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Processo n.º 1000/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. A. apresentou reclamação para a conferência, ao
abrigo do n.º 3 do artigo 78.º‑A da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra a decisão sumária do relator, de 5 de Janeiro de 2009, que
decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1 desse preceito, não
conhecer do objecto do recurso de constitucionalidade por ele interposto.
1.1. A referida decisão sumária tem a seguinte fundamentação:
1.2.
“1. A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da [LTC], contra o acórdão do Tribunal da
Relação do Porto (TRP), de 9 de Julho de 2008, que negou provimento ao recurso
por ele interposto contra a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de
Matosinhos, de 13 de Fevereiro de 2008, que o condenara, como autor material e
em concurso efectivo de um crime de ofensas à integridade física por
negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na
pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, e de um crime de condução
perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º do Código
Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, e na pena única de
250 dias de multa, à taxa diária de € 6,00, no total de € 1500,00, e ainda na
sanção acessória de proibição de conduzir veículo com motor, prevista no artigo
69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, pelo período de 4 meses e 15 dias.
De acordo com o requerimento de interposição de recurso, o acórdão
recorrido enferma de «inconstitucionalidade, por violação do princípio in dubio
pro reo, artigo 32.º da CRP, e do princípio da igualdade, artigo 13.º da CRP,
tendo a mesma sido questionada nas motivações de recurso e no requerimento de
aclaração do acórdão do Tribunal da Relação do Porto que confirmou a sentença
condenatória de 1.ª instância».
O recorrente anexou ao requerimento de interposição de recurso uma
exposição dos seus fundamentos, do seguinte teor:
«I. Enquadramento
1. O ora recorrente foi condenado, no Proc. 1258/05.4 PGMTS, que
correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos, como
autor material e em concurso efectivo de um crime de ofensas à integridade
física por negligência, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do CP, e um
crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo
291.º do CP, a uma pena única de concurso de 250 dias de multa à taxa diária de
€ 6, e à sanção acessória de proibição de conduzir veículo com motor prevista
no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do CP, pelo período de 4 meses e 15 dias;
2. O arguido recorreu, alegando, em suma, que da prova produzida em
sede de audiência de julgamento, atentas as regras da experiência que presidem
à livre apreciação da prova, o Tribunal de 1.ª Instância deveria ter absolvido o
ora recorrente com base no princípio in dubio pro reo, já que o julgador não
pode condenar enquanto se mantenha a dúvida razoável, que in casu se impunha
verificar;
3. O Tribunal da Relação do Porto acordou em confirmar a decisão de
1.ª Instância, decidindo, respondendo, no que às motivações e conclusões de
recurso dizia respeito, que todos os factos que serviram à data de motivação de
recurso foram correctamente decididos, concluindo de forma caricata pela
impossibilidade de aplicação do princípio in dubio pro reo, com base em toda a
matéria por si confirmada correctamente julgada;
4. O arguido/recorrente requereu a aclaração de tal acórdão por
considerar que o mesmo decidiu do recurso analisando uma a uma todas as
conclusões de recurso, não apreciando o mesmo como um todo,
5. nem sequer tendo em conta a motivação do mesmo, que se retirará
pela forma sucinta como responde a cada alínea das conclusões, e a apreciação da
prova enfermar de preconceito objectivamente considerado (melhor compreensível
adiante);
6. Só assim compreende o arguido/recorrente a forma peculiar como o
Tribunal a quo se pronuncia sobre a aplicação do princípio in dubio pro reo,
alegada em sede de recurso;
7. Entende o ora recorrente que facilmente se conclui, da leitura
atenta das decisões proferidas pelo Tribunal de 1.ª Instância e pelo Tribunal
da Relação do Porto, que as mesmas implicitamente deram como provados variados
factos, única e exclusivamente com base no facto de o ora recorrente conduzir
sob efeito de álcool;
8. Trata‑se de um juízo dedutivo que teve peso nas decisões e que
não poderá conformar‑se com as regras da experiência;
9. A dúvida teria obrigatoriamente que rondar a mente do julgador,
no que à prova dos elementos do tipo objectivo do crime de condução perigosa
diz respeito, senão vejamos:
(citação do requerimento de aclaração)
‘As regras da experiência impunham que se desse como provado que o
veículo conduzido por B. se situava no meio da estrada, já que, se o mesmo
tombou para a sua direita após o embate, e o rasto de destroços apontava que o
mesmo se deslocou num movimento frente, o local do embate nunca poderia ter sido
a uma distância de 2,4 metros da berma;
As regras da experiência impunham que se desse como provado que o
embate entre os dois veículos se tenha dado antes da passadeira, pois através da
atenta análise do croquis, e mais precisamente a posição final dos veículos,
bastaria traçar uma linha que reflectisse o movimento hipotético dos mesmos para
concluir que o embate havia de se ter verificado antes da passadeira;
As regras da experiência impunham que não se desse como provado que
o arguido circulava em desrespeito pelas normas de trânsito, tendo passado sem
parar num STOP e a uma velocidade excessiva para o local, porquanto é do
conhecimento generalizado que uma pessoa alcoolizada e ensonada, descrição do
estado de C. pelo próprio, que afirmou em sede de audiência e julgamento não se
recordar de quase nada, não tem a verdadeira percepção dos acontecimentos.
Não obstante, o Tribunal ad quem insiste em considerar que tal testemunho é
bastante para concluir que o arguido não obedeceu ao sinal de STOP e circulava
em velocidade excessiva para o local, quando a testemunha apenas afirma não se
recordar de ter travado no sinal STOP e que o embate foi “forte”. Mais uma vez
as regras da experiência deveriam ter apontado para que não se valorasse essa
prova;
As regras da experiências e principalmente as provas apresentadas e
produzidas em sede de audiência e julgamento apontam à não sinalização da
marcha do veículo conduzido por B., mas mais uma vez a meritíssima juíza do
Tribunal a quo e os venerandos Desembargadores do Tribunal ad quem consideram
que há prova suficiente da existência de sinalização;
Consideram os Tribunais a quo e ad quem que o arguido deveria ter
tido tempo para imobilizar o veículo se circulasse a velocidade legal e sem
estar sob o efeito do álcool, mas esquecem‑se que, determinado o local do
embate, a colocação do veículo conduzido por B. e a falta de sinalização da
marcha do mesmo, o arguido nunca poderia avistar o referido veículo dentro de um
campo de visão que lhe permitisse imobilizar o veículo por si conduzido,
evitando o embate;
As regras da experiência deveriam ter determinado que, e mais uma
vez atenta a posição final dos veículos descrita no croquis, a razão pela qual o
veículo seguiu marcha em direcção à faixa de rodagem contrária deveu‑se à
mudança brusca de direcção do arguido no sentido de evitar o acidente;
Por todos os factos alegados, que deveriam e devem causar dúvida na
mente de quem julga, é que se procederia à aplicação do princípio in dubio pro
reo, e não, como parece insinuar o Tribunal ad quem, como última réstia de
esperança de um recurso infundado;’
10. O acórdão objecto do presente recurso enferma de preconceito,
preconceito esse admissível ao normal cidadão, mas inadmissível a um órgão que
administra a justiça, por contrário ao princípio de igualdade, artigo 13.º da
CRP, e ser em si contrário aos princípios basilares que deverão presidir à
administração da justiça;
11. A dedução e consequente prova de factos em tudo conducentes à
condenação de um arguido não são admitidos em processo penal, que em caso de
dúvida razoável, como claramente há no caso sub judice, deverão levar à
absolvição do arguido;
12. Em momento algum o ora recorrente colocou em causa o estado em
que se encontrava no momento em que se deu o acidente, mas nega piamente que o
mesmo se tivesse dado por sua culpa, em violação das regras de trânsito, como as
duas decisões condenatórias afirmam, sem que para isso tenham uma prova
inequívoca;
13. Os tribunais não são órgãos de soberania para ceder a
conclusões «popularuchas», mas sim para decidir com base em factos,
14. factos esses que, pese embora a repetição constante ao longo do
presente recurso, deverão ser fidedignos;
15. Como exemplo de facto dúbio, temos a prova efectuada com base no
depoimento do ofendido, claramente interessado na procedência da presente
condenação, atenta a responsabilidade civil emergente do acidente em causa,
cujas incongruências, supostamente injustificadas, foram reconhecidas pelo
Tribunal de 1.ª Instância, tendo, no entanto, feito prova dos factos
incriminadores com base nas mesmas;
II. Da Constitucionalidade da Decisão
16. Posto isto, o presente acórdão haverá de ser julgado
inconstitucional, por violação do princípio in dubio pro reo, que deveria ter
determinado decisão diversa da ora recorrida,
17. e do princípio de igualdade, que deveria presidir à apreciação
objectiva de toda a factualidade em todos os processos, não se podendo admitir
que, pelo estado em que o recorrente se encontrava, se lhe impute condutas que,
caso o mesmo não se encontrasse sob o efeito de álcool, em momento algum lhe
seriam imputadas;
Nestes termos e nos melhores de direito requer a V.ª Ex.ª digne
julgar inconstitucional o acórdão do Tribunal da Relação do Porto que confirmou
a sentença condenatória proferida em 1.ª Instância, por violação do princípio
in dubio pro reo e o princípio da igualdade, assegurados pelo artigo 32.º e
13.º da CRP, respectivamente.»
O recurso foi admitido pelo Desembargador Relator do TRP, decisão
que, como é sabido, não vincula o Tribunal Constitucional (artigo 76.º, n.º 3,
da LTC) e, de facto, entende‑se que o recurso em causa é inadmissível, o que
possibilita a prolação de decisão sumária de não conhecimento, ao abrigo do
disposto no n.º 1 do artigo 78.º‑A da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a
inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é
imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é
discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual
depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e,
por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda
hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por
relevantes às particularidades do caso concreto.
Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade
depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida,
em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo 72.º da
LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi,
das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
3. No presente caso, o recorrente não suscitou durante o processo,
antes de proferida a decisão recorrida – designadamente nas peças processuais
por ele identificadas (apesar de o pedido de aclaração do acórdão recorrido não
ser já momento adequado à suscitação da questão de constitucionalidade) –
qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, limitando‑se a questionar
a correcção das decisões judiciais das instâncias em sede de fixação da matéria
de facto apurada, o que, manifestamente, não constitui objecto idóneo do recurso
de constitucionalidade.
Em parte alguma – nem sequer no requerimento de interposição de
recurso de constitucionalidade e na «alegação» que anexou ao mesmo – o
recorrente identificou qualquer norma de direito ordinário (ou qualquer
interpretação normativa dotada de generalidade e abstracção e identificada com
o mínimo de precisão) que reputasse violadora de princípios ou normas
constitucionais.
Por absoluta falta de suscitação de qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa por parte do recorrente, o presente recurso
surge como inadmissível, o que determina o não conhecimento do seu objecto.”
1.2. A reclamação do recorrente assenta nos seguintes
fundamentos:
“1. Por uma questão de economia processual, considera‑se
integralmente reproduzido o recurso que despoletou a presente decisão objecto
de reclamação;
2. A inconstitucionalidade foi suscitada em sede de aclaração, sendo
que a aclaração deverá ser tida como parte integrante da sentença, pelo que por
maioria de razão o requerimento de aclaração deverá ser tido como parte
integrante das motivações que suscitaram o recurso;
3. No que à suposta interpretação normativa diz respeito, a violação
foi invocada, tendo por base o uso abusivo da livre apreciação da prova como
forma de suplantar o poder‑dever de absolvição por aplicação de um princípio
constitucionalmente consagrado e parte integrante de qualquer Estado de Direito
Democrático como é o princípio in dubio pro reo;
4. Utilizar o conceito indeterminado do artigo 127.º do CPP como
forma de, violando o princípio de igualdade, condenar o arguido pela prática de
factos para os quais não existe prova fidedigna é em si a violação do que o dito
artigo dispõe e do princípio supra identificado.”
1.3. O representante do Ministério Público neste
Tribunal apresentou resposta, no sentido de que “a presente reclamação carece
manifestamente de fundamento”, dado que “a argumentação do reclamante em nada
abala os fundamentos da decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação
dos pressupostos do recurso”.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão sumária ora reclamada assentou o não
conhecimento do recurso na constatação de o recorrente não ter suscitado
adequadamente, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa, já que não imputou a qualquer norma
de direito ordinário (ou a qualquer interpretação normativa dele extraída,
dotada de generalidade e abstracção, e com o respectivo sentido devidamente
identificado) a violação de princípios ou normas constitucionais.
A presente reclamação do recorrente em nada infirma essa
constatação, antes a reforça, pois o que ele continua a considerar violadora do
princípio in dubio pro reo é a concreta actividade judiciária consistente na
valoração da prova e na fixação dos factos tidos por provados, o que
manifestamente não integra objecto idóneo do recurso de constitucionalidade.
3. Termos em que, sem necessidade de considerações
suplementares, acordam em indeferir a presente reclamação, confirmando a
decisão sumária reclamada.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2009.
Mário José de Araújo Torres
João Cura Mariano
Rui Manuel Moura Ramos
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