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Processo n.º 368/2008
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No âmbito da acção administrativa especial proposta por A. contra o MUNICÍPIO DE
SÃO PEDRO DO SUL que correu os seus termos sob o n.º 946/04.7 BEVIS no Tribunal
Administrativo e Fiscal de Viseu, foi proferida sentença que julgou improcedente
o pedido de anulação da deliberação da Câmara Municipal de São Pedro do Sul de
13 de Abril de 2004.
Esta deliberação tinha decidido desfavoravelmente um pedido de informação
prévia, anteriormente apresentado pelo Autor, em 5 de Junho de 2001, sobre a
viabilidade de reconstrução e ampliação da sua casa de habitação, inserida em
área incluída na Reserva Ecológica Nacional – nomeadamente por confrontar com o
rio Vouga –, tendo em vista a respectiva utilização e exploração como casa de
hóspedes.
Após recurso interposto pelo Autor a referida sentença viria a ser integralmente
confirmada por acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, proferido em
28 de Fevereiro de 2008, com a seguinte fundamentação, na parte que ora releva:
“(...) O acto impugnado nos presentes autos é a deliberação tomada pela CMSPS na
sua reunião de 13 de Abril de 2004, com fundamento num parecer jurídico, que
reconheceu o deferimento tácito do pedido formulado pelo recorrente, e
simultaneamente declarou nulo tal deferimento por violação do artigo 68.º alínea
a) do Regulamento do Plano Director Municipal de S. Pedro do Sul, já que o mesmo
consistia em alterar o uso da habitação.
A decisão recorrida julgou improcedente a acção interposta e é contra esta que o
recorrente se insurge, imputando-lhe vários vícios de violação de lei, todos
eles tendo por essência o facto de “casa de hóspedes” não significar “alteração
ao uso” em relação a casa de habitação – artºs 2º, al. b) do Regulamento
Municipal de S. Pedro do Sul, 9º do Cód. Civil, 68º, al. a) do RPDM, 61º, 62º e
165º, nº 1, al. b) da CRP.
Mas antes de mais, importa referir que é o próprio recorrente no pedido de
informação prévia para construção de “casa de hóspedes” apresentado ao
Presidente da Câmara Municipal de S. Pedro do Sul, na memória descritiva e
justificativa apresentada que classifica o seu prédio urbano, como inserido em
zona de Reserva Ecológica Nacional, facto relevante para a decisão a proferir.
Assim a delimitação do objecto do recurso consiste propriamente em saber se no
caso concreto estamos perante uma alteração ao uso, nos termos previstos no artº
68º do PDM de S. Pedro do Sul.
Pretende o recorrente, no essencial, que se equiparem duas noções semânticas:
casa de habitação e casa de hóspedes.
Porém, sem êxito.
Na verdade encontrando-se o seu prédio inserido em zona de REN há que ter em
conta o que a este respeito consagra o regulamento do PDM de S. Pedro do Sul
(que em conjunto com a carta de ordenamento constituem o conjunto de normas que
definem a utilização do espaço do Concelho, “nele se definindo de forma genérica
os diversos tipos de espaços e as funções que lhe estão atribuídas,
condicionando os usos de forma a proporcionar um desenvolvimento equilibrado do
Concelho”).
Dispõe o artº 2º deste Regulamento que o mesmo é “aplicável a todas as acções de
informação, aprovação ou licenciamento de construções, reconstruções,
recuperações, ampliações, alterações de uso, destaque de parcelas, loteamentos,
obras de urbanização e qualquer outra acção que tenha como objectivo ou
consequência a transformação do revestimento ou do relevo do solo”.
E, determina o artº 68.º, al. a) da Resolução do Conselho de Ministros, que
ratificou o Plano Director Municipal de S. Pedro do Sul que “as construções
existentes em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação,
reconstrução e ampliação desde que não haja alteração de uso”.
Assim temos por assente que as construções existentes em áreas de RAN ou REN
poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que:
a) Não haja alteração do uso;
b) A área coberta não seja ampliada mais de 30%, incluindo anexo e garagens.
Por seu turno, o artº 4º, nº 1 do DL nº 93/90, de 19/03, que revê o regime
jurídico da Reserva Ecológica Nacional estabelecido pelo DL n.º 321/83 de 05/07,
dispõe que “nas áreas incluídas na REN são proibidas acções de iniciativa
pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento obras de
urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação,
aterros, escavações e destruição do coberto vegetal”.
E, o artº 15.º do mesmo diploma legal prevê que “são nulos e nenhum efeito os
actos administrativos que violem os arts. 4.º e 17.º”.
Com efeito, resultava já do preâmbulo do DL nº 312/83 de 05/07 diploma que
regulamentava a REN que “a expansão de áreas urbanas, afecta[ndo] gravemente a
estabilidade ecológica das regiões”.
E do preâmbulo do DL 93/90 de 19/03, que regulamenta actualmente a mesma
Reserva, resulta que se visa “possibilitar a exploração dos recursos e a
utilização do território com salvaguarda de determinadas funções e
potencialidades, de que dependem o equilíbrio ecológico e a estrutura biofísica
das regiões, bem como a permanência de muitos dos seus valores ecológicos,
sociais e culturais. As zonas costeiras e ribeirinhas, onde se verifica a
existência de situações de interface entre ecossistemas contíguos mas
distintos, são caracterizadas por uma maior diversidade e raridade de factores
ecológicos presentes e, simultaneamente, por uma maior fragilidade em relação à
manutenção do seu equilíbrio. Estas características, que, em conjunto, conferem
àquelas zonas um ambiente de excepcional riqueza, são, também por isso,
responsáveis por um maior procura pelas diversas actividades, o que está na
origem de enormes pressões a têm vindo a estar sujeitas”.
Daí que se perceba agora a redacção do artº 4º, nº 1, e 15º deste diploma legal.
Por seu turno, o artº 103º do DL nº 380/99 de 22/09, que estabeleceu o regime
dos instrumentos de gestão territorial, determina que “são nulos os actos
praticados, em violação de qualquer instrumento de gestão territorial
aplicável”.
O artº 79º do DL nº 55/02, de 11/03, que alterou o DL nº 167/97 de 04/07, que
aprovou o regime jurídico da instalação e funcionamento dos empreendimentos
turísticos destinados à actividade de alojamento turístico, estabelece que é da
competência das assembleias municipais sob proposta do presidente da Câmara a
regulamentação da instalação, exploração e funcionamento dos estabelecimentos de
hospedagem, designados por hospedarias e casas de hóspedes e por quartos
particulares.
O Regulamento Municipal de Instalação e Funcionamento dos Estabelecimentos de
Hospedagem do Concelho de S. Pedro do Sul, encontra-se publicado no Apêndice nº
51 da II Série do DR de 04/04/2000.
No artº 2º, al. b), do mencionado regulamento, um dos tipos de estabelecimento
de hospedagem expressamente previsto é a “casa de hóspedes”.
São casas de hóspedes os estabelecimentos integrados em edifícios de habitação
familiar, que disponham de quatro até oito unidades de alojamento, e que se
destinem a proporcionar, mediante remuneração, alojamento e outros serviços
complementares e de apoio a utentes” (art. 4.º).
E é à luz do DL nº 55/02, de 11/03 que alterou o DL nº 167/97, de 04/07, (supra
referido) que aprovou o regime jurídico da instalação e funcionamento dos
empreendimentos turísticos destinados à actividade de alojamento turístico, que
se irá decidir a questão trazida a juízo, para se concluir que estamos perante
realidades distintas quando falamos de casa de habitação ou casa de hóspedes,
independentemente de ambas servirem para habitar.
Mas, as casas de hóspedes estão intimamente ligadas ao turismo de habitação, que
desde há uns anos atrás pretendeu fazer concorrência a outras unidades
hoteleiras, precisamente pelo facto de permitirem um contacto mais próximo com
a natureza, vegetação, animais e cursos de água, e com determinado aglomerado
populacional, inserido em meios rurais ou pelo menos no interior do país,
funcionando o seu incremento como um dos incentivos financeiros (quer nacional
quer comunitário) para impedir a desertificação de algumas zona do interior do
país, beneficiando por isso de subsídios financeiros ou créditos a baixo custo.
No entanto, é evidente que um hotel, uma residencial, uma hospedaria, estalagem
ou casa de hóspedes, visam todos, numa primeira linha, a habitação daqueles que
procuram estas unidades hoteleiras, variando depois os serviços, instalações e
actividades, em função das aptidões que cada uma destas unidades pode oferecer,
quer pela sua localização, quer pela sua qualidade e finalidade de prestação de
serviços.
Ou seja: não é correcto pretender como faz o recorrente equiparar casa de
habitação a casa de hóspedes, pois esta caracteriza-se como uma verdadeira
unidade hoteleira de prestação de serviços e não como uma mera casa de
habitação, independentemente do nº do agregado familiar e das actividades que
cada membro da família lá desenvolve, ou até de eventual remuneração se o dono
da casa assim o entender no seio familiar ou nos termos legalmente previstos na
Lei do Arrendamento Urbano.
Há, pois, que ter em consideração que uma coisa é construir, reconstruir ou,
ampliar uma habitação unifamiliar e, outra bem distinta é a construção,
reconstrução ou ampliação de uma casa unifamiliar a que se pretende dar um uso
hoteleiro, com aptidão para receber hóspedes em contrapartida de um serviço
complementar de alimentação e actividades lúdicas/lazer remuneradas; e nem se
diga que numa habitação unifamiliar também se recebem pessoas, familiares,
amigos ou não, a quem igualmente são servidas refeições e a quem se permite a
utilização de todos os espaços e actividades que o dono da casa puder
proporcionar, uma vez que, falar assim é tentar confundir conceitos linguísticos
que neste caso concreto, são bem distintos.
Uma coisa é uma habitação unifamiliar, outra é uma indústria ou empreendimento
de cariz turístico/hoteleiro.
E a “casa de hóspedes” que o recorrente pretendia ver construída, inserida num
terreno abrangido por REN significa efectivamente alteração ao uso (até porque
resulta da matéria de facto provada que a casa. cuja ampliação se pretende, nem
estava sequer a ser habitada).
Deste modo, a sentença recorrida não incorreu em nenhum erro de julgamento, nem
se mostram violadas as disposições legais alegadas pelo recorrente, pois, outra
não podia ser a interpretação e, deste modo, o enquadramento jurídico.
Com efeito, só a interpretação que supra se deixou exposta, se enquadra no
disposto no artº 9º do Cód. Civil que prevê expressamente que se tenha em
conta, na reconstituição do pensamento legislativo, a unidade do sistema
jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições
específicas do tempo em que é aplicada. Refira-se inclusive, que a “troca” de
vocábulos de que o recorrente se socorre, é que levaria a uma interpretação
descontextualizada e sem um mínimo de correspondência na letra e espírito da
lei.
Na verdade se o legislador não quisesse distinguir habitação unifamiliar de casa
de hóspedes, não teria procedido à definição desta e à sua autonomização no
âmbito do regulamento do PDM.
Igualmente não se verifica violação do direito de propriedade privada e da
iniciativa económica, nem violação dos princípios da confiança, nos termos
alegados pelo recorrente, dado que, o seu direito de propriedade continua
inatacável no seu conteúdo mais específico, sem qualquer restrição; o que já não
sucede quando se pretende fazer uso deste direito de propriedade para pôr em
causa normas de ordenamento do território, de ocupação, uso e transformação dos
solos urbanos, que visam um desenvolvimento equilibrado em termos paisagísticos
e socio-económicos.
A tudo isto acresce que a consagração de que o direito constitucional da
propriedade privada e suas decorrências como sejam o direito à habitação que
preserve a utilização e uso da mesma garantido pela Constituição não têm
natureza de um direito absoluto, devendo, antes, sofrer as restrições
necessárias para assegurar a satisfação de outros direitos ou interesses também
constitucionalmente garantidos, como sejam o direito a um ambiente de vida
humano sadio e ecologicamente equilibrado que o direito urbanístico visa
salvaguardar.
E, não sendo o direito de propriedade absoluto e irrestrito, podendo estes
sofrer condicionamentos, designadamente, em matéria de urbanismo e construção,
resulta evidente que não assiste razão ao recorrente nos vícios que imputa à
decisão recorrida, improcedendo por isso o recurso, em todas as suas vertentes –
cfr. entre muitos outros, os Acs. do STA de 02-07-2002, in rec. nº 048390, de
03-12-2002, in rec. no 047859, de 11-01-2005, in rec. nº 0528/03, de 02-03-2004,
in rec. nº 048296, referindo-se neste último expressamente: “O direito de
propriedade não é um direito absoluto, podendo comportar limitações, restrições
ou condicionamentos, particularmente importantes no domínio do urbanismo e do
ordenamento do território, em que o interesse da comunidade tem é sobrelevar o
do indivíduo”.(...)».
O Autor interpôs então recurso desta última decisão para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b), do n.º 1, do art. 70.º, da
Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC),
requerendo – após ter havido lugar a convite ao aperfeiçoamento do requerimento
de interposição de recurso –, a fiscalização concreta da constitucionalidade da
norma constante do art. 68.º, alínea a), do Regulamento do Plano Director
Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro
do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de
Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, na interpretação segundo a qual a
utilização de uma casa de habitação, existente em área incluída na Reserva
Ecológica Nacional, como casa de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso
para efeito de proibição de realização de obras de reconstrução e ampliação na
casa em questão.
Posteriormente, o Recorrente apresentou as respectivas alegações, culminando as
mesmas com a formulação das seguintes conclusões:
“(...) 1/ A norma do artigo 68.º alínea a) do Regulamento do PDM de S. Pedro do
Sul é inconstitucional por violação dos artigos 165.º n.º 1 alínea b) e g) e
198.º n.º 1 alínea c), ambos da CRP dado que compete à Assembleia ou ao Governo,
conforme os casos, legislar sobre as restrições ou proibições impostas aos
imóveis situados em área da REN e da RAN.
2/ A entender-se que era legítimo ao Município de S. Pedro do Sul a aprovação de
tal norma sempre a mesma seria inconstitucional por violação dos artigos 18.º,
61.º e 62.º da CRP por restringir de forma desproporcionada a faculdade de
fruição do edifício que faz parte integrante do conteúdo do direito de
propriedade deste.
3/ Seria, ainda, inconstitucional por violação das mesmas normas
constitucionais, a norma do artigo 68.º alínea a) do mesmo regulamento na
interpretação dada pelo Tribunal Central Administrativo do Norte no sentido de
que não é permitido efectuar obras de reparação e ampliação em edifício quando
destas resulte a alteração de uso de habitação unifamiliar para habitação de
hóspedes.”
O Recorrido apresentou contra-alegações, concluindo que o recurso deve ser
julgado improcedente, por não se verificar qualquer violação do disposto nos
artigos 165.º, nº 1, alíneas b), e g), 198.º, nº 1, alínea c), 18.º, 61.º e 62.º
da CRP.
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Fundamentação
1. Da delimitação do objecto do recurso
O presente recurso de constitucionalidade versa a matéria delicada das
restrições existentes em sede de construção imobiliária nas áreas incluídas na
Reserva Ecológica Nacional, nomeadamente as restrições existente nessa matéria
que derivam do poder regulamentar autárquico.
A alínea a), do artigo 68.º, do Regulamento do Plano Director Municipal de São
Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de
Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
105/95, de 13 de Outubro, dispõe que “as construções existentes em áreas de RAN
ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde
que não haja alteração de uso”.
Esta norma foi aplicada como ratio decidendi pelo tribunal a quo na
interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em
área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes,
consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de
obras de reconstrução na casa em questão.
No requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, o Recorrente
requereu a fiscalização concreta da constitucionalidade material da referida
norma na sua dimensão total, isto é, sem quaisquer restrições de ordem
hermenêutica.
Contudo, como o Recorrente tinha anteriormente suscitado, nas alegações
oferecidas junto do tribunal a quo, a inconstitucionalidade material da aludida
dimensão interpretativa da mesma norma, e apenas dessa interpretação normativa,
houve lugar ao convite ao aperfeiçoamento do requerimento de interposição de
recurso com vista à concretização inequívoca do objecto normativo a fiscalizar
em sede de recurso de constitucionalidade.
Na sequência desse convite, o Recorrente veio oportunamente esclarecer que
pretendia apenas a fiscalização da norma constante do artigo 68.º, alínea a), do
Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul, aprovado pela
Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e ratificado
pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de Outubro, na
interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em
área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes,
consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de
obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
As dúvidas existentes ficaram esclarecidas e os autos prosseguiram para a fase
de produção das pertinentes alegações.
Todavia, ao concluir as respectivas alegações, nos precisos termos acima
transcritos, a verdade é que o Recorrente viria a ampliar o objecto do presente
recurso de constitucionalidade, ao recuperar o pedido de fiscalização concreta
da constitucionalidade material da referida norma na sua dimensão total.
Esta ampliação, obviamente, não será conhecida na medida em que o objecto do
recurso cristaliza-se no requerimento de interposição ou no de correcção deste,
ficando, assim, aquele objecto circunscrito à apreciação da constitucionalidade
da referida interpretação normativa, isto é, da norma constante do artigo 68.º,
alínea a), do Regulamento do Plano Director Municipal de São Pedro do Sul,
aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de
1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de
Outubro, na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação,
existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes,
consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de
obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
2. Do conhecimento das questões de constitucionalidade
2.1. Da inconstitucionalidade orgânica
Conforme acabou de se escrever, a alínea a), do artigo 68.º, do Regulamento do
Plano Director Municipal de São Pedro do Sul (RPDM/SPS), aprovado pela
Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e
ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de
Outubro, dispõe que “as construções existentes em áreas de RAN ou REN poderão
ser objecto de obras de reparação, reconstrução e ampliação desde que não haja
alteração de uso”.
Esta norma foi aplicada como ratio decidendi pelo tribunal a quo, na
interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de habitação, existente em
área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa de hóspedes,
consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de realização de
obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
O recorrente entende que a referida norma constante do RPDM/SPS – e, por
consequência, a respectiva interpretação, que aqui é directamente posta em crise
– se encontra ferida de inconstitucionalidade orgânica na medida em que estão em
causa matérias que integram a reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República, nomeadamente as previstas nas alíneas b) e g), do n.º
1, do artigo 165.º, da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), ou, pelo
menos, a reserva de competência legislativa dependente do Governo, desta feita a
prevista na alínea c), do n.º 1, do artigo 198.º, da C.R.P.
A alínea b), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., dispõe que, salvo autorização
ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre
direitos, liberdades e garantias.
A alínea g), do n.º 1, do artigo 165.º, da C.R.P., dispõe que, salvo autorização
ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre
as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio ecológico e do
património cultural.
Por seu turno, a alínea c), do n.º 1, do artigo 198.º, da C.R.P., dispõe que
compete ao Governo, no exercício de funções legislativas, fazer decretos-leis de
desenvolvimento dos princípios ou das bases gerais dos regimes contidos em leis
que a eles se circunscrevam.
Quando o regulamento em apreço foi ratificado pelo Governo, estava em vigor a
Constituição da República Portuguesa com a redacção introduzida pela Lei
Constitucional n.º 1/92, e as referidas normas constitucionais constavam,
respectivamente, com a mesma redacção, da al. b), do n.º 1, do artigo 168.º, da
C.R.P. (renumerado para artigo 165.º com a Revisão Constitucional de 1997), da
al. g), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P. (renumerado para artigo 165.º com a
Revisão Constitucional de 1997) e da al. c), do n.º 1, do artigo 201.º da CRP
(renumerado para artigo 198.º com a Revisão Constitucional de 1997).
Assim sendo, e devendo a inconstitucionalidade orgânica ser aferida em função
das normas constitucionais em vigor ao tempo em que foram editadas as normas
que, porventura, padeçam desse vício (princípio do tempus regit actum),
importará apreciar a inconstitucionalidade orgânica das normas questionadas à
luz do regime constante da Constituição da República Portuguesa com a redacção
introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/92.
Todavia, note-se que não se está propriamente perante um problema de
inconstitucionalidade pretérita pós-constitucional na medida em que os
parâmetros constitucionais não chegaram a ser revogados e mantiveram-se na
Constituição com a mesmíssima redacção não obstante a alteração da numeração dos
artigos em questão.
Antes de apreender o alcance das referidas normas constitucionais sobre reserva
de competência legislativa e mesmo de outras que o caso concreto convoque,
importa começar por recuperar o contexto normativo infraconstitucional em que
emergiu a norma fiscalizada.
A norma sob apreciação consta do Regulamento do Plano Director Municipal de São
Pedro do Sul, aprovado pela Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de
Fevereiro de 1995 e ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º
105/95, de 13 de Outubro.
O regime legal então vigente sobre elaboração, aprovação e ratificação dos
planos municipais de ordenamento do território constava essencialmente do
Decreto-lei n.º 69/90, de 2 de Março, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º
211/92, de 8 de Outubro (posteriormente revogado pelo Decreto-lei n.º 380/99, de
22 de Setembro, actual regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial).
Nos termos do referido diploma legal, os planos directores municipais, que devem
abranger todo o território municipal, são elaborados pela Câmara Municipal,
aprovados pela assembleia municipal e ratificados pelo Governo mediante
resolução do Conselho de Ministros (artigos 2.º, n.º 1, al. a), e 3.º, n.º 1, 2
e 3).
A elaboração, aprovação e execução dos planos municipais em geral são operadas
por forma a garantir, inter alia, a aplicação das disposições legais e
regulamentares vigentes e dos princípios gerais de disciplina urbanística e de
ordenamento do território (artigo 5.º, n.º 1, al. a)), a compatibilização da
protecção e valorização das zonas agrícolas e florestais e do património natural
e edificado, com a previsão de zonas destinadas a habitação, indústria e
serviços (artigo 5.º, n.º 1, al. c) e a salvaguarda dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos (artigo 5.º, n.º 1, al. e)).
Sem perder de vista esses princípios legais norteadores, os planos municipais
têm de definir e estabelecer os princípios e regras para a ocupação, uso e
transformação do solo na área abrangida (artigos 5.º, n.º 2, al. a), e 9.º, n.º
1). Em especial, o plano director municipal, enquanto regulamento
administrativo, estabelece uma estrutura espacial para o território do
município, a classificação dos solos, os perímetros urbanos e os indicadores
urbanísticos, tendo em conta os objectivos de desenvolvimento, a distribuição
racional das actividades económicas, as carências habitacionais, os
equipamentos, as redes de transportes e de comunicações e as infra-estruturas
(artigos 4.º e 9.º, n.º 2).
A norma do RPDM/SPS sob apreciação respeita à construção imobiliária em áreas de
RAN ou REN, o que, desde logo, coloca em evidência a questão da necessidade da
conformidade formal desse plano municipal com as disposições legais e
regulamentares das Reservas Agrícolas e Ecológica Nacionais, recaindo,
obviamente, neste momento, a atenção deste Tribunal exclusivamente no regime
jurídico da REN.
Quando o plano municipal dos autos foi aprovado, o regime jurídico da REN
constava do Decreto-lei n.º 93/90, de 19 de Março, na redacção dada pelos
Decretos-lei n.º 316/90, de 13 de Outubro, e n.º 213/92, de 12 de Outubro.
Nos termos do referido diploma legal, a REN constitui uma estrutura biofísica
básica e diversificada que, através do condicionamento à utilização de áreas com
características ecológicas específicas, garante a protecção de ecossistemas e a
permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao
enquadramento equilibrado das actividades humanas (artigo 1.º).
Com relevância para o caso concreto, importa ter presente que a REN abrange as
zonas costeiras e ribeirinhas, águas interiores, áreas de infiltração máxima e
zonas declivosas, competindo a determinados membros do Governo a aprovação, por
portaria conjunta, das áreas a integrar e a excluir da REN (artigos 2.º e 3.º,
n. 1). Posteriormente, as áreas integradas na REN são especificamente demarcadas
em todos os instrumentos de planeamento que definam ou determinem a ocupação
física do solo, designadamente planos regionais e municipais de ordenamento do
território (artigo 10.º).
A integração de certa área na REN é acompanhada de consequências jurídicas nada
despiciendas no plano da ocupação, uso e transformação do solo na área
abrangida.
Na verdade, nas áreas incluídas na REN são proibidas as acções de iniciativa
pública ou privada que se traduzam em operações de loteamento, obras de
urbanização, construção de edifícios, obras hidráulicas, vias de comunicação,
aterros, escavações e destruição do coberto vegetal (artigo 4.º, n.º 1).
Todavia, esta proibição não é absoluta na medida em que o regime jurídico da
REN continua a permitir nas aludidas áreas: a) a realização de acções já
previstas ou autorizadas à data da entrada em vigor da portaria conjunta de
delimitação das áreas a integrar na REN; b) as instalações de interesse para a
defesa nacional como tal reconhecidas pelos membros do Governo competentes; c)
e a realização de acções de interesse público como tal reconhecidas pelos
membros do Governo competentes (artigo 4.º, n.º 2).
Após este breve excurso pelo quadro legal infraconstitucional existente no
momento da aprovação do RPDM/SPS, interessa agora verificar se o Município de
São Pedro do Sul invadiu a esfera de reserva de competência legislativa de
qualquer órgão de soberania.
A norma sobre a qual recaiu a interpretação a fiscalizar, aprovada pela
Assembleia Municipal de São Pedro do Sul, dispõe que “as construções existentes
em áreas de RAN ou REN poderão ser objecto de obras de reparação, reconstrução e
ampliação desde que não haja alteração de uso”.
Não restam dúvidas de que quando o referido órgão autárquico emitiu a referida
norma, fê-lo ao abrigo das normas de competência previstas na Lei 69/90, que
atribuem competência à assembleia municipal para definir e estabelecer os
princípios e as regras para a ocupação, uso e transformação do solo na área do
município (artigos 3.º, n.º 2, 5.º, n.º 2, al. a), e 9.º, n.º 1).
Contudo, não obstante o aludido regime jurídico ditado pela lei ordinária, o
problema situa-se precisamente no plano constitucional, devendo a questão a
resolver ser formulada nos seguintes termos: as assembleias municipais têm
competência, à luz da Constituição, para definir e estabelecer regras para a
ocupação, uso e transformação do solo na área dos respectivos municípios, como
efectuou a Assembleia Municipal de São Pedro do Sul no caso sub iudice ?
As matérias respeitantes ao poder local e ao urbanismo são obviamente
merecedoras de tratamento constitucional.
De acordo com a Lei Fundamental, a organização democrática do Estado compreende
a existência de autarquias locais, as quais visam a prossecução de interesses
próprios das populações respectivas (artigo 237.º, da C.R.P./92).
Efectivamente, não obstante ser unitário, o Estado não pode deixar de respeitar
na sua organização o princípio da autonomia das autarquias locais (artigo 6.º,
n.º 1, da C.R.P./92).
As atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos
seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da
descentralização administrativa (artigo 239.º, da C.R.P./92).
Para assegurar a prossecução das atribuições das autarquias locais, a Lei
Fundamental atribuiu-lhes poder regulamentar próprio nos limites da
Constituição, das leis e dos regulamentos emanados das autarquias de grau
superior ou das autoridades com poder tutelar (artigo 242.º, da C.R.P./92).
Vejamos, sucessivamente, cada um dos alegados fundamentos de
inconstitucionalidade orgânica.
Nos termos da alínea g), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92, salvo
autorização ao Governo, é da exclusiva competência da Assembleia da República
legislar sobre as bases do sistema de protecção da natureza, do equilíbrio
ecológico e do património cultural.
É verdade que a matéria respeitante à “definição e estabelecimento de regras
para a ocupação, uso e transformação do solo” pode integrar a referida
competência legislativa parlamentar, na parte em que aquele sistema de protecção
ambiental e cultural necessite de introduzir constrangimentos aos poderes
inerentes ao direito de propriedade sobre imóveis.
Porém, nesta situação de reserva de lei está apenas em causa uma reserva de
densificação parcial, na medida em que a lei apenas tem de definir as “bases”,
daquele sistema de protecção, consentindo o seu desenvolvimento quer através de
decreto-lei, quer através de actos regulamentares (vide J. GOMES CANOTILHO, em
“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, pág. 728, da 7.ª Edição, da
Almedina).
Apenas está reservado à Assembleia da República estabelecer as opções
político-legislativas fundamentais, o quadro dos princípios básicos que
presidirão à disciplina jurídica daquela matéria, cuja conformação e
desenvolvimento competirá a outros órgãos constitucionais.
A norma do RPDM/SPS sob apreciação no presente recurso estabelece uma
determinada limitação para a realização de obras em construções existentes nas
áreas de RAN e REN situadas no território do município de São Pedro do Sul, pelo
que tem um tal nível de concretização que manifestamente a exclui do campo dos
grandes princípios e das directrizes fundamentais das políticas de protecção da
natureza, do equilíbrio ecológico e do património cultural, pelo que não
apresenta vocação para constar da lei de bases do ambiente.
Assim sendo, torna-se evidente que a Assembleia Municipal de São Pedro do Sul
não invadiu nesta parte a reserva relativa de competência legislativa prevista
na alínea g), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92.
Importa agora verificar se a Assembleia Municipal de São Pedro do Sul aprovou
uma norma em matéria de direitos, liberdades e garantias, em termos de ofender a
reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República imposta
na alínea b), do n.º 1, do artigo 168.º, da C.R.P./92.
O tipo de prescrições em que se insere a norma aqui em análise coloca
necessariamente em evidência a função de conformação do direito à propriedade do
solo que é associada por alguns autores aos planos territoriais quando estes
apresentam suficiente especificidade para conterem indicações sobre o destino
das áreas singulares, como sucede no caso dos planos municipais, nos quais se
encontra a resposta à questão de saber se, numa concreta parcela de terreno, é
possível construir (vide ALVES CORREIA, em “Manual de Direito do Urbanismo”,
pág. 330-331, do volume I, 3.ª Edição, da Almedina).
O artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P., consagra precisamente a garantia da propriedade
privada, ao estabelecer que “a todos é garantido o direito à propriedade privada
e à sua transmissão em vida ou por morte nos termos da Constituição”.
Apesar do direito à propriedade privada ser considerado um direito fundamental
de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, nos termos do artigo
17.º, da C.R.P., mesmo admitindo que esta equiparação abrange as regras
orgânicas (vide, negando essa possibilidade, JORGE MIRANDA, em “Constituição
Portuguesa anotada”, tomo I, pág. 146, da ed. de 2005, da Coimbra Editora) e
ainda que o ius aedificandi, incluindo o direito de realizar obras de alteração
em construção já existente, constitui parte componente do direito
constitucional à propriedade privada por ser um dos poderes em que tal direito
se desdobra (vide, opinando em sentido contrário, ROGÉRIO SOARES, em “Direito
Administrativo (Lições ao Curso Complementar de Ciências Jurídico-Políticas da
Faculdade de Direito de Coimbra no ano lectivo de 1977/1978), pág. 116-117,
ALVES CORREIA, em “O plano urbanístico e o princípio da igualdade”, pág. 348 e
seg., da ed. de 1989, da Almedina, e em “Manual de direito do urbanismo”, vol.
I, pág. 697, da 3ª ed., da Almedina, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, em
“Constituição da República Portuguesa anotada”, vol. 1º, pág. 804, da 4ª ed., da
Coimbra Editora, e JORGE MIRANDA, na ob. cit., pág. 627-628), daí não resulta
que toda a normação reguladora do direito de propriedade haja de ser produzida
ou autorizada pela Assembleia da República.
Na verdade, só se justifica que integrem a reserva parlamentar as intervenções
legislativas que respeitem às dimensões do direito de propriedade que tiverem
uma natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, pois só nessas
matérias tem pertinência a aplicação do regime destes.
Ora, conforme se afirmou nos acórdãos deste Tribunal nº 329/99 e 544/2001
(publicados, respectivamente, no B.M.J. n.º 488, pág. 57, e em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 51.º vol., pág. 561), se o direito duma pessoa não ser
privado da sua propriedade, salvo por razões de utilidade pública e mediante o
pagamento de uma justa indemnização, integra essa dimensão nuclear do direito de
propriedade, já as diversas faculdades integrantes do chamado ius aedificandi,
por não serem essenciais à realização do Homem como pessoa, não têm uma natureza
análoga à dos direitos, liberdades e garantias.
Por isso a norma aqui em questão, limitativa do direito do proprietário em
realizar obras de alteração em construções que lhe pertencem, não se pode
considerar abrangida pela reserva relativa de competência legislativa da
Assembleia da República imposta na alínea b), do n.º 1, do artigo 168.º, da
C.R.P./92.
O recorrente fundamenta ainda a invocada inconstitucionalidade orgânica numa
reserva legislativa do Governo resultante do disposto no artigo 201º, n.º 1, c),
da C.R.P./92 (actual 198.º).
Estabelece este artigo que compete ao Governo, no exercício de funções
legislativas fazer decretos-leis de desenvolvimento dos princípios ou das bases
gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam.
Estamos perante uma competência dependente, cujo exercício está condicionado
pela existência duma lei de bases que careça de desenvolvimento legislativo,
sendo certo que quando o RPDM/SPS foi aprovado, encontrava-se em vigor uma lei
de bases do ambiente (a Lei n.º 11/87, de 7 de Abril).
Nos termos da referida lei, “a defesa e valorização do solo como recurso natural
determina a adopção de medidas conducentes à sua racional utilização, a evitar a
sua degradação e a promover a melhoria da sua fertilidade e regeneração,
incluindo o estabelecimento de uma política de gestão de recursos naturais que
salvaguarde a estabilidade ecológica e os ecossistemas de produção” (artigo
13.º, n.º 1).
Mais ali se prescreve que “a utilização e a ocupação do solo para fins urbanos e
industriais ou implantação de equipamentos e infra-estruturas serão
condicionadas pela sua natureza, topografia e fertilidade” (artigo 13.º, n.º 5).
Para prosseguir esses fins, a reserva ecológica nacional e os planos directores
municipais – acima descritos nos seus traços essenciais – constituem
instrumentos da política de ambiente e do ordenamento do território, devendo o
Governo e a administração regional e local articular entre si a implementação
das medidas necessárias no âmbito das respectivas competências (artigo 27.º,
n.º 1, alíneas d), e)).
Segundo o legislador constituinte, para além do Estado, compete também às
regiões autónomas e às autarquias locais exercer o efectivo controlo do parque
imobiliário, proceder às expropriações dos solos urbanos que se revelem
necessárias e definir o respectivo direito de utilização (artigo 65.º, n.º 4, da
C.R.P./92).
A problemática da repartição de competências normativas entre os órgãos de
soberania com competência legislativa e as autarquias locais é resolvida através
da ideia da intervenção concorrente do Estado, das regiões autónomas e das
autarquias locais (vide ALVES CORREIA, em “Manual de Direito do Urbanismo”,
volume I, pág. 131 e seg., da 3ª ed., da Almedina).
As razões para este condomínio de interesses estaduais e locais em matéria de
urbanismo são fáceis de entender.
Como observa ALVES CORREIA – inspirado nas reflexões de VIEIRA DE ANDRADE
(expostas em “Autonomia regulamentar e reserva de lei – Algumas reflexões acerca
da admissibilidade de regulamentos das autarquias locais em matéria de
direitos, liberdades e garantias”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor
Afonso Rodrigues Queiró, vol. I, BFDUC, 1984, pp. 1 e ss.) sobre a autonomia
regulamentar autárquica –, “um entendimento rígido de reserva de lei no campo da
delimitação do direito de propriedade do solo, no sentido de aí ser proibida
qualquer intervenção normativa da Administração, conduziria a resultados
absurdos, dada a manifesta impossibilidade de a lei definir o destino, o uso e
regime de transformação de todas as porções concretas do território nacional,
tendo em conta os múltiplos condicionalismos e especificidades locais,
relacionados com o desenvolvimento e expansão dos aglomerados urbanos, a
necessidade da criação de zonas verdes, a definição de áreas destinadas a
arruamentos e sistemas de saneamento básico, a tipologia das construções, etc.
Tudo isto significa que, pelo menos no domínio do direito de propriedade do
solo, não pode aplicar-se um princípio rígido de reserva de lei e que a
disciplina do destino e das formas de utilização do solo terá de caber
inevitavelmente aos planos urbanísticos municipais” (em “O plano urbanístico e
o princípio da igualdade”, pág. 340-341) .
É esta concepção dos interesses urbanísticos que está na base da confiança aos
municípios da gestão urbanística no seu território, nomeadamente da elaboração e
aprovação dos planos municipais, sujeita a ratificação do Governo de modo a
assegurar a sua compatibilidade com planos, critérios e normas de natureza
geral, conforme então determinava o Decreto-Lei n.º 69/90, de 2 de Março.
Segundo o artigo 4.º deste diploma os planos municipais têm a natureza de
regulamento administrativo.
Aprofundando a classificação legal do acto normativo em presença, a doutrina
teve a oportunidade de concretizar que os planos urbanísticos municipais são
“regulamentos autorizados das autarquias locais, produto de uma remissão
legislativa, que visam completar ou integrar as leis respeitantes ao sistema de
planificação urbanística”, preenchendo, “assim, os requisitos que o n.º 7 do
art. 115.º da Constituição prescreve para este tipo de regulamentos: a
precedência de uma lei definidora da competência subjectiva e objectiva para a
sua emissão e o dever de citação da lei habilitante por parte daqueles
instrumentos normativos” (Alves Correia, em “O plano urbanístico e o princípio
da igualdade”, pág. 342).
Ora, integrando a norma regulamentar autárquica sob apreciação o Regulamento do
Plano Director Municipal de São Pedro do Sul (RPDM/SPS), aprovado pela
Assembleia Municipal de São Pedro do Sul em 23 de Fevereiro de 1995 e
ratificado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 105/95, de 13 de
Outubro, ao abrigo de norma de competência especificamente habilitadora para
esse efeito constante do artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-lei nº 69/90, de 2 de
Março, não há na emissão daquela norma qualquer invasão da competência
legislativa do Governo.
2.2. Da inconstitucionalidade material
Questão diversa da inconstitucionalidade orgânica que se acabou de analisar,
consiste em saber se o conteúdo da interpretação da referida norma regulamentar
constitui uma limitação ou uma restrição inadmissível aos direitos fundamentais
da livre iniciativa privada (artigo 61.º, da C.R.P.) e do direito à propriedade
privada (artigo 62.º, da C.R.P.), tal como defende o recorrente.
Será este exercício de análise que nos vai ocupar de seguida, desta feita à luz
da redacção actualmente em vigor da Constituição, uma vez que a
inconstitucionalidade material tem apenas por referência o momento da aplicação
das normas infraconstitucionais, não estando, assim, sujeita ao princípio do
tempus regit actum.
O disposto na alínea a), do artigo 68.º, do Regulamento do Plano Director
Municipal de São Pedro do Sul (RPDM/SPS), foi aplicado como ratio decidendi pelo
tribunal a quo na interpretação segundo a qual a utilização de uma casa de
habitação, existente em área incluída na Reserva Ecológica Nacional, como casa
de hóspedes, consubstancia uma alteração de uso para efeito de proibição de
realização de obras de reconstrução e ampliação na casa em questão.
Não compete ao Tribunal Constitucional aferir da bondade dessa interpretação
adoptada pelo tribunal a quo, apresentando-se a mesma como um dado que apenas
importa aqui apreciar no plano jurídico-constitucional.
O artigo 61.º, da C.R.P., ao falar da liberdade de iniciativa privada,
refere-se, em primeira linha, ao direito de qualquer um iniciar uma actividade
económica, individualmente ou em sociedade.
Este direito não é absoluto, estando sujeito aos quadros definidos pela
Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral (artigo 61.º, n.º 1,
2.ª parte, da C.R.P.).
Também o direito constitucional à propriedade privada apenas é garantido nos
termos da Constituição, pelo que o seu conteúdo pode ser comprimido por outros
direitos com consagração constitucional (artigo 62.º, n.º 1, da C.R.P.).
Sendo ambos direitos relativos, o seu conteúdo pode sofrer limitações
resultantes da adopção de medidas de protecção do direito ao ambiente consagrado
no artigo 66.º, da C.R.P. (vide, neste sentido, GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
na ob. cit., pág. 846-847), assim como da definição das regras de ocupação, uso
e ocupação dos solos efectuada pelo Estado, regiões autónomas e autarquias
locais, através de instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes
ao ordenamento do território, imposta pelo n.º 4, do artigo 65.º, da C.R.P.
(vide, neste sentido, ALVES CORREIA, em “Manual de direito do urbanismo”, vol.
I, pág. 674-677, da 3ª ed.).
A protecção do direito ao ambiente pode exigir limitações quer à liberdade de
localização de estabelecimento (artigo 66.º, n.º 2, b), da C.R.P.), quer à
liberdade de edificação, mesmo quando se admite que esta é uma componente do
direito constitucional à propriedade privada, incluindo a realização de obras de
alteração a edifício já construído (artigo 66.º, n.º 2, b) e c), da C.R.P.), o
mesmo sucedendo com os instrumentos de planeamento elaborados no quadro das
leis respeitantes ao ordenamento do território, cumprindo o ditame do n.º 4, do
artigo 65.º, da C.R.P..
Daqui resulta que o legislador, quer no domínio da elaboração dos instrumentos
de planeamento, quer no domínio da adopção de medidas de protecção do ambiente,
tem liberdade de conformação dos direitos de iniciativa e propriedade privada,
podendo estabelecer limites aos diferentes poderes componentes destes direitos,
desde que não fira o seu núcleo essencial.
É precisamente neste âmbito conformador daqueles direitos, permitido pela
Constituição, que se situa a interpretação normativa questionada, uma vez que
procede à leitura de instrumento de planeamento elaborado no quadro das leis
respeitantes ao ordenamento do território e visa prosseguir política de
preservação da paisagem natural.
Na verdade, por um lado, a proibição de realização de obras de alteração de
construção existente em área REN, visando modificar a sua utilização de casa de
habitação para casa de hóspedes, é extraída de dispositivo integrante de plano
director municipal, que tem por objectivo a protecção das áreas REN, enquanto
estrutura biofísica básica e diversificada, através da imposição de
condicionamentos à sua utilização de forma a garantir a defesa de ecossistemas e
a permanência e intensificação dos processos biológicos indispensáveis ao
enquadramento equilibrado das actividades humanas (artigo 1.º, do Decreto-lei
n.º 93/90).
Por outro lado, esta limitação apenas impede o estabelecimento da actividade
económica de hospedagem em edifício situado em determinada área protegida e
condiciona o poder de utilização do proprietário sobre esse edifício, não
atingindo o núcleo essencial da liberdade de iniciativa privada (artigo 61.º, da
C.R.P.) e do direito à propriedade (artigo 62.º, da C.R.P.), nem limitando de
forma inadequada e excessiva tais direitos.
Deste modo, por integrar uma limitação constitucionalmente admissível à
liberdade de iniciativa privada e ao direito à propriedade privada, a
interpretação normativa questionada também não sofre do vício da
inconstitucionalidade material, pelo que o recurso interposto deve ser julgado
improcedente.
*
Decisão
Pelo exposto julga-se improcedente o recurso interposto por A. do acórdão do
Tribunal Central Administrativo Norte proferido nestes autos em 28 de Fevereiro
de 2008.
*
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/2008, de 7 de Outubro (artigo 6º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 13 de Janeiro de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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