito artigo foi entretanto revogado pelo Decreto-lei n.º
303/2007, de 24 de Agosto, continuando, contudo, a aplicar-se a processos
entrados em juízo em data anterior a 1-1-2008, como sucede com o presente
processo).
A decisão recorrida interpretou o acréscimo de prazo referido no n.º 6, como não
dando origem a um prazo suplementar distinto, relativamente aos prazos referidos
nos números anteriores, mantendo ambos a sua individualidade, mas sim como
passando a existir um prazo único, resultante da soma do prazo regra, com o
prazo do acréscimo ali previsto.
Os recorrentes entendem que esta interpretação do disposto no n.º 6, do artigo
698.º, do CPC, viola o disposto nos artigos 18.º, n.º 2, e 3, 20.º e 26.º, da
CRP.
Atenta a matéria meramente processual sobre a qual incide a interpretação
questionada apenas está em causa o direito dos cidadãos a um processo
equitativo, assegurado pelo disposto no artigo 20.º, n.º 4, da CRP.
Conforme já tem sido afirmado repetidamente por este Tribunal, no domínio do
processo civil existe uma ampla discricionariedade legislativa que permite ao
legislador ordinário, por razões de conveniência, oportunidade e celeridade,
fazer incidir ónus processuais sobre as partes e prever quais as cominações ou
preclusões que resultam do seu incumprimento, sem que isso signifique que as
soluções adoptadas sejam imunes a um controle de constitucionalidade que
verifique, nomeadamente, se esses ónus são funcionalmente adequados aos fins do
processo e se não violam o chamado princípio da proibição da indefesa.
Ora, sendo funcionalmente adequado o estabelecimento de um prazo preclusivo
para apresentação de alegações em recurso, é contudo necessário que esse prazo
tenha uma dimensão que assegure ao recorrente a possibilidade de impugnar
criteriosamente os fundamentos da decisão recorrida, de forma a permitir-lhe um
exercício consciente, fundado e eficaz do seu direito de recurso.
A interpretação questionada tem apenas como consequência, relativamente ao prazo
regra de apresentação de alegações em recurso, que é aquele que está em causa
neste processo, quando se impugne a matéria de facto, que ele seja de 40 dias, o
qual não se revela de modo algum insuficiente para o recorrente enunciar
criteriosamente as razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida.
É certo que a interpretação do mesmo preceito sustentada pelos recorrentes
faria aumentar o período para elaboração das alegações de recurso de, pelo
menos, mais um dia, mas isso em nada interfere na conformidade constitucional da
interpretação questionada, a qual deve ser avaliada pelo seu próprio conteúdo.
Do exposto resulta que a interpretação do artigo 698.º, n.º 6, do C.P.C., com a
redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de Setembro,
na interpretação de que o prazo do recurso que tenha por objecto a reapreciação
da prova gravada é um prazo único, não ofende qualquer parâmetro
constitucional, nomeadamente o direito a um processo equitativo (artigo 20.º,
n.º 4, da C.R.P.), pelo que o recurso deve ser julgado improcedente”.
Os recorrentes reclamaram desta decisão, com a seguinte argumentação:
“…os Reclamantes entendem que as alegações do recurso de apelação julgado
deserto foram remetidas a juízo no 3º dia útil posterior ao termo do prazo, ou
seja, de forma tempestiva, visto que a interpretação consentânea com a
verdadeira intenção do legislador e conforme à CRP é a de que a norma contida no
nº 6 do artigo 698º deve ser interpretada no sentido de que ao prazo “regra” de
30 dias para apresentar as alegações acrescem mais 10 dias quando o recurso tem
também como finalidade a reapreciação da prova gravada.
Dez dias que representam um verdadeiro prazo adicional de dez dias (cfr. Ac. do
Tribunal da Relação de Coimbra de 06/06/2006 in www.dgsi.pt).
Nestes termos, os prazos conjugados do artigo 698º n.ºs 2 e 6 deverão ser
contados como dois prazos distintos, sem prejuízo de o cômputo de tal prazo
dever ser feito de forma contínua, como impõe expressamente o artigo 144º, nº 1
do CPC. A norma do artº 698º, nºs 2 e 6, do CPC, na interpretação que dela fez o
Tribunal de 1ª Instância e que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de
Coimbra, é inconstitucional, por violação do artºs 18º, nºs 2 e 3, 20º e 26º,
todos da CRP.
A consagração constitucional dos direitos fundamentais não se esgota no plano
material, assumindo aquela protecção, uma dimensão procedimental e processual,
pelo que no que diz respeito aos prazos processuais para a prática de actos em
juízo estes são peremptórios, o que significa que o seu decurso extingue o
direito de praticar um qualquer acto.
As regras de contagem destes prazos, como sejam as que definem início, duração e
termo terão de ser claras e inequívocas, não devendo permitir quaisquer dúvidas
na sua interpretação e aplicação sob pena de poderem ser postergados
instrumentos de defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos
particulares, nomeadamente, o direito de defesa e o princípio do duplo grau de
jurisdição, existindo nesse caso uma violação do direito fundamental de acesso
aos tribunais.
O estabelecimento legal de prazos de caducidade para a propositura de acções ou
interposição de recursos será inconstitucional quando, se por desadequado ou
desproporcionado, inviabilizar ou dificultar excessivamente o acesso aos
tribunais. É o que manifestamente sucede no caso em apreço, pois que «os regimes
adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e
conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando portanto, o
legislador autorizado, nos termos dos artigos 13º e 18º, n.ºs 2 e 3, a criar
obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma,
desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela
jurisdicional efectiva [...]. O direito ao processo, conjugado com o direito à
tutela jurisdicional efectiva, impõe, por conseguinte, a prevalência da justiça
material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a
capa de «requisitos processuais», se manifeste numa decisão que, afinal, não
consubstancia mais do que uma simples denegação de justiça» (cfr. JORGE MIRANDA
- RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005,
pp. 190 e 191).
De facto, o direito a um processo equitativo não pode tolerar interpretações
normativas dúbias que criam para as partes exigências formais que elas não
podiam nem deviam razoavelmente antecipar, sancionado o incumprimento
(desculpável) de tais exigência em termos definitivos e irremediáveis,
inviabilizando qualquer suprimento ou correcção (vide, neste sentido LOPES DO
REGO, “Os princípios constitucionais da proibição de indefesa, da
proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo
civil”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa,
Coimbra, 2003, e JORGE MIRANDA - RUI MEDEIROS, op. cit.).
Assim, considerando que a declaração de insolvência afecta a capacidade jurídica
das pessoas singulares, designadamente, por força do artigo 81º do Código da
Insolvência e da Recuperação das Empresas, e, por conseguinte, restringe os
direitos pessoais constitucionalmente protegidos, nomeadamente a capacidade
civil consagrada no artigo 26º da CRP, a norma constante do artigo 698º, nº 6 do
CPC interpretada com o sentido que lhe é dado pelo tribunal de 1ª instância e
confirmado pelo Tribunal da Relação de Coimbra é inconstitucional, por violação
dos artigos 20º, 26º e 18º, nºs 2 e 3 da CRP.
Ao invés, se a referida disposição processual civil for interpretada com o
sentido que lhe é dado pelos ora Reclamantes, ou seja, de que, aos recorrentes,
nos casos em que o recurso tiver por objecto a reapreciação da prova gravada,
para além do prazo geral de 30 dias, constante do nº 2 do art. 698º do CPC, é
concedido um prazo adicional ou suplementar de 10 dias para a apresentação das
respectivas alegações, está em perfeita concordância com os princípios
constitucionais consagrados constantes dos supra referidos artigos da CRP.
Isto porque o artigo 698º, nº 6 do CPC, interpretado no sentido restritivo
acolhido pelo Tribunal a quo é claramente contrário ao direito de defesa e ao
direito ao recurso e, por consequência, aos interesses em causa, protegidos como
já se referiu ao abrigo dos artigos 20º e 26º da CRP.
Acresce que a citada norma processual civil interpretada com o sentido que lhe é
conferido pelos Reclamantes em nada contradiz o princípio da preclusão e dos
ónus processuais incidentes sobre as partes, uma vez que também nesta
interpretação as partes continuam plenamente responsáveis pela apresentação do
recurso dentro do prazo (ainda que contado de forma distinta da defendida nas
decisões em crise), sob pena de preclusão do seu direito.”
A recorrida respondeu, pronunciando-se pelo indeferimento da reclamação.
*
Fundamentação
Os recorrentes reclamaram da decisão sumária que julgou improcedente o recurso
por eles interposto, visando a declaração de inconstitucionalidade da
interpretação normativa do disposto no artigo 698.º, n.º 6, do Código de
Processo Civil (CPC), com a redacção que lhe foi conferida pelo Decreto-lei n.º
180/96, de 25 de Setembro, segundo a qual o prazo do recurso que tenha por
objecto a reapreciação da prova gravada é um prazo único.
Entendem que o recurso por eles interposto não é manifestamente infundado, pelo
que não deveria ter sido apreciado em decisão sumária.
Quanto à invocada violação, pela interpretação normativa sindicada, do direito à
capacidade civil previsto no artigo 26.º, n.º 1, da C.R.P., apesar dessa
interpretação ter sido fundamento da decisão que considerou extemporâneo recurso
interposto da sentença que declarou insolventes os aqui recorrentes, a mesma tem
um âmbito de aplicação genérico, dirigindo-se a todos os processos,
independentemente dos direitos que neles são discutidos, onde exista recurso
que tenha por objecto a reapreciação da prova gravada. O direito à capacidade
civil não impõe especiais exigências, relativamente às condições gerais do
recurso da sentença que decrete a insolvência de alguém, nomeadamente o tempo do
prazo para recorrer, pelo que tal direito fundamental não é parâmetro na
averiguação da constitucionalidade da interpretação sustentada pela decisão
recorrida.
Esta apenas deve ser confrontada com o direito constitucional a um processo
equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P., como o fez a decisão
reclamada.
E nessa confrontação é manifesto, pelas razões explicitadas na decisão sumária,
que a interpretação questionada não se revela arbitrária, nem desproporcionada,
nem desadequada aos fins que presidem à fixação de prazos peremptórios para a
prática de actos processuais, estando as condições que garantam um exercício
eficaz do direito ao recurso perfeitamente asseguradas.
Referem os reclamantes que o direito à defesa processual “não pode tolerar
interpretações normativas dúbias que criam para as partes exigências formais que
elas não podiam nem deviam razoavelmente antecipar, sancionado o incumprimento”.
Além de ser problemático no nosso sistema um juízo de inconstitucionalidade com
fundamento na aplicação de interpretação imprevisível, nos casos em que se
entenda, face aos sentidos plausíveis de preceito legal, que não era exigível
que a parte pudesse contar com a imposição de ónus formal, uma vez que não é da
competência deste Tribunal sindicar a boa interpretação da lei ordinária,
sempre se dirá que, neste caso, a interpretação sustentada na decisão recorrida
nunca poderia ser considerada inesperada, uma vez que correspondia à leitura
dominante na jurisprudência do disposto no artigo 698.º, n.º 6, do C.P.C.,
conforme resulta da citação na decisão recorrida dos arestos publicados sobre
esta matéria.
A pretensão exposta no recurso interposto revela-se, pois, manifestamente
improcedente, pelo que, nos termos do artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC, era
possível que sobre ela recaísse decisão sumária, devendo, por isso, ser
indeferida a reclamação.
*
Decisão
Pelo exposto, indefere-se a reclamação apresentada por B. e C. da decisão
sumária proferida nestes autos em 13 de Janeiro de 2009.
*
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 7º, do mesmo diploma).
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2009
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
|