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Processo n.º 711/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por sentença de 19 de Março de 2008, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Loulé deferiu a reclamação que havia sido deduzida por A., 2.º Recorrido nos
autos, em que figura como Recorrido, igualmente, a Fazenda Pública, e como
Recorrentes o Ministério Público e a Caixa Geral de Depósitos, S.A., do despacho
da Chefe do Serviços de Finanças de Vila Real de Santo António, que lhe havia
negado o pedido de dispensa de prestação de garantia. O Ministério Público
interpôs então recurso, para o Supremo Tribunal Administrativo, concluindo,
nomeadamente, pela inconstitucionalidade orgânica do artigo 9.º, n.º 5, do
Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, e, consequentemente, pela incompetência
material dos tribunais tributários para a prossecução da execução fiscal em
causa. Aquele Supremo Tribunal, por acórdão de 18 de Junho de 2008, recusou a
aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, do referido
preceito. Vejamos a fundamentação expendida nesse juízo:
“Começaremos pela apreciação da questão da incompetência, em razão da matéria,
dos tribunais tributários para conhecer do processamento da execução fiscal em
causa instaurada pela Caixa Geral de Depósitos e pendente à data da entrada em
vigor do Decreto-lei n° 287/93 de 20/8, já que, inquestionavelmente, aquela
incompetência afectaria a competência do STA para o conhecimento do presente
recurso.
Desde logo, importa referir que a execução fiscal em apreço foi instaurada em
22/9/92.
Posto isto e como tem sido jurisprudência pacífica e reiterada deste STA e do
Tribunal Constitucional, antes da entrada em vigor do predito Decreto-lei n°
287/93, os tribunais tributários eram os competentes para as execuções, em que a
Caixa Geral de Depósitos é a exequente, para cobrança de um seu crédito
proveniente de um contrato de mútuo celebrado no exercício da sua actividade
comercial.
De harmonia com o citado diploma legal, a Caixa deixou de ser pessoa colectiva
de direito público que era face aos Decretos-lei n°s 48.953 de 5/4/69 e 694/70
de 31/12 - que foram, assim, revogadas -, para passar a ser sociedade anónima de
capitais exclusivamente públicos, passando a denominar-se Caixa Geral de
Depósitos, SA (art° 1° desse diploma), deixando, assim, de ser competentes os
tribunais tributários, mas antes os judiciais, para a execução das dívidas à
Caixa.
Contudo, o art° 9°, n° 5 do mesmo diploma legal estabeleceu que as execuções
pendentes à data da entrada em vigor do mesmo ‘continuam a reger-se, até final,
pelas regras da competência e de processo vigente nessa data’, isto é, pelos
tribunais tributários e pelo processo de execução fiscal.
E a questão que aqui se coloca é a da inconstitucionalidade orgânica deste
normativo, uma vez que aquele Decreto-lei n° 287/93 foi emitido ao abrigo da
competência legislativa do Governo – art° 201°, n° 1, al. a) da CRP –, sendo
certo que a legislação sobre competência dos tribunais é da reserva relativa da
Assembleia da República – art° 168°, n° 1, al. a) do mesmo diploma.
A este propósito, escreve o Exmo. Conselheiro Jorge Sousa, in CPPT anotado, Vol.
II, pág. 21, citado pela Magistrada recorrente, que ‘este art. 9.°, n.º 5, do
Decreto-Lei n.° 287/93, parece-nos organicamente inconstitucional.
Com o Decreto-Lei n.° 287/93, de 20 de Agosto, a Caixa Geral de Depósitos,
Crédito e Previdência foi transformada em sociedade anónima de capitais
exclusivamente públicos, passando a denominar-se Caixa Geral de Depósitos, S.A.
(art. 1.º deste diploma).
Por outro lado, o art. 9.° deste mesmo diploma, nos seus n.°s 1, alíneas a) e
c), e 2, alíneas a) e b), revogou expressamente aquelas normas dos referidos
Decreto-lei n.° 48953 e Regulamentos.
Está-se, assim, perante modificações de direito, com reflexos a nível da
competência dos tribunais tributários para a cobrança das dívidas de que é
credora a Caixa Geral de Depósitos provenientes do exercício da sua actividade
comercial, pois, por um lado, esta deixou de ter a natureza de pessoa colectiva
pública, imprescindível para inclusão das dívidas referidas na competência dos
tribunais tributários (art. 62.°, n.° 1, alínea c), do ETAF, na redacção
inicial) e, por outro, deixaram de vigorar as normas especiais contendo a
previsão desta competência, exigida também pela mesma alínea.
Assim, deverá concluir-se que, à face das normas referidas, os tribunais
tributários deixaram de ser materialmente competentes para a cobrança coerciva
de dívidas de que é credora a Caixa Geral de Depósitos, provenientes da sua
actividade comercial.
Resulta do art. 8.°, n.° 2 do ETAF, que as modificações de direito posteriores
ao momento da propositura da causa são atendidas para efeitos de apreciação da
competência dos tribunais tributários se estes deixarem de ser competentes em
razão da matéria.
No caso, está-se perante alterações legislativas consubstanciadoras de
‘modificações de direito’, pelo que, implicando elas que os tribunais
tributários deixassem de ser materialmente competentes, do referido n.° 2 do
art. 8.° do ETAF resulta a atendibilidade daquelas, conduzindo à conclusão da
incompetência material superveniente dos tribunais tributários para a cobrança
coerciva das dívidas referidas.
Com o perceptível objectivo de afastar a aplicação desta regra, quanto às
execuções fiscais pendentes no momento da sua entrada em vigor, o referido
Decreto-Lei n.° 287/93, no n.° 5 do seu art. 9.°, estabelece que ‘as execuções
pendentes à data da entrada em vigor do presente diploma continuam a reger-se,
até final, pelas regras da competência e de processo vigentes nessa data’.
Ao emitir esta norma, o Governo legislou em matéria de competência dos
tribunais, pois tanto se está a legislar nesta matéria quando se está a atribuir
ou retirar directamente determinadas competências a certos tribunais, como
quando se estabelecem regras gerais sobre a matéria ou se afasta a aplicação das
regras gerais pré-existentes.
Nesta perspectiva, tendo o Governo emitido o Decreto-Lei n.°287/93 ao abrigo da
sua competência legislativa própria (art. 201.º, n.° 1, alínea a), da CRP na
redacção de 1989, invocado nesse diploma) e inserindo-se a legislação sobre
competência dos tribunais na reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República (art. 168.°, n.° 1, alínea q), da CRP, na mesma
redacção), é de concluir que o referido n.° 3 do art. 9.° do Decreto-Lei n.°
287/93 é organicamente inconstitucional à face do preceituado neste art. 168.° e
no art. 201.°, n.° 1, alínea b), da CRP, na mesma redacção’.
Posto isto, é, assim, de concluir pela não aplicação, por inconstitucionalidade
orgânica, do art° 9.º, n° 5 do Decreto-lei n° 287/93 de 20/8 e declarar os
tribunais tributários, conceito em que se engloba esta Secção do STA,
incompetentes, em razão da matéria, desde 1/9/93, para conhecer do processo de
execução fiscal em causa e do processo de reclamação de acto do órgão de
execução fiscal, o que prejudica o conhecimento do recurso jurisdicional
interposto para este Supremo Tribunal Administrativo.”
2. É então interposto o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do
artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, alterada,
por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (Lei do Tribunal
Constitucional), pelos Recorrentes Ministério Público e Caixa Geral de
Depósitos, S.A., para apreciação da constitucionalidade do artigo 9.º, n.º 5, do
Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, face aos artigos 168.º, n.º 1, alínea
q), e 201.º, n.º 1, alínea b), da Constituição na redacção então em vigor
(resultante da revisão constitucional de 1989).
3. Notificados para produzirem alegações, concluíram do seguinte modo:
A. Alegações do Ministério Público
“l.º
A definição do regime jurídico atinente à competência dos tribunais situa-se no
âmbito da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, não
sendo possível introduzir inovações em tal matéria mediante diploma legal
desprovido de credencial parlamentar.
2.º
A norma de direito transitório, constante do artigo 9.º, n° 5, do Decreto-Lei n°
287/93, ao considerar que se mantinha intocada a competência da Ordem dos
Tribunais Administrativos e Fiscais para o processamento e tramitação das
execuções em que figurasse como exequente a Caixa Geral de Depósitos,
instauradas no momento em que esta se configurava ainda como instituto público,
mesmo que tivessem como objecto a cobrança de dívidas comerciais, não se
configura como inovatória, atenta a competência que já resultava das normas do
Decreto-Lei n° 48 953, derrogadas como simples decorrência da reconfiguração da
Caixa Geral de Depósitos como sociedade submetida a um estatuto de direito
privado.
3.º
Tal norma transitória não pode identicamente configurar-se como inovatória, na
óptica dos princípios afirmados pelo artigo 8° do ETAF, quanto à matéria da
fixação da competência, constituindo mero corolário do princípio fundamental de
que a competência se fixa no momento em que a causa se propõe.
4.º
Sendo certo que, na situação ora em apreciação, não se verificam as excepções a
tal regra, decorrentes da previsão contida no n° 2 daquele artigo 8°, já que não
pode qualificar-se como ‘modificação de direito’ na competência material dos
Tribunais Administrativos e Fiscais a mera circunstância de estes perderem, para
o futuro, a competência para execuções, versando sobre matéria civil e
comercial, em que figura como exequente – não uma entidade pública – mas uma
sociedade de capitais públicos, sujeita a um regime de direito privado.
5.º
Termos em que deverá proceder o presente recurso.”
B. Alegações da Caixa Geral de Depósitos, S.A.
“[…] 16.ª Vigorando o principio da irrelevância das modificações de direito
sobre a competência material dos tribunais face às acções que já tivessem sido
propostas, o artigo 9.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 287/93, de 20 de Agosto,
acolhendo essa mesma solução, não introduz qualquer inovação na ordem jurídica,
antes se limita a aplicar esse princípio geral, anteriormente definido por Lei
da Assembleia da República, à situação específica da Caixa Geral de Depósitos,
sem qualquer necessidade de uma autorização legislativa (cfr., parecer Junto);
17.ª Esse efeito revogatório do artigo 18.°, n.° 2, da Lei n.° 38/87, de 23 de
Dezembro, sobre o artigo 8.°, n.° 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e
Fiscais, aprovado pelo Decreto-Lei n.° 129/84, de 27 de Abril, negando qualquer
relevância às modificações de direito sobre a competência em razão da matéria
dos tribunais face aos processos pendentes, é também acolhido pelo
Procurador-Geral-Adjunto junto do Tribunal Constitucional e pela jurisprudência
do próprio Tribunal Constitucional (cfr, parecer Junto);
18.ª Desaparece, deste modo, uma das vertentes da linha argumentativa da tese da
inconstitucionalidade orgânica do artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.° 287/93,
de 20 de Agosto: não pode aqui existir derrogação ou alteração do artigo 8.°,
n.° 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 29184, de 27 de Abril, porque esta última norma já não se
encontrava então em vigor no que dizia respeito aos efeitos da modificação legal
da competência material dos tribunais face às acções já propostas (cfr. parecer
junto);
19.ª Por outro lado, a partir do artigo 18.°, n.° 2, da Lei n.° 38/87, de 23 de
Dezembro, formulou-se, enquanto corolário do princípio da estabilidade da
competência dos tribunais, o princípio de que são irrelevantes as modificações
de direito sobre a competência material dos tribunais face às acções que já
tenham sido propostas: essa foi, em total harmonia, a solução normativa acolhida
pelo artigo 9.º, n.° 5, do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto (cfr., parecer
junto);
20.ª Limitando-se o artigo 9.°, n.° 5, do Decreto-Lei 287/93, de 20 de Agosto,
apenas a aplicar um princípio geral anteriormente definido em lei da Assembleia
da República, não carecia a norma de qualquer autorização legislativa,
inexistindo inconstitucionalidade orgânica por invasão governativa da reserva
relativa de competência legislativa parlamentar (cfr. parecer junto);
21.ª Pode mesmo afirmar-se, a título de excurso, que a argumentação desenvolvida
pelo Acórdão, da 2.ª Secção do Contencioso Tributário, do Supremo Tribunal
Administrativo, de 18 de Junho de 2008, encerra uma contradição argumentativa
que conduz a uma conclusão paradoxal, reforçando o entendimento de que a solução
encontrada para as execuções pendentes não sofre de inconstitucionalidade
orgânica (cfr. parecer junto);
22.ª A jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo defensora da tese da
inconstitucionalidade determina que, num hipotético cenário de
inconstitucionalidade orgânica de toda a transferência para os tribunais comuns
da competência para a cobrança coerciva das dividas de que fosse credora a Caixa
Geral de Depósitos, segundo resulta do Decreto-Lei n.° 287/93, de 20 de Agosto,
verificar-se-ia, paradoxalmente, que a solução transitória emergente do seu
artigo 9.°, n.° 5, nunca se poderia considerar ferida de inconstitucionalidade:
tratar-se-ia de uma solução que, não introduzindo qualquer alteração sobre a
esfera da competência dos tribunais, mantinha a competência dos tribunais
tributários sobre a matéria (cfr., parecer junto);
23.ª Regista-se, por outro lado, que o Tribunal Constitucional, por diversas
vezes e segundo uma orientação unânime, aplicou ou pelo menos, atribuiu
relevância aplicativa ao artigo 9.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.° 287/93, de 20 de
Agosto; uma tal conduta do Tribunal Constitucional, uma vez que não se pode
reconhecer efeitos jurídicos ou operatividade jurídica a normas
inconstitucionais, permite extrair uma implícita presunção da não
inconstitucionalidade do disposto no artigo 9.°, n.° 5, do Decreto-Lei n.°
287/93, de 20 de Agosto (cfr., parecer junto)
24.ª Sem introduzir quaisquer alterações quanto à normatividade reguladora das
execuções pendentes excepcionando assim essa matéria do âmbito da revogação da
antiga legislação da Caixa Geral de Depósitos, o artigo 9.°, n.° 5, do
Decreto-Lei n.° 287/93, de 20 de Agosto, conseguiu evitar entrar na esfera da
competência legislativa reservada da Assembleia da República no que diz respeito
à definição da competência dos tribunais e, simultaneamente, aplicar o principio
geral definido pelo artigo 18.°, n.° 2, da Lei 38/87, de 23 de Dezembro (cfr.
parecer junto).”
A Recorrente Caixa Geral de Depósitos, S.A. juntou ainda um parecer de um
Ilustre Jurisconsulto.
4. O Recorrido A. concluiu propugnando a inconstitucionalidade do artigo 9.º,
n.º 5, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto. Já a Recorrida Fazenda
Pública não apresentou contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Do Objecto
5. Funda-se o recurso, de interposição obrigatória para o Ministério Público, na
recusa de aplicação do artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de
Agosto. Tal diploma procedeu à transformação da Caixa Geral de Depósitos,
Crédito e Previdência em sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos.
O preceito indicado tem a seguinte redacção:
Artigo 9.º
1 – […]
2 – […]
3 – […]
4 – […]
5 – As execuções pendentes à data da entrada em vigor do presente diploma
continuam a reger-se, até final, pelas regras de competência e de processo
vigentes nessa data.
A decisão a quo recusou a aplicação de tal norma com fundamento na respectiva
inconstitucionalidade orgânica na medida em que, contendendo a mesma com matéria
respeitante à competência dos tribunais, a respectiva normação estaria abrangida
pela reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, nos
termos do disposto no artigo 168.º, n.º 1, alínea q), da Constituição (redacção
resultante da revisão constitucional de 1989). Ora, tendo o Decreto-Lei n.º
287/93 sido emitido ao abrigo da competência legislativa própria do Governo
(artigo 201.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, na redacção já especificada),
carecia o mesmo da devida credencial parlamentar para o tratamento de matérias
abrangidas pela referida reserva legiferante. Assim sendo, não poderia o Governo
ter produzido tal norma pelo que, ao fazê-lo, invadiu a esfera de competência do
Parlamento padecendo a sua actividade, nessa parte, de inconstitucionalidade
orgânica.
Será assim? A resposta à questão que se perfila nos autos não dispensa uma breve
análise contextualizadora da matéria em causa.
6. À luz do Decreto-Lei n.º 48 953, de 5 de Abril de 1969 (diploma que aprovou a
nova lei orgânica da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência), os
tribunais competentes para a cobrança dos créditos daquela entidade eram, nos
termos do artigo 61.º, n.º 1, os tribunais de 1.ª instância das contribuições e
impostos. O Decreto-Lei n.º 693/70, de 31 de Dezembro, em alteração àquele
artigo 61.º, n.º 1, veio estabelecer a competência dos tribunais de 1.ª
instância das contribuições e impostos de Lisboa. Esta competência era total,
abrangendo quaisquer créditos da Caixa mesmo os que respeitassem a dívidas
estritamente comerciais. A solução legislativa, tendo suscitado diversas
críticas do ponto de vista da respectiva constitucionalidade na medida em que,
alegadamente, feriria o princípio da igualdade e da reserva de competência
material dos tribunais administrativos e fiscais, assentava nas funções de
utilidade e ordem pública que o Estado atribuiu à Caixa. Recorde-se que esta
instituição era então configurada como um instituto público.
7. O Tribunal Constitucional teve a oportunidade de apreciar, em diversas
ocasiões, tais dúvidas de constitucionalidade tendo-se pronunciado sempre no
sentido de não se verificar qualquer desconformidade.
Assim, o Acórdão n.º 371/94, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de
Setembro de 1004, apreciou a constitucionalidade do artigo 61.º, n.º 1, do
citado Decreto-Lei n.º 48953, e do artigo 62.º, n.º 1, alínea c), do ETAF,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, que atribuía aos tribunais
tributários de 1.ª instância competência para conhecer da cobrança coerciva de
dívidas a pessoas colectivas de direito público, nos casos previstos na lei.
Entendeu então o Tribunal que a atribuição aos tribunais tributários de
competência para proceder à cobrança coerciva de todas a dívidas de que seja
credora a Caixa Geral de Depósitos se traduzia no “afloramento de uma prática
enraizada do legislador nacional, atribuída à celeridade deste tipo de processo,
considerando a natureza dos interesses em causa e a informalidade da sua
tramitação.”
No mesmo sentido avançaram, nomeadamente, os Acórdãos n.ºs 508/94, 509/94 e
579/94 (publicados, os dois primeiros, no Diário da República, II Série, de 13
de Dezembro de 1994, e o último disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Mais recentemente, o Acórdão n.º 388/2005 (publicado no Diário da República, II
Série, de 20 de Dezembro), analisou o artigo 8.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 do
Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado
pelo Decreto-Lei n.º 315/98, de 20 de Outubro, no sentido segundo o qual o
processo de falência pode ser instaurado quando a Caixa Geral de Depósitos tenha
instaurado anteriormente processo de execução fiscal contra o devedor para
cobrança do mesmo crédito. Concluiu-se então que a possibilidade de a Caixa
Geral de Depósitos poder lançar mão sucessivamente dos meios processuais da
execução fiscal e do processo de falência a fim de poder obter o pagamento, na
medida do possível, do seu crédito, podendo no processo de execução fiscal ser
representada pelo Ministério Público e pelo Chefe de Repartição de Finanças, não
colocaria aquela instituição numa situação de supremacia jurídica diferente da
dos restantes credores. Por outro lado, adiantou ainda o Acórdão,
“A opção do legislador de atribuir aos tribunais fiscais, desde o art.º 1º do
Decreto n.º 16 899, de 27 de Maio de 1929, e sempre mantida nas subsequentes
alterações que o Estatuto da mesma Caixa sofreu até à entrada em vigor (mas com
ressalva das execuções pendentes) do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, a
competência para conhecer da execução coerciva de dívidas da Caixa Geral de
Depósitos e de a sujeitar ao processo de execução fiscal, deveu-se ao seu
entendimento de que a cobrança dos créditos que visavam prosseguir ou satisfazer
finalidades de interesse público devia ser cometida a tais tribunais e ser
efectuada mediante tal processo, em virtude de este estar estruturado,
comparativamente ao homónimo de processo civil, em termos de exigir uma menor
intervenção das partes durante o seu desenvolvimento (cf. Jorge Lopes de Sousa,
Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado, 3ª edição, revista e
aumentada, 2002, pp. 755).
Na verdade, a Caixa Geral de Depósitos, até ao referido Decreto-Lei n.º 287/93 –
diploma este que procedeu à sua conversão em sociedade anónima de capitais
exclusivamente públicos e à cisão dos serviços de seguida mencionados - foi um
instituto público a quem a lei atribuía deveres de ordem pública, como, entre
outros, os de administrar a Caixa Geral de Aposentações e o Montepio dos
Servidores do Estado (art. 4º do Decreto-Lei n.º 48 953, de 5-4-69), ‘colaborar
na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo
e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e
social, na acção reguladora dos mercados monetário e financeiro e na
distribuição selectiva do crédito” (art. 3º do mesmo diploma), e “cooperar na
resolução do problema habitacional, mediante o crédito para construção ou
aquisição de residência própria, o financiamento à construção civil para
edificação de habitações destinadas à venda ou arrendamento em condições
acessíveis, e a aplicação de fundos da Caixa Nacional de Previdência na
construção ou aquisição de casas para funcionários do Estado e dos corpos
administrativos’ (art. 7º, n.º 16, do mesmo diploma) (cf., Jorge Lopes de Sousa,
op. cit. pp. 755).
Tendo o legislador cometido à CGD a satisfação destas necessidades públicas, não
se mostra, de modo algum, abusivo, arbitrário ou manifestamente
desproporcionado, que, simultânea e diferentemente do que se passa relativamente
às outras entidades bancárias, a tenha aliviado de certos encargos processuais
com a cobrança dos créditos com que, pelo menos em parte, satisfazia essas
necessidades públicas.
De resto, a atribuição dessas prerrogativas processuais não deixa de constituir,
precisamente, uma expressão de afirmação da subordinação constitucional do poder
económico ao poder político, na medida em que elas representam uma contrapartida
pelo prosseguimento por parte da CGD dos interesses públicos que são
predeterminadamente definidos pelo legislador, em concretização de valores que a
Constituição de 1976 não deixou de igualmente assumir como direitos sociais ou
como injunções constitucionais (cf., artºs 65º e 101º, da CRP, na versão
actual).”
8. Como é sabido, em 1993 a Caixa Geral de Depósitos deixou de constituir uma
pessoa colectiva de direito público. O citado Decreto-Lei n.º 287/93, alterando
a designação de Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência para Caixa Geral
de Depósitos, S.A., procedeu à sua transformação em sociedade anónima de
capitais exclusivamente públicos o que transmutou decisivamente a natureza da
instituição que, de instituto público (e, portanto, pessoa colectiva de direito
público) passou a estar submetida a um estatuto de direito privado.
O artigo 9.º, n.º 5, dispõe, todavia, sobre a competência dos tribunais
tributários relativamente às execuções pendentes à data da entrada em vigor do
Decreto-Lei n.º 287/93. Coloca-se então o problema de saber se, ao fazê-lo, terá
invadido a reserva legislativa do parlamento prevista no artigo 168.º, n.º 1,
alínea q), bem como a norma do artigo 201.º, n.º 1, alínea b), na redacção da
Constituição resultante da Lei Constitucional n.º 1/89?
2. Do Mérito
9. Vejamos, primeiramente, os parâmetros constitucionais convocados pelo
Tribunal a quo no juízo de inconstitucionalidade proferido:
Artigo 168.º
(Reserva relativa de competência legislativa)
1 – É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:
[…]
q) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto
dos respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de
composição de conflitos;
Artigo 201.º
(Competência legislativa)
1 – Compete ao Governo, no exercício de funções legislativas:
[…]
b) Fazer decretos-lei em matérias de reserva relativa da Assembleia da
República, mediante autorização desta;
10. O artigo 9.º, n.º 1, alínea a), do Decreto-Lei n.º 287/93, procedeu, como já
se referiu, à revogação do Decreto-Lei n.º 48 953 e do Decreto-Lei n.º 693/70,
contendo o primeiro, no seu artigo 61.º, n.º 1, a regra da competência dos
tribunais tributários para a cobrança das dívidas da Caixa Geral de Depósitos.
Tal não significa, no entanto, que este preceito se deva ter iniludivelmente
como normação respeitante à competência dos tribunais para efeitos da reserva
relativa do parlamento e consequente necessidade de habilitação devida para o
respectivo tratamento pelo Governo em sede de actividade legislativa. O Governo,
ao transformar a Caixa Geral de Depósitos em sociedade anónima (de capitais
exclusivamente públicos) e, portanto, ao alterar o seu estatuto jurídico, actuou
no exercício da sua competência própria.
Por outro lado, revogando o Decreto-Lei n.º 48 953, o artigo 9.º do Decreto-Lei
n.º 287/93 prevê, no seu n.º 5, uma norma referente às execuções pendentes,
estipulando que as mesmas se continuam a reger pelas regras de competência e de
processo então em vigor. Assim, o Tribunal a quo entendeu que tal diploma, ao
instaurar a competência dos tribunais judiciais para as execuções baseadas em
créditos da Caixa, procedeu a modificações de direito para os efeitos do artigo
8.º, n.º 2, do ETAF.
Dispunha assim o artigo 8.º de tal Estatuto:
Artigo 8.º
(Fixação da competência)
1 – A competência fixa-se no momento em que a causa se propõe, sendo
irrelevantes as modificações de facto que ocorreram posteriormente.
2 – São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for
suprimido o tribunal a que a causa estava afecta, se deixar de ser competente em
razão da matéria e da hierarquia ou se lhe for atribuída competência de que
inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.
Assim, e na óptica da decisão recorrida, tendo o Decreto-Lei n.º 287/93
procedido a alterações legislativas consubstanciadoras de modificações de
direito, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, deveriam as mesmas relevar para
efeitos da apreciação da competência dos tribunais tributários. Estes deixaram,
por conseguinte, segundo a mesma decisão, de ser competentes também para o
conhecimento das execuções que haviam sido propostas em data anterior à entrada
em vigor daquele diploma. Pelo que, o n.º 5 do artigo 9.º, ao “atribuir” a
competência dos tribunais tributários no caso das execuções pendentes, teria
legislado sobre competência dos tribunais o que, atenta a ausência de
autorização legislativa, configuraria inconstitucionalidade orgânica.
11. Não procede, no entanto, a argumentação assim expendida. É que o artigo 9.º,
n.º 5 é uma norma de direito transitório que se limita a acautelar a competência
dos tribunais tributários relativamente às execuções pendentes. Desde logo, tais
execuções reportar-se-iam, necessariamente, a créditos que a Caixa obteve
enquanto pessoa colectiva de direito público que prosseguia fins de utilidade
pública. A ratio da competência dos tribunais tributários encontrava-se ainda
presente. Independentemente disso, tal norma não atribui competência aos
tribunais tributários como se estes não fossem, em princípio competentes. O
preceito apenas explicita que a competência dos tribunais tributários se mantém,
não consubstanciando, portanto, modificação de direito relevante para efeitos de
alteração da competência dos tribunais.
Deste modo, o artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 287/93 limita-se a proceder
à regulamentação do direito transitório atento o princípio geral de que a
competência do tribunal se fixa no momento em que a acção/execução é intentada,
não contendo qualquer disciplina inovatória.
12. Ora, o Tribunal Constitucional tem-se pronunciado, firme e reiteradamente,
no sentido de que, ainda que se comprove a ausência da autorização legislativa
parlamentar, não se verifica qualquer inconstitucionalidade orgânica sempre que
o Governo se limite a, no exercício da função legislativa que lhe compete,
proceder à reprodução de normatividade já existente. Tal entendimento remonta à
Comissão Constitucional que em vários pareceres se pronunciou no sentido da não
verificação de inconstitucionalidade orgânica sempre que as normas em análise
não ostentavam carácter inovatório (cfr. Pareceres n.ºs 2/79 e 17/82,
publicados, respectivamente, nos Pareceres da Comissão Constitucional, 7.º
volume e 10.º volume).
Também o Tribunal Constitucional teve oportunidade de se pronunciar no sentido
de o carácter não inovatório de normas emanadas pelo Governo relevar para
efeitos de não se considerar procedente a verificação de inconstitucionalidade
orgânica assente na respectiva ausência de autorização legislativa por parte da
Assembleia da República. Vejam-se, a título meramente exemplificativo os
Acórdãos n.ºs 1/84, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 2.º
volume, pp. 173 e seguintes, 423/87, publicado no Diário da República, I Série,
de 26 de Novembro de 1987, e 137/2003, publicado no Diário da República, II
Série, de 24 de Maio de 2003, e 483/2007, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt.
13. Deste modo, o artigo 9.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto,
ao prever a competência dos tribunais tributários para as execuções de créditos
da Caixa Geral de Depósitos pendentes à data da entrada em vigor daquele
diploma, na medida em que não consagra qualquer regulamentação inovatória, não
padece da apontada inconstitucionalidade orgânica por violação dos artigos
168.º, n.º 1, alínea q), e 201.º, n.º 1, alínea b), da Constituição (na redacção
resultante da revisão constitucional de 1989).
III – Decisão
4. Nestes termos, acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional, em conceder
provimento ao recurso, revogando-se, em consequência, o juízo de
inconstitucionalidade proferido nos autos.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Fevereiro de 2009
José Borges Soeiro
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos
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