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Processo n.º 697/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
(Conselheiro Benjamim Rodrigues)
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que são recorrentes A., B., C. e D., e
recorrido, o Ministério Público, foram interpostos dois recursos separados, ao
abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15
de Novembro (LTC), do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de
10.07.2008, para apreciação da constitucionalidade:
a) da norma do artigo 215.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na
versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no
sentido de permitir que, durante o inquérito, a excepcional complexidade, a que
alude o n.º 3 do mesmo artigo, possa ser declarada oficiosamente sem
requerimento do Ministério Público;
b) da norma do artigo 215.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na
versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no
sentido de permitir que, em caso de declaração oficiosa da excepcional
complexidade, esta não tem que ser precedida da audição do arguido,
por se verificar, quanto à primeira, a violação do disposto nos n.ºs 4 e 5 e,
quanto à segunda, a violação do n.º 1, todos do mesmo artigo 32.º da
Constituição da República Portuguesa.
2. Com pertinência para a compreensão do quadro processual em que as
questões emergiram, importa notar o seguinte.
2.1. Os arguidos foram detidos em 3 de Outubro de 2007 e, havendo
sido apresentados ao Juiz de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Viana do
Castelo, foi-lhes aplicada a medida de coacção da prisão preventiva.
2.2. Interposto, pelos arguidos, recurso para o Tribunal da Relação
de Guimarães, foi confirmada a medida de coacção aplicada.
2.3. Por despacho de 3 de Abril de 2008, o referido Juiz de
Instrução Criminal determinou a excepcional complexidade dos autos e a
manutenção da prisão preventiva aos arguidos.
2.4. Invocando o disposto nos artigos 118.º, n.º 2, 123.º, n.º 1,
215.º, n.º 4, in fine, 61.º, b) do Código de Processo Penal, e 32.º, n.º 1, da
Constituição da República Portuguesa, os arguidos vieram invocar a
irregularidade e consequente invalidade do despacho que determinou a especial
complexidade dos autos e, por via disso, a extinção, por decurso do prazo, da
medida de prisão preventiva.
2.5. Por despacho de 7 e 8 de Outubro de 2008, o Juiz de Instrução
Criminal indeferiu a requerida irregularidade, com o fundamento de que, em
situação de oficiosidade, a decisão que determine a excepcional complexidade,
nos termos do artigo 215.º, n.º 4, do CPP, não impõe a audição do Ministério
Público, do arguido ou do assistente.
2.6. Inconformados, os arguidos interpuseram, perante o Supremo
Tribunal de Justiça, providência do Habeas Corpus invocando a ilegalidade da
prisão, decorrente da caducidade do prazo da prisão preventiva, e recurso para o
Tribunal da Relação, com os mesmos fundamentos.
3. O acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães negou provimento ao
recurso, abonando-se, essencialmente, nas seguintes considerações:
«- Vejamos:
1 - Sobre se durante o inquérito o Juiz de Instrução Criminal pode declarar,
oficiosamente, a excepcional complexidade do processo nos termos do art. 215º,
n.ºs 3 e 4 do C. P. Penal.
Este preceito tem na sua epígrafe a menção “Prazos de duração máxima da prisão
preventiva” e o seu n.º 4 estabelece o seguinte:
“4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo apenas pode
ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado, oficiosamente
ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente.”.
Analisado o normativo em apreço constata-se, com linearidade, que o mesmo não
distingue em que fase do respectivo processo o juiz pode declarar a excepcional
complexidade; se em sede de inquérito, instrução ou julgamento.
Ora, onde a lei não distingue não cabe ao intérprete fazê-lo.
Argumentam, porém, os recorrentes que se durante o inquérito e nos termos do
art. 194°, n.°s 1 e 2 do C. P. Penal o juiz não pode aplicar uma medida de
coacção sem ouvir o Ministério Público, não podendo mesmo fazer aplicação de uma
medida de coacção mais grave do que a requerida por aquele, não faria sentido
que durante o mesmo inquérito pudesse ex officio declarar a excepcional
complexidade deste último.
Discordamos de tal ponto de vista.
Com efeito, no sobredito art. 194° está em causa a aplicação de medidas de
coacção ou de garantia patrimonial, as quais implicam uma limitação directa à
liberdade pessoal ou patrimonial do arguido.
Ou seja, ali estipulam-se as condições em que o juiz procede à aplicação
daquelas medidas, que portanto “ são meios processuais de limitação da liberdade
pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por
prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento,
quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões
condenatórias “ (Prof. Germano Marques da Silva, In Curso de Processo Penal, II,
pág. 201).
Assim, estando o respectivo processo ainda em fase de inquérito impõe-se que o
seu dominus, o M. P., limite nessa fase a intervenção do Juiz de Instrução,
quanto à aplicação dos aludidos meios processuais; e até porque se assim não
fosse, poderia até comprometer-se todo um plano de investigação (como refere a
Dr.a Odete Maria Oliveira, figure-se a hipótese de o Juiz de Instrução impor ao
arguido a prisão preventiva “ quando uma correcta execução de um concreto plano
de investigação implicasse a continuação do arguido em liberdade “, In As
Medidas de Coacção no Novo Código de Processo Penal, pág. 179).
Já no assinalado art. 215°, nº 4, visa-se apenas uma medida de coacção em
particular, a prisão preventiva – de cuja aplicação o M. P. não discorda – e o
prazo da sua duração.
Nesta conformidade e como in casu sucedeu, aquando do reexame dos pressupostos
da prisão preventiva em inquérito – acto jurisdicional a que o Juiz de Instrução
Criminal procede periodicamente naquela fase sem necessário e prévio
requerimento do M. P., cfr. o art. 213°, n. 1 do C. P. Penal[1] - nada impede
que o Juiz nesse momento processual declare a excepcional complexidade do
processo.
Veja-se que nos termos do n.º 2 daquele preceito compete, então, também ao Juiz
de Instrução aquilatar dos fundamentos da elevação dos prazos da prisão
preventiva.
E para tanto só ouve o M. P. e o arguido, se isso for necessário (n.º 3 do mesmo
normativo legal).
Afigura-se-nos, pois, que se em inquérito o M. P. não pretende que ao arguido
seja aplicada uma medida de coacção menos gravosa do que a prisão preventiva,
nada obsta a que o Juiz ao proceder ao reexame periódico daquela medida, a
mantenha, por também a reputar necessária, e em simultâneo declare oficiosamente
a excepcional complexidade do processo por entender estarem verificados os
fundamentos para tanto.
Neste sentido aponta o Acórdão do S. T. J de 30-04-08, processo 08P1504 (uma das
providencias de habeas corpus instauradas nestes autos), relatado pelo
Conselheiro Rodrigues da Costa, no qual se decidiu que “Em qualquer das fases do
processo – inquérito, instrução ou julgamento – a excepcional complexidade pode
ser declara pelo juiz oficiosamente e, portanto, também pelo Juiz de Instrução,
nomeadamente no reexame dos pressupostos da prisão preventiva ou sempre que
necessário.”
Improcede destarte o fundamento invocado.
*
- Sobre se a decisão que declarou a excepcional complexidade dos presentes autos
tinha de ser precedida da audição do arguido.
Voltemos a interpretar o acima transcrito art. 215°, n.º 4, do Código de
Processo Penal.
Entendemos que o mesmo distingue entre a declaração de excepcional complexidade
declarada ex officio e a decretada através de prévio requerimento do M. P..
No primeiro caso, o juiz, porque age por sua iniciativa não tem de ouvir os
restantes sujeitos processuais.
Logo, não tem ab initio de consultar o arguido, embora, naturalmente, o possa
fazer.
Na segunda situação, a declaração em apreço é solicitada por um dos sujeitos
processuais, o M. P., pelo que, antes de decidir o juiz tem de ouvir o arguido e
o assistente.
Desta orientação que, com todo o respeito pela opinião contrária, julgamos ser a
mais correcta, resultam as seguintes consequências:
a) Nem o assistente nem o arguido podem requerer que seja declarada a
excepcional complexidade do processo.
b) Quando esta for declarada oficiosamente, o juiz não tem, previamente, de
consultar qualquer sujeito processual (embora o possa fazer).
c) Apenas o M. P. pode requerer o decretamento de tal declaração e, nesta
hipótese, o juiz só pode decidir depois de ouvir o arguido e o assistente.
Reportando-nos ao casu sub judice, verifica-se que o mesmo é subsumível à
situação contemplada na sobredita al. b) não padecendo, pois, a decisão
recorrida dos vícios assinalados nos recursos.
A interpretação do citado art. 215°, n.º 4, por banda dos recorrentes, no
sentido de que, em qualquer circunstância, o juiz antes de decidir teria de dar
a palavra ao arguido, conduziria, salvo o devido respeito, a esta ilogicidade: a
de aquele magistrado ter sempre de ouvir o arguido e o assistente – porque in
fine o preceito refere “ouvidos o arguido e o assistente” – e já não ter de
consultar o M. P., visto este não ser mencionado na parte final da norma em
questão.
Como diz e bem o ilustre PGA junto deste Tribunal da Relação “se no art. 215°,
n.º 4 do C. P. P. se visasse uma observância irrestrita do contraditório, não
faria sentido excluir (sublinhado nosso) o M. P. da audição a que o JIC
previamente à prolação “ex officio” do despacho declarativo da excepcional
complexidade do procedimento está obrigado” (fls. 1759); exclusão, acrescentamos
nós, que já não incidiria sobre o assistente.
Não vislumbramos, assim, que a douta decisão a quo tenha contrariado o elemento
literal ou sistemático da norma em apreciação.
E a este ultimo propósito, nem se diga que houve violação do disposto no art.
61°, n.º 1, al. b) do C. P. Penal, ou incumprimento do preceituado no art. 32°,
n.º 1 da C. R. P., 14°, n.º 3 do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e
Políticos, ou no art. 11°, n.º 1, in fine da Declaração Universal dos Direitos
do Homem.
Na verdade, estamos perante uma das excepções ao direito de audição do arguido
previstas no corpo do sobredito art. 61°, n.º 1, nos termos do qual “O arguido
goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei,
dos direitos de: (...)” (sublinhado nosso).
Tal restrição legal em nada belisca a obrigação, decorrente do art. 32°, n.º 1,
da C. R. P., de o processo penal assegurar ao arguido todas as garantias de
defesa.
E porquanto a nossa lei adjectiva penal continua a dotar o arguido com todos os
mecanismos processuais necessários à elaboração da sua defesa, e, o citado art.
61°, estabelece “os alicerces do direito global de defesa, especificando alguns
dos variados direitos concretos que o integram” (Dr.s Simas Santos e Leal
Henriques, In ob. cit., pág. 316).
A interpretação sufragada na douta decisão recorrida não padece, portanto, de
qualquer vício de inconstitucionalidade.
E ela é enunciada como admissível no supra indicado acórdão do S.T.J., quando
ali se exarou que “ Se se entender como admissível que a declaração oficiosa de
excepcional complexidade pode ser ditada pelo Juiz sem audição prévia do
arguido, então tal situação configurará justamente uma das excepções ressalvadas
pelo art. 61°, n.º 1 do C. P. P. e não ocorrerá qualquer violação da lei”.
Não existem, pois, as invocadas irregularidades nos despachos em apreço.
Termos em que improcede, igualmente, este fundamento alegado.
*
3- Se tem justificação nos presentes autos a sua declaração como sendo de
especial complexidade;
Face aos elementos disponíveis nos autos, investiga-se nos mesmos a prática,
pelos recorrentes, em “co-autoria material e com dolo directo, de:
- dois crimes de roubo, na forma consumada, p. e p. pelo art. 210º, n.ºs 1 e 2,
b), em conjugação com o disposto nos art.s 204.º, n.º 2, a) e f) e 202.º, b),
todos do CP (lei vigente à data dos factos);
- um crime de associação criminosa, na forma consumada, p. e p. pelo art. 299.º,
n.º 1 do CP (lei vigente à data dos factos);
- dois crimes de homicídio, na forma tentada, p. e p. pelos art.s 131. °, n.ºs 1
e 2, f), g) e j), ambos do CP (lei vigente à data dos factos).” (cfr. fls. 1384
e 1385, do 8º volume).
Antes de mais, é de referir que os factos em causa são de 04 e sobretudo de 06
de Setembro de 2007 (cfr. fls. 288 do II vol.).
*
Tendo em 15-09-2007, entrado em vigor a Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto que
veio alterar o C.P.P. (alterações que se revelam, quanto às matérias em apreço,
mais favoráveis aos arguidos - para efeitos do disposto no art. 5º do C. P.
Penal).
No respeitante à declaração de excepcional complexidade, continuando a ser
prevista pela lei nova enquanto pressuposto de elevação, embora em moldes mais
reduzidos, quando comparativamente com a antecedente, tem como traço distintivo,
como vimos supra, só poder ser declarada durante a 1ª instância, por despacho
fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o
arguido e o assistente – art. 215. ° n.º 4 do CPP.
O legislador não forneceu razão para esse decretamento preclusivo só nessa fase
processual – em 1ª instância –, mas alcança-se que a oportunidade da declaração
se faz por razões de maior protecção da liberdade individual, coarctando a
possibilidade de, noutra fase processual, aquela declaração ainda ter lugar,
estimulando a uma maior celeridade processual, desincentivando esse último
recurso de elevação do prazo da prisão preventiva.
Os crimes em causa, reportam-se a “criminalidade especialmente violenta”, como
configura a alínea l) do artigo 1º do C. P. Penal.
Conforme estipula o n.º 2 do artigo 215. ° do CPP, no caso, os prazos de duração
máxima da prisão preventiva, previstos no nº 1 do artigo 215.º do CPP, são,
pois, automaticamente elevados, conforme naquela disposição legal consta.
Todavia, os prazos de duração máxima da prisão preventiva previstos no nº 1
podem, ainda, ser elevados nos termos do nº 3 daquele artigo 215. ° desde que o
procedimento se revele de excepcional complexidade.
A descrição da norma não apresenta, porém, a noção de “excepcional complexidade”
com um círculo de referências objectivamente marcadas.
Para a integração do conceito, indica o legislador, a título de exemplo (como é
função do advérbio nomeadamente) alguns tópicos. A excepcional complexidade será
revelada, «nomeadamente, pelo número de arguidos ou ofendidos ou pelo carácter
altamente organizado do crime».
A noção está, pois, em larga medida referenciada a espaços de indeterminação
pressupondo uma integração densificada pela análise e ponderação de todos os
elementos do procedimento; a integração da noção exige, assim, uma intensa e
exclusiva ponderação sobre os elementos da concreta configuração processual, que
se traduz, no essencial, em uma avaliação prudencial sobre factos.
A esse respeito decidiu-se no Acórdão do STJ de 26.1.2005, in Proc. 3114/05, de
que foi relator o Exmo. Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, vide site do STJ,
in Sumários de Acórdãos, a excepcional complexidade constitui, no rigor, uma
noção que apenas assume sentido quanto avaliada na perspectiva do processo,
considerado não nas incidências estritamente jurídico-processuais, mas na
dimensão factual de procedimento enquanto sequência e conjunto de actos e
revelação externa e interna de acrescidas dificuldades de investigação,
composição e sequência com refracção nos termos e nos tempos do procedimento.
A decisão sobre a verificação da excepcional complexidade não depende, pois, da
aplicação da lei a factos e da integração de elementos compostos com dimensão
normativa, nem está tributária da interpretação de normas.
O juízo sobre a complexidade assume-se, assim, como juízo prudencial, de
razoabilidade, de critério da justa medida na apreciação e avaliação das
dificuldades suscitadas pelo procedimento. Mas, dificuldades do procedimento e
não estritamente do processo; as questões de interpretação e de aplicação da
lei, por mais intensas e complexas, não atingem a noção.
As dificuldades de investigações (técnicas, com intensa utilização dos leges
artis da investigação), o número de intervenientes processuais, a deslocalização
dos actos, as contingências procedimentais provenientes das intervenções dos
sujeitos processuais, a intensidade de utilização dos meios, tudo serão
elementos a considerar, no prudente critério do juiz, para determinar que um
determinado procedimento apresenta, no conjunto ou, parcelarmente, em alguma das
suas fases, uma especial complexidade com o sentido, essencialmente de natureza
factual, que a noção funcionalmente assume no artigo 215, n.º 3 do CPP.
Esta declaração deve fundar-se em factores objectivos que coloquem uma
dificuldade adicional, acrescida, de natureza excepcional, ao juiz, não sendo
por isso suficientes factores de natureza subjectiva.
O despacho de declaração da excepcional complexidade deve, como qualquer
despacho, ser fundamentado. Di-lo o n.º 4 do artigo 215. °, mas tal já resultava
do n.º 5 do artigo 97° do CPP, e constitui, aliás, concretização de imperativo
constitucional (artigo 205.º, n.º 1, da Constituição).
Está, in casu, o mesmo, no essencial fundamentado da forma seguinte:
27 “Tais crimes são crimes que se reportam a criminalidade especialmente
violenta, tal qual o CPP o define no art. 1º l).
Existem constituídos nos autos, para além destes quatro arguidos, pelo menos
mais cinco arguidos, para além de diversas pessoas que são, para já, suspeitas.
Estão em curso diversas diligências de prova, algumas das quais periciais e de
elevada complexidade.
Tudo gera, consequentemente, dificuldades na tramitação normal do presente
inquérito.
Os factos em investigação reportam-se a uma criminalidade complexa, com
relacionamentos entre muitas pessoas e com situações que geram dificuldades na
investigação.
Tais circunstâncias – que desde logo acarretam uma perda enorme de tempo real
entre a prática de cada acto de investigação que compõe o inquérito – são de per
si reveladoras e constitutivas da qualificante de excepcional complexidade.
Dispõe o nº 3 do art. 215. ° do CPP que “Os prazos referidos no n.º 1 são
elevados, respectivamente, para doze meses (...), quando o procedimento for por
um dos crimes referidos no número anterior e se revelar de excepcional
complexidade (...).“
É essa, pelos factos supra referidos, a situação do presente inquérito.
Do nosso ponto de vista, no essencial, concorda-se com o mencionado pelo M. P.
que na sua resposta refere:
“Como já referimos em intervenções anteriores, está em causa nos presentes autos
a investigação de criminalidade especialmente violenta, cujos agentes revelaram
uma actividade particularmente organizada.
Na verdade, os arguidos B., Teimo Martins e A., juntamente com Bruno Moreira e
outros indivíduos, mantinham entre si fortes relações de amizade e interesses
mútuos, mantendo entre todos um convívio permanente no dia-a-dia.
No âmbito desse relacionamento tais indivíduos decidiram conciliar-se para, em
conjunto, de forma duradoura, e sob o comando do Bruno Moreira e B., além do
mais, congregarem esforços para se apoderarem de bens de terceiros, com recurso
à força e intimidação através de armas de fogo, cujos lucros seriam divididos
por todos.
Com o decurso do tempo foram refinando os métodos de actuação, mantendo uma
actividade arrojada, extremamente organizada e cautelosa, passando pela prática
de carjacking para a utilização de carros roubados em assaltos, como sucedeu nos
presentes autos, com utilização de disfarces, eliminando depois toda e qualquer
prova que os possa correlacionar com os crimes, ora destruindo as viaturas e
telemóveis de recurso, ora evitando qualquer contacto telefónico entre eles de
modo a não serem captados em escutas telefónicas.
Não tem sido fácil a investigação levada a cabo nos autos pela PJ, para
investigar os dois assaltos ocorridos: um em Paços de Ferreira (carjacking) e
outro em Viana do Castelo (assalto a duas ourivesarias).
Basta uma leitura superficial do processo.
Neste momento os autos são constituídos por 22 volumes, com 6090 páginas, para
além de diversos apensos.
Dado o carácter altamente organizado dos crimes só com recurso a um elevado
número de agentes policiais e demoradas diligências de prova (escutas,
periciais, exames, cruzamento de diversos dados, etc.) foi possível determinar o
acervo factual e probatório já disponível, quase sempre a montante dos factos
ocorridos em ordem a colher alguns vestígios quanto a estes dada a destruição
sistemática de quaisquer indícios por parte dos arguidos.
Sendo certo que ainda importa prosseguir com algumas diligências que se revelam
essenciais para o apuramento total dos crimes perpetrados.
Deste modo, conclui-se que a classificação da excepcional complexidade do
procedimento não oferece quaisquer dúvidas e satisfaz os critérios legais”.
(o sublinhado e destacado a negrito é nosso).
Assim, atento o exposto e compulsados os autos, quanto ao mérito da declaração
da excepcional complexidade do procedimento, não há razões para censurar o
despacho recorrido.
A excepcional complexidade é um grau superlativo de dificuldade, que não pode
ser banalizado. Porém, a análise dos elementos em que se fundou o despacho
recorrido, demonstra no caso e fundamenta a declaração da excepcional
complexidade do procedimento.
Em nosso entender, o despacho não viola, pois, qualquer norma processual penal,
nem de natureza constitucional, nomeadamente as indicadas pelos recorrentes.
O alargamento dos prazos de prisão preventiva em virtude da declaração de
excepcional complexidade não viola o art. 28. ° n.º 4 da CRP que concede ao
legislador uma margem de liberdade de conformação suficiente, observado o
princípio da proporcionalidade, para diferenciar os ditos prazos em função da
gravidade objectiva dos crimes e da complexidade dos processos.
Em face do que é improcedente nesta parte o recurso dos arguidos».
4. Alegando no Tribunal Constitucional, os arguidos A. e B.
concluíram a sua argumentação do seguinte jeito:
«[…]
· Porque à data em que foram as Decisões em apreço proferidas, os autos
estavam na fase de inquérito;
· Porque o Mº Pº é o único titular do inquérito e é da sua exclusiva
competência a promoção processual
· Porque na fase de inquérito, a declaração de excepcional complexidade
tem, necessariamente, de ser requerida pelo Ministério Público, por ser o
titular dessa fase preliminar e obrigatória do processo;
· Porque o Mº Pº não requereu a declaração de excepcional complexidade
dos autos;
· Porque é ilegítima a iniciativa ex ofício do JIC para determinar a
excepcional complexidade dos autos durante a fase de inquérito sem prévio
requerimento do titular do inquérito;
· Porque a declaração de excepcional complexidade só pode ser
oficiosamente proferida pelo JIC durante a instrução e pelo Juiz após
recebimento da acusação;
· Porque a Decisão que determina a especial complexidade nos autos, nos
moldes em que foi proferida, consubstancia abuso do poder cometido ao JIC e
invade competência reservada ao Mº Pº
· Porque tal decisão afecta pessoalmente o Recorrente, aumentando para o
dobro o prazo máximo de prisão preventiva a que está sujeito;
· Porque não foi previamente conferido ao Recorrente o direito de audição
quanto à declaração de excepcional complexidade dos autos;
· Porque a decisão de especial complexidade nos moldes em que foi
proferida viola os direitos liberdades e garantias do Recorrente;
· Porque a Decisão de declaração de excepcional complexidade, nos moldes
em que foi proferida, é contra legem;
· Porque a interpretação normativa segundo a qual o disposto no art.
215º, nº 4 do CPP permite a declaração oficiosa de excepcional complexidade pelo
Juiz de instrução durante o inquérito, sem prévio requerimento do Ministério
Público é inconstitucional por violação do disposto no art. 32º da C.R.P.
· Porque a interpretação normativa segundo a qual o disposto no art.
215º, nº 3 do CPP permite a declaração oficiosa de excepcional complexidade pelo
Juiz de instrução sem ser precedida de audição do arguido é inconstitucional por
violação do disposto no art. 32º da C.R.P.
deve o presente recurso ser provido e, por via dele, declaradas
inconstitucionais, por violação do disposto no art. 32º da CRP,
1 - a interpretação normativa segundo a qual, durante o inquérito em processo
penal, a declaração de excepcional complexidade a que alude o art. 215º, nº 3 do
CPP pode ser declarada oficiosamente e sem que seja precedida de requerimento do
Ministério Público
2 - a interpretação normativa segundo a qual a declaração de excepcional
complexidade a que alude o art. 215º, nº 3 do CPP pode ser declarada
oficiosamente sem prévia audição do Arguido».
5. Por sua vez, os arguidos C. e D. sintetizaram nas seguintes
proposições as razões da sua discordância com o decidido:
«1. Resulta do Artigo 263.º n.º 1 do C.P.P. que “A direcção do
inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia
criminal”, sendo que, durante o Inquérito, apenas estão reservados ao JIC os
actos de Natureza Jurisdicional a que melhor aludem os artigos 268.º e 269.º do
C.P.P.
2. O despacho que determina a declaração de Excepcional Complexidade
ao abrigo do disposto no n.º 4 do art. 215.º é, quando proferido durante o
inquérito, um dos “…actos que a lei expressamente…” reserva ao JIC nos termos da
alínea f) do n.º 1 do art. 268.º do C.P.P.
3. Pelo que, nos termos do n.º 2 do art. 268.º, tais actos apenas
poderão ser praticados “…a requerimento do Ministério Público, da autoridade de
polícia criminal em caso de urgência ou de perigo na demora, do arguido ou do
assistente”
4. A declaração oficiosa a que alude o art. 215 n.º 4 do C.P.P. reserva-se
exclusivamente para as fases de Instrução e Julgamento, nunca para a fase de
Inquérito.
5. Entendimento contrário viola o princípio do acusatório e é
manifestamente inconstitucional, por violar o art. 32 n.º 5 da C.R.P.
Ainda,
6. O Art. 32.º n.º 1 da C.R.P. ao impor de forma peremptória que “O
processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”,
tem, numa das suas concretizações ao nível da Lei Ordinária, a parte final do
n.º 4 do art. 215º do C.P.P., sendo a audição prévia do Arguido a que alude
aquele artigo de carácter obrigatório.
7. O Arguido não foi ouvido, tido, nem achado, na decisão que declarou a
especial ou excepcional complexidade do presente processo.
8. Ou seja, o Arguido foi apanhado de surpresa e, sem mais, viu os prazos
da sua Prisão preventiva alargarem-se para o dobro do normal – na fase de
inquérito –, sem lhe ter sido dada a possibilidade de se pronunciar ou
contribuir para a respectiva decisão judicial.
9. Ao aceitar a declaração de Especial ou Excepcional Complexidade dos
Autos sem a prévia audição do Arguido, o tribunal “a quo” fez uma interpretação
normativa do art. 215º n.º 4 do C.P.P. absolutamente inconstitucional, por
violação do art. 32 n.º 1 da C.R.P.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele,
deve esta alta instância:
I. Julgar Inconstitucional, por violação do art. 32.º n.º 4 e n.º 5.º
da C.R.P., o art. 215º n.º 4.º do C.P.P (na redacção que lhe foi dada pela Lei
48/2007 de 29 de Agosto), na interpretação normativa, segundo a qual, durante o
Inquérito, a declaração de “Excepcional Complexidade” a que alude o n.º 3 do
mesmo artigo 215.º do C.P.P. pode ser declarada oficiosamente e sem qualquer
requerimento do Ministério Público;
II. Julgar Inconstitucional, por violação do art. 32.º n.º 1.º
da C.R.P., o art. 215º n.º 4.º do C.P.P (na redacção que lhe foi dada pela Lei
48/2007 de 29 de Agosto), na interpretação normativa, segundo a qual, quando
declarada oficiosamente, a “Excepcional Complexidade” a que alude o n.º 3.º do
art. 215.º do C.P.P., não carece de ser precedida de audição do Arguido.
III. Conceder provimento ao recurso e, por consequência, revogar
o Acórdão recorrido, determinando-se que o mesmo seja reformado em conformidade
com os juízos de não inconstitucionalidade supra peticionados».
6. Contra-alegando, o Procurador-Geral Adjunto, no Tribunal
Constitucional, concluiu:
«1. A interpretação do disposto do nº 4 do artigo 215° do CPP, na
versão da Lei 48/2007, de 29 de Agosto, ínsita no despacho judicial que, em sede
de inquérito, declara, oficiosamente, a excepcional complexidade dos Autos sem
audição prévia dos arguidos e sem ter sido requerida pelo Ministério Público, e
tendo o mesmo despacho sido objecto de reclamação e de recurso para um tribunal
superior, não viola o direito de defesa garantido pelo artigo 32° da CRP.
2. Termos em que devem os recurso ser indeferidos».
7. Tendo o primitivo relator ficado vencido, quanto à segunda questão de
constitucionalidade suscitada no pedido, houve lugar à mudança de relator.
Uma vez que o projecto de acórdão apresentado por aquele relator obteve
vencimento, quanto à primeira questão de constitucionalidade, foi integralmente
mantida a parte do texto que se lhe refere.
II. Fundamentação
8. De entre as suas várias disposições, apenas se questionam
constitucionalmente duas dimensões normativas do artigo 215.º do Código de
Processo Penal, ambas relativas ao seu n.º 4: a primeira, traduzida no “sentido
de permitir que, durante o inquérito, a excepcional complexidade, a que alude o
n.º 3 do mesmo artigo, possa ser declarada oficiosamente sem requerimento do
Ministério Público” e a segunda, referente ao “sentido de permitir que, quando
declarada oficiosamente a excepcional complexidade, esta não tem que ser
precedida da audição do arguido”.
E, situando-nos no âmbito da definição do objecto do concreto
recurso de constitucionalidade, cabe deixar aqui registado que não cabe na
competência do Tribunal Constitucional pronunciar-se no sentido de qual seja o
melhor direito que é inferível das disposições legais, mas apenas ajuizar se o
direito concretamente determinado e aplicado na solução da causa é ou não
constitucionalmente válido.
Nesta óptica, não há que indagar se as melhores interpretações do
n.º 4 do artigo 215.º do CPP, quanto à competência oficiosa do juiz para
declarar a especial complexidade do processo, para os efeitos do seu n.º 3, e à
audição do arguido são as que foram sufragadas pelo acórdão recorrido.
E sendo assim, as alegações apresentadas pelos recorrentes, no
Tribunal Constitucional, perdem todo o sentido, na parte em que estes se
esforçam por demonstrar qual é a melhor solução, no plano do direito ordinário.
Para melhor compreensão da problemática que está em causa,
afigura-se, porém, de utilidade transcrever o artigo 215.º, na parte
circunstancialmente adequada.
Diz ele o seguinte:
Artigo 215.º
Prazos de duração máxima da prisão preventiva
1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem
decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida
decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª
instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em
julgado.
2 –[…].
3 - Os prazos referidos no n.º 1 são elevados, respectivamente, para
um ano, um ano e quatro meses, dois anos e seis meses e três anos e quatro
meses, quando o procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior
e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número de
arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime.
4 - A excepcional complexidade a que se refere o presente artigo
apenas pode ser declarada durante a 1.ª instância, por despacho fundamentado,
oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o arguido e o
assistente.
5 –[…].
6 –[…].
7 –[…].
8 –[…].
E porque os critérios normativos constitucionalmente sindicados
foram aplicados no âmbito da actividade jurisdicional a que se refere o artigo
213.º do Código de Processo Penal, reproduz-se, igualmente, este preceito.
Estipula ele:
Artigo 213.º
Reexame dos pressupostos da prisão preventiva e da obrigação de permanência na
habitação
1 - O juiz procede oficiosamente ao reexame dos pressupostos da prisão
preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, decidindo se elas são de
manter ou devem ser substituídas ou revogadas:
a) No prazo máximo de três meses, a contar da data da sua aplicação ou do último
reexame; e
b) Quando no processo forem proferidos despacho de acusação ou de pronúncia ou
decisão que conheça, a final, do objecto do processo e não determine a extinção
da medida aplicada.
2 - Na decisão a que se refere o número anterior, ou sempre que necessário, o
juiz verifica os fundamentos da elevação dos prazos da prisão preventiva ou da
obrigação de permanência na habitação, nos termos e para os efeitos do disposto
nos n.ºs 2, 3 e 5 do artigo 215.º e no n.º 3 do artigo 218.º
3 - Sempre que necessário, o juiz ouve o Ministério Público e o arguido.
4 - A fim de fundamentar as decisões sobre a manutenção, substituição ou
revogação da prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação, o
juiz, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, pode
solicitar a elaboração de perícia sobre a personalidade e de relatório social ou
de informação dos serviços de reinserção social, desde que o arguido consinta na
sua realização.
5 - A decisão que mantenha a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na
habitação é susceptível de recurso nos termos gerais, mas não determina a
inutilidade superveniente de recurso interposto de decisão prévia que haja
aplicado ou mantido a medida em causa.
Conforme resulta do relatado, a declaração de especial complexidade
do processo foi efectuada pelo juiz de instrução, a quando da realização do
reexame oficioso dos pressupostos da prisão preventiva, a que se refere a alínea
a) do n.º 1 do artigo 213.º do CPP, sobre cuja matéria os recorrentes e o
Ministério Público se pronunciaram, ao abrigo do disposto no n.º 3 do mesmo
artigo.
Nesse reexame, o juiz de instrução concluiu pela manutenção da
medida de coacção da prisão preventiva por, em síntese, “não se terem alterado
as situações de facto e de direito que presidiram à decisão tomada aquando do
1.º interrogatório judicial”.
9. Como se colhe das suas alegações, os recorrentes não refutam a
competência do juiz de instrução para efectuar, oficiosamente, o reexame dos
pressupostos da prisão preventiva, prevista no artigo 213.º do Código de
Processo Penal.
Ora, aceitando-se, sem contestação, como fazem os recorrentes, a
competência do juiz para proceder, oficiosamente, ao reexame desses
pressupostos, não se vê como, sem quebra da congruência da racionalidade
jurídica, se possa defender (mesmo no plano infraconstitucional) o afastamento
da competência do mesmo juiz para, na sequência, precisamente, do cumprimento
desse dever de reexame constatar a existência da situação de especial
complexidade do processo e do poder de a aclarar mesmo para o efeito de elevação
dos prazos de duração máxima da prisão preventiva previsto no n.º 3 do artigo
215.º do CPP.
Decorre do disposto no artigo 28.º, n.ºs 1 a 3, da Constituição da
República Portuguesa (CRP) que constitui reserva constitucional do juiz a
decisão judicial de aplicação da medida de coacção da prisão preventiva: só o
juiz pode ordenar e manter, ao arguido, a medida de coacção da prisão
preventiva.
Tendo, porém, a prisão preventiva uma natureza excepcional, que não
pode “ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra
medida mais favorável prevista na lei” (n.º 2 do artigo 28.º da CRP), ou seja,
sendo uma medida de coacção sujeita constitucionalmente aos princípios da
necessidade, subsidiariedade e proporcionalidade, constitui necessário postulado
dessa reserva de juiz que o mesmo possa (melhor dito, deva) proceder ao reexame
oficioso dos pressupostos de facto e de direito que a determinaram, de modo a
que a lesão do direito fundamental da liberdade se quede pelo mínimo possível
sempre que seja surpreendida uma alteração, e, por cautela, periodicamente, em
virtude de a evolução da investigação poder, adequadamente, pressupor que venha
a lume o conhecimento de novos elementos, susceptíveis de fundamentar uma
reponderação judicial.
É essa natureza excepcional e a sua sujeição aos princípios
consagrados no artigo 18.º da CRP para os direitos, liberdades e garantias que
justificam a solução por que optou o legislador ordinário, nos n.ºs 1 e 2 do
artigo 194.º do CPP, ao autorizar a sua aplicação, durante o inquérito, apenas a
requerimento do Ministério Público e ao sancionar a aplicação de medida de
coacção ou de garantia patrimonial mais grave que a requerida pelo Ministério
Público com a nulidade.
É que, competindo ao Ministério Público, em termos constitucionais,
a direcção do inquérito (cf. Acórdão n.º 395/04, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), será ele quem, nessa fase processual, conhece,
inteiramente, os factos investigados que são susceptíveis de revelarem a prática
de um crime, o seu possível autor e as provas que tenham potencialidade para
induzir à convincência indiciária da sua existência e, decorrentemente, será,
também, ele quem, prima facie, estará, então, em melhor posição para poder
aferir da necessidade de aplicação das medidas cautelares ou de coacção,
necessárias para acautelarem a realização da justiça penal.
Todavia, decidindo-se o Ministério Público pelo pedido, caberá,
porém, já ao juiz a avaliação, autónoma e independente, dos seus pressupostos de
facto e de direito, passando a impender, constitucionalmente, sobre ele o dever
de conter as restrições ao direito fundamental em causa (no caso da prisão
preventiva, da liberdade) ao âmbito temporal fixado na lei e, dentro deste, ao
mínimo possível.
As razões que justificam que, em processo de inquérito, a medida de
prisão preventiva apenas possa ser aplicada em deferimento de requerimento do
Ministério Público, esgotam-se totalmente no momento em que este a requeira ao
juiz e este a aplique.
A natureza excepcional da prisão preventiva, afirmada no n.º 2 do
artigo 28.º da Constituição, tem igualmente como postulado que a mesma seja
sujeita a prazos máximos que não frustrem o seu fundamento constitucional.
Isso mesmo consta do n.º 4 do artigo 28.º da Constituição, ao
prescrever-se que “a prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na
lei”.
Daqui decorre que o legislador ordinário, no cumprimento dessa
incumbência, está sujeito ao princípio de que o tempo de prisão preventiva se
configura como um tempo excepcional de restrição do direito fundamental da
liberdade, pelo que o deve limitar ao necessário (artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição), para salvaguardar os outros direitos ou interesses
constitucionalmente protegidos, no caso, a prevenção do interesse da realização
efectiva e eficaz da justiça penal.
Dito de outro modo, o legislador ordinário está sujeito a um
princípio de razoabilidade, ínsito no princípio da proporcionalidade e, como bem
se faz notar no Acórdão n.º 404/2005, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, próximo do requisito do “prazo razoável” a que
alude o n.º 3 do artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
A lei densificou o referido preceito constitucional no artigo 215.º
do CPP, adoptando um figurino em que o prazo de prisão preventiva se conta
sempre desde o seu início, mas não pode exceder certos limites acumulados,
reportados a quatro marcos processuais (dedução da acusação, prolação da decisão
instrutória quando tenha havido instrução, condenação em 1.ª instância e
trânsito em julgado da condenação) (No CPP de 1929, o sistema era o de fixação
de prazos máximos de prisão preventiva em correspondência directa com cada fase
processual – cf. artigos 273.º, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 402/82, de
23 de Setembro, e 308.º, na versão dada pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de
Setembro).
Por outro lado, no que importa aos prazos máximos totais e aos
reportados aos referidos marcos processuais, o preceito previu quatro situações
distintas: a primeira como consubstanciando situação-regra (n.º 1 do artigo
215.º); a segunda, traduzida numa elevação dos prazos-regra para os limites
apontados, nos “casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente
organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo
superior a 8 anos” ou por um dos crimes constantes do catálogo aí enunciado (n.º
2 do artigo 215.º); a terceira, consubstanciada, igualmente, numa elevação dos
prazos-regra, para os limites, também, aí, precisados, mas aqui “quando o
procedimento for por um dos crimes referidos no número anterior (n.º 2 do artigo
215.º) e se revelar de excepcional complexidade, devido, nomeadamente, ao número
de arguidos ou de ofendidos ou ao carácter altamente organizado do crime” e,
finalmente, a quarta, traduzida num acrescentamento em seis meses dos prazos
correspondentes às segunda e terceira situações, no caso de haver recurso para o
Tribunal Constitucional.
No que tange à terceira situação, cabe ainda notar que a “especial
complexidade [a que se refere] apenas pode ser declarada durante a 1.ª
instância, por despacho fundamentado, oficiosamente ou a requerimento do
Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente”.
Aceite, constitucionalmente, o alargamento dos prazos de prisão
preventiva, com base na complexidade do processo e das características dos
crimes, por a fixação dos prazos não poder alhear-se das dificuldades da
investigação criminal e da operacionalidade prática dos princípios do
inquisitório e do contraditório, que, adequadamente, tenderão a ser maiores
quando estão em causa certos tipos de crimes e a maior ou menor gravidade desses
tipos, e da necessidade de acautelar a realização da justiça penal relativamente
a eles (J. J. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, Volume I, p. 490, afirmam ser ele duvidoso, “mas, de
qualquer modo impõe-se aqui a observância estrita do princípio da proibição do
excesso “), não pode deixar de considerar-se corresponder a uma incumbência
constitucional do juiz, decorrente da sua reserva de jurisdição na aplicação e
na manutenção da prisão preventiva, o poder de oficiosamente declarar a especial
complexidade do processo.
Ao fazê-lo, o juiz mais não faz do que constatar se existe,
materialmente, a situação cautelar que corresponde àquela cujo recorte é feito
pelo legislador como justificando a concreta elevação dos prazos máximos da
prisão preventiva para poder acautelar, de modo proporcionado e razoável,
concomitantemente, a satisfação dos interesses da realização efectiva da justiça
penal e da menor afectação possível do direito fundamental da liberdade do
arguido.
Exigir, como defendem os recorrentes, que a especial complexidade do
processo, com o efeito da elevação do prazo previsto na lei, ficasse sujeita a
requerimento obrigatório do Ministério Público, corresponderia a cercear a
função jurisdicional do juiz, na apreciação dos pressupostos de facto e de
direito da prisão preventiva, evidenciados pelos autos, quando para determinar a
prisão preventiva, mesmo em apreciação de pedido da mesma entidade na fase do
inquérito, ou a sua manutenção não lhe pode ser sonegado o conhecimento de
quaisquer elementos necessários à apreciação da situação.
Tal forma de ver encontra-se enfeudada ao entendimento errado de que
a prisão preventiva constitui uma medida cautelar que visa acautelar apenas os
interesses da investigação penal ou o princípio do inquisitório.
Porém, como já se viu, independentemente da especial tradução que o
legislador ordinário dê aos princípios constitucionais do inquisitório, do
acusatório e do contraditório, consagrados nos n.ºs 4 e 5 do artigo 32.º da
Constituição, sendo a prisão preventiva uma medida que se prende directamente
com o direito fundamental da liberdade, ela pertence necessariamente à reserva
constitucional do juiz.
Temos, assim, de concluir que o artigo 215.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal, interpretado no “sentido de permitir que, durante o inquérito, a
excepcional complexidade, a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, possa ser
declarada oficiosamente sem requerimento do Ministério Público” não ofende o
artigo 32.º da Constituição, e nomeadamente, os seus números 4 e 5.
10. Cabe, agora, conhecer da questão de constitucionalidade do
artigo 215.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, interpretado no “sentido de
permitir que, quando declarada oficiosamente a excepcional complexidade [do
processo], esta não tem que ser precedida da audição do arguido”.
Os recorrentes argumentam que a dimensão normativa em causa viola o
direito de defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Este preceito proclama que “o processo criminal assegura todas as garantias de
defesa, incluindo o recurso”. Desta forma se consagra, condensadoramente, o
“princípio de protecção global e completa dos direitos de defesa do arguido em
processo criminal” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 516). Entre esses direitos está
indubitavelmente incluído o direito do arguido “a ser ouvido', enquanto direito
a dispor de oportunidade processual efectiva de discutir e tomar posição sobre
quaisquer decisões que o afectem.
Na verdade, a enunciação maximizante do direito de defesa tem que ser
compreendida como uma manifestação qualificada, em processo criminal, do direito
a tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP), englobante do direito a um
processo equitativo, pelo que dele decorre necessariamente um direito de
audição, materialmente imposto pela conformação processual ao princípio do
contraditório (n.º 5 do artigo 32.º da Constituição).
Se o direito de audição tem uma extensão geral a todos os actos susceptíveis de
afectar a posição do arguido (ob. cit., 523), a sua efectivação é
constitucionalmente exigível de forma particularmente intensa quando estão em
causa decisões judiciais que, de forma directa (imediata ou não), têm como
resultado a privação de liberdade daquele sujeito.
Está nestas condições a prisão preventiva. Por isso mesmo, a Constituição rodeou
esta medida de especiais resguardos, em preceito a ela especificamente dedicado
(artigo 28.º da CRP).
De forma que, na conformação do conteúdo do princípio do contraditório atinente
a decisões nesta matéria, o legislador ordinário, em tudo o que não esteja já
fixado pela Lei Fundamental, encontra-se sempre sujeito, em termos estritos, ao
postulado constitucional de efectivação de todas as garantias de defesa do
arguido.
O alongamento dos prazos máximos de prisão preventiva, com base na
declaração de especial complexidade do procedimento, viu o seu regime alterado
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
Ao mesmo tempo que procedeu a uma fixação de prazos máximos de
prisão preventiva mais curtos do que acontecia até então, com base numa leitura
do princípio da necessidade e da proporcionalidade diferentes da anteriormente
feita, o legislador, pretendendo “introduzir maior clareza às situações em que,
por força da complexidade processual, tal importe um alongamento da prisão
preventiva dos arguidos”, passou a determinar que a declaração de especial
complexidade apenas poderia ser efectuada na 1.ª instância, com base em despacho
fundamentado, “oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, ouvidos o
arguido e o assistente”.
O acórdão recorrido entendeu não ter o juiz o dever de ouvir o arguido acerca da
eventual declaração da especial complexidade do procedimento, quando a sua
iniciativa seja oficiosa.
Independentemente da questão de saber se esta é a interpretação que melhor
corresponde ao critério enunciado na lei ordinária, a este Tribunal só cabe,
tomando-a como um dado, decidir se ela está ou não em conformidade com as
exigências constitucionais decorrentes das garantias de defesa.
Em sentido afirmativo, poderá eventualmente chamar-se a atenção para que estamos
perante uma qualificação jurídica, incidente sobre factos em relação aos quais o
arguido já teve oportunidade de produzir prova e de contrariar os elementos
constantes do processo e de se pronunciar acerca deles. Mais não demandaria o
princípio do contraditório.
Mas este entendimento reducionista do princípio, cingindo o seu alcance ao
domínio dos factos e não também ao de valoração jurídica, é constitucionalmente
claudicante. O sentido tutelador do princípio do contraditório e as garantias de
defesa que dele emanam só encontram realização correspondente ao que a
Constituição impõe quando ao arguido é dada oportunidade de influenciar, em seu
benefício, a tomada de decisões que lhe respeitam, também através da
possibilidade de esgrimir, em tempo oportuno, argumentos juridicamente
sustentados, dirigidos a convencer a instância decisória do fundamento de
medidas favoráveis ou da falha de razão de medidas desfavoráveis.
É esta concepção do princípio do contraditório que claramente se assumiu no
Acórdão n.º 96/99, ao caracterizá-lo como “o direito que o arguido tem em se
fazer ouvir e contraditar todos os elementos (aqui se incluindo os de prova) ou
argumentos (incluindo-se os de ordem jurídica) (…)”, num caso em que, só a
integral manutenção do quadro factual e jurídico anterior foi tida como
justificando a não audição do arguido, a quando do reexame da medida de coacção.
Daí que, estando em causa, a subsunção dos factos num novo quadro legal – o da
excepcional complexidade do procedimento – susceptível de conduzir directamente
ao alargamento da duração da prisão preventiva, ao arguido deveria ter sido dada
oportunidade de refutar a verificação dos pressupostos legais dessa qualificação
e a adequação e necessidade dessa medida. O promanar esta de iniciativa
oficiosa do juiz e não de promoção pelo Ministério Público em nada altera esta
valoração, pois o princípio do contraditório não visa apenas assegurar a
igualdade de armas (em relação àquela entidade), mas, mais amplamente, garantir
(neste caso, ao arguido) “uma influência efectiva no desenvolvimento do
processo” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, ob. loc. cit.)
Como eloquentemente se exprimiu o Acórdão n.º 499/97, num caso em que o Supremo
Tribunal de Justiça havia, em recurso interposto pela defesa, revogado perdão de
penas decretado pelas instâncias, sem prévia audição, sobre essa questão, dos
arguidos recorrentes:
«Todavia, a protecção do exercício do contraditório como condição de uma justiça
comunicacional, profundamente humana, não abrange apenas a discussão conducente
à prova dos factos e da culpa ou à infirmação da presunção de inocência, mas
atinge ainda todos os aspectos de qualificação jurídica com repercussão na
situação do arguido.
(…) Deste modo, o contraditório surge como regra orientadora da produção pelo
tribunal de um juízo que interfira com o arguido, para além de se justificar
pela defesa de direitos. Em processo penal, o contraditório visa, antes de mais,
assegurar decisões fundamentadas na discussão de argumentos, subordinando todas
as decisões (ainda que recorríveis) em que os arguidos sejam pessoalmente
afectados [cf. artigo 65.º, nº l, alínea d), do Código de Processo Penal], como
emanação de uma racionalidade dialéctica, comunicacional e democrática.»
A mesma orientação já tinha norteado o precedente Acórdão n.º 279/95, em
motivação de uma decisão de inconstitucionalidade de um critério normativo que
não preveja, perante a possibilidade de qualificação jurídico-penal dos factos
conducente à condenação em pena mais grave, que o arguido seja prevenido da nova
qualificação, sem lhe dar, quanto a ela, oportunidade de defesa. Como aí se
salientou, no domínio do processo criminal, a liberdade de qualificação jurídica
de que goza o tribunal, como expressão da sua sujeição à lei, sempre carece de
compatibilização com a plenitude de garantias de defesa exigida pelo artigo 32º,
nº 1, do texto constitucional.
Mais recentemente, e quanto à obrigatoriedade de audição prévia do arguido, face
à possibilidade de lhe ser revogado o perdão concedido e de ter que vir a
cumprir pena efectiva de prisão, também o Acórdão n.º 298/2005 perfilhou este
entendimento do princípio do contraditório. Depois de transcrever alguns trechos
do já citado Acórdão n.º 499/97, ficou consignado naquele aresto o seguinte:
«Como resulta desta transcrição, o respeito do princípio do contraditório, como
emanação das garantias de defesa em processo criminal, impunha que, perante a
promoção de revogação do perdão de pena, fosse dada ao arguido a possibilidade
de se pronunciar, possibilidade que não lhe podia ser negada com base numa
pretensa automaticidade ou operatividade ope legis daquela revogação. Acresce
que esta revogação dependia da verificação da ocorrência de determinadas
circunstâncias e ao arguido assistia o direito de, logo perante o juiz de 1.ª
instância, aduzir as suas razões no sentido do não preenchimento dessas
condições, quer propugnando uma interpretação normativa diversa da que veio a
ser acolhida, quer arguindo a inconstitucionalidade desta última.»
Ainda que versando sobre situações processuais distintas, as questões de
constitucionalidade decididas por estes acórdãos têm um sentido de
problematicidade análogo ao suscitado pela questão em apreciação. Trata-se, em
todos os casos, de apreciar a obrigatoriedade de audição do arguido quanto a uma
reapreciação jurídica dos factos apurados, conducente à restrição (ou
agravamento da restrição) do seu direito à liberdade.
O respeito pelas garantias de defesa constitucionalmente consagradas impõe que
se dê ao arguido a oportunidade de contraditar o fundamento de uma decisão
inovatória em relação a outra anteriormente tomada. De outro modo, não sendo
colocado perante a eventualidade dessa decisão e convidado a sobre ela se
pronunciar, o arguido pode ficar sujeito a uma medida que o apanha de surpresa,
sem oportunidade de expor os seus pontos de vista e apresentar as suas razões em
sentido contrário ao projectado.
Por isso mesmo, não releva o facto de que a especial complexidade do processo
foi declarada pelo juiz, a quando do reexame periódico dos pressupostos da
prisão preventiva a que se refere o artigo 213.º do CPP, e que os recorrentes
tiveram ocasião – e usaram-na – de se pronunciar sobre a manutenção ou revogação
da medida de coacção.
Como se escreveu no Acórdão n.º 279/95, reportando uma orientação já perfilhada
no Acórdão n.º 173/92, “(…) um exercício eficaz do direito de defesa não pode
deixar de ter por referência um enquadramento jurídico-penal preciso”. Ora, a
decisão tomada não se traduziu, nem na manutenção, nem na revogação, da medida
de coacção; ela deu um novo conteúdo à medida de coacção a que o arguido estava
sujeito, alterando substancialmente (em sentido desfavorável) o seu estatuto
processual. De acordo com a estrutura dialéctica do processo, moldada pela sua
matriz acusatória, era sobre a concreta possibilidade dessa alteração, e em
função dela, que devia ter sido “dada voz” ao arguido. Só assim o direito de
audição, como componente fundamental do direito de defesa, se efectivaria
verdadeiramente e cumpriria o seu papel, de modo a satisfazer as razões que
materialmente o justificam.
Também não dá satisfação bastante ao direito de defesa do arguido a
possibilidade de recurso, em termos de este poder ser visto como um sucedâneo ou
um perfeito equivalente funcional do direito de audição prévia, no mesmo plano e
com idêntica eficácia garantística. Ainda que comungando da natureza comum de
meios de defesa, cada um dos instrumentos tem uma missão específica a cumprir,
insubstituível pela que ao outro cabe. O recurso é um remédio para algo que pode
“estar mal”, uma via de correcção de eventuais vícios da decisão recorrida –
aqui, aliás, admitida em condições apertadas, dado o curto prazo de três dias
para a sua interposição (artigo 123.º, n.º 1, do CPP) . Mas o que sobremaneira
interessa, como modo preferencial de preservação dos direitos dos sujeitos
envolvidos, é que a decisão não contenha, logo em primeira instância, erros, in
judicando, mas também in procedendo (cfr., neste sentido, CUNHA RODRIGUES,
“Recursos”, Jornadas de direito processual penal. O novo Código de Processo
Penal, Coimbra, 1988, 381 s., aqui 386-387).
E também não é por a decisão ser tomada numa fase de inquérito, em etapa
preliminar do processo penal, que se justifica, neste ponto, uma qualquer
“maleabilização” ou relativização do princípio do contraditório, que atenue, ou
transfira para outros momentos processuais, a plenitude das exigências que dele
estritamente decorrem.
Para remover, de imediato, esta ideia argumentativa, basta valorar, na justa
medida, os efeitos da decisão em causa sobre a posição processual do arguido. A
“especial complexidade do procedimento” é qualificação que, nos termos do n.º 3
do artigo 213.º do CPP, acarreta a elevação dos prazos de prisão preventiva. Por
conseguinte, a decisão afecta-o pessoalmente, incidindo directamente no núcleo
do seu direito fundamental à liberdade, pois é susceptível de provocar a
extensão temporal de uma medida de coacção que o priva desse bem primário, sendo
certo que, por imperativo constitucional (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), ele é
presumido inocente. É quanto bonda para considerar que aqui se fazem sentir, de
forma particularmente intensa, as razões garantísticas que dão suporte
axiológico ao direito de audição, arredando qualquer justificação, no plano da
legitimidade constitucional, de uma interpretação que a dispense.
Há a concluir que, para se adequar integralmente aos dados constitucionais
pertinentes, a qualificação do procedimento como de “excepcional complexidade”
deveria ter sido precedida da audição deste sujeito processual, de modo a
assegurar a plenitude do seu direito de defesa.
A interpretação do artigo 215.º, n.º 4, do CPP no sentido de que essa audição
não é obrigatória está, pois, ferida de inconstitucionalidade.
III – Decisão
Em face do exposto, acordam em:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 215.º, n.º 4, do Código de
Processo Penal, na versão dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando
interpretada no sentido de permitir que, durante o inquérito, a excepcional
complexidade, a que alude o n.º 3 do mesmo artigo, possa ser declarada
oficiosamente, sem requerimento do Ministério Público;
b) Julgar inconstitucional a mesma norma, quando interpretada no sentido de
permitir que, em caso de declaração oficiosa da excepcional complexidade, esta
não tem que ser precedida da audição do arguido, por violação do disposto no
artigo 32.º, n.º 1, da Constituição;
c) Conceder provimento parcial ao recurso, determinando a reformulação do
acórdão recorrido, em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade
constante da alínea b).
Sem custas.
Lisboa, 19 de Novembro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues (vencido
quanto á apurada pronúncia, de inconstitucionalidade, nos termos da declaração
anexa)
João Cura Mariano
(vencido, pelas razões constantes de declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARÇÃO DE VOTO
Os recorrentes argumentam que a dimensão normativa, em causa, viola o direito de
defesa consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Antes de mais, importa relembrar que não cabe ao Tribunal
Constitucional saber se essa interpretação corresponde ao melhor direito,
imanente no texto legal, mas, apenas, se é não direito, por constitucionalmente
insolvente.
Por outro lado, não poderá esquecer-se que a especial complexidade
do procedimento foi declarada pelo juiz, a quando do reexame periódico dos
pressupostos da prisão preventiva a que se refere o artigo 213.º do CPP, e que
os recorrentes tiveram ocasião – e usaram-na – de se pronunciar sobre a
manutenção ou revogação da medida de coacção.
Finalmente, é de notar que a sujeição do arguido à medida de coacção
da prisão preventiva não corresponde a qualquer definição judicial de que a sua
situação de privação da liberdade, apenas, ocorre durante o prazo mais curto, de
entre os prazos máximos previstos nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 215.º do CPP.
O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição contempla, como princípio
material reclamado pelos princípios da dignidade humana e do Estado de direito
democrático, a garantia de que “o processo criminal assegura todas as garantias
de defesa, incluindo o recurso”.
Constitui entendimento uniforme da doutrina e da jurisprudência
constitucional que esta fórmula condensa não só todas as garantias de defesa que
estão contempladas nos demais números do mesmo artigo, como “também serve de
cláusula geral englobadora de todas as garantias de defesa que, embora não
explicitadas nos números seguintes, hajam de decorrer do princípio da protecção
global e completa dos direitos de defesa do arguido em processo criminal” (cf.
J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa
Anotada, Volume I, p. 516).
Como notam os mesmos glosadores (op.cit., p. 516), “em todas «as
garantias de defesa» engloba-se indubitavelmente todos os direitos e
instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e
contrariar a acusação”, donde o preceito poder constituir “fonte autónoma de
garantias de defesa”, pelo inafastável comprometimento com o respeito pelos
direitos fundamentais do arguido, postulado pelos referidos princípios da
dignidade humana e do Estado de direito.
Quando referida ao direito de audição, a garantia de defesa do
arguido tem um sentido correspondente ao do princípio do contraditório, que se
encontra expressamente reconhecido no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição.
Numa formulação sintética, pode dizer-se que o princípio geral do
contraditório implica que se dê a cada um dos sujeitos processuais a
possibilidade de apresentarem as suas razões, oferecerem as suas provas,
controlarem as provas oferecidas pelos outros sujeitos e pronunciarem-se sobre
umas e outras.
No processo penal, e no que respeita ao arguido, o princípio do
contraditório demanda que o mesmo seja ouvido sobre todas as situações factuais
ou jurídicas em que o seu estatuto de arguido seja afectado e se lhe dê a
oportunidade de se defender.
Mas o princípio do contraditório não impõe a adopção de qualquer
arquétipo concreto de um instrumento jurídico ou de um direito, como sendo,
unicamente, esse que desempenhe, constitucionalmente, a função de garantia de
defesa.
É que existem momentos materiais processuais aos quais a Lei
Fundamental conferiu uma expressão máxima e intangível do contraditório e outros
em que não pode deixar de reconhecer-se “não existir um espartilho
constitucional formal que não tolere certa maleabilização do contraditório” (cf.
Acórdão n.º 278/99, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
São exemplo do primeiro caso as situações do primeiro interrogatório
judicial de arguido detido (artigo 28.º, n.º 1, da Constituição), em que o
contraditório pode, até, limitar-se a uma tomada de posição oral do arguido
perante o juiz, bem como o conhecimento ao arguido da acusação e da concessão da
possibilidade de dela se defender (artigo 32.º, n.º 5, da Constituição), cujas
directas prescrições têm assento constitucional, estando, assim, subtraídas às
contingências de alguma indeterminabilidade interpretativa em face do princípio
constitucional do contraditório.
Mas, como se refere no referido Acórdão n.º 278/99, «a
intangibilidade deste núcleo essencial compadece-se, no entanto, com a liberdade
de conformação do legislador ordinário que, designadamente na estruturação das
fases processuais anteriores ao julgamento, detém margem de liberdade suficiente
para plasticizar o contraditório, sem prejuízo de a ele subordinar estritamente
a audiência: aqui tem o princípio a sua máxima expressão (como decorre do nº 5
do artigo 32º citado), nessa fase podendo (e devendo) o arguido expor o seu
ponto de vista quanto às imputações que lhe são feitas pela acusação,
contraditar as provas contra si apresentadas, apresentar novas provas e pedir a
realização de outras diligências e debater a questão de direito em causa (cf. o
acórdão deste Tribunal, nº 352/98 e, ainda, inter alia, os nºs. 133/92 e 172/92,
publicados no Diário da República II Série, de 14 de Julho de 1998, 24 de Julho
e 18 de Setembro de 1992, respectivamente)», ou, dito de outra maneira,
«ressalvado esse núcleo intocável – que impede a prolação da decisão sem ter
sido dada ao arguido a oportunidade de 'discutir, contestar e valorar' (parecer
nº 18/81 da Comissão Constitucional, in Pareceres da Comissão Constitucional,
16º vol., pág. 154) – não existe um espartilho constitucional formal que não
tolere certa maleabilização do exercício do contraditório (como, de resto, e ao
menos implicitamente, se retira de certos arestos do Tribunal como, v.g., os
nºs. 1185/96 e 358/98, publicados no citado Diário II Série, de 12 de Fevereiro
de 1997 e 17 de Julho de 1998, respectivamente)».
Estamos, aqui, perante uma outra dimensão do princípio do
contraditório, cujo conteúdo não é já fixado pela Lei fundamental, mas pelo
legislador ordinário, embora, sempre, sujeito ao postulado constitucional de
poder tomar conhecimento dos elementos que possam afectar o arguido e de ter
possibilidade de se defender.
Foi, de resto, por este prisma que o legislador do actual CPP viu a
questão relativa à elevação dos prazos máximos de prisão preventiva, com base na
declaração de especial complexidade do procedimento, até à alteração do artigo
215.º do CPP, levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
Na verdade, este preceito não previa, até então, a audição do
arguido e, mesmo quando efectuada por ocasião do reexame oficioso periódico dos
pressupostos da prisão preventiva, determinado no artigo 213.º, essa audição,
apenas, estava prevista se o juiz a tivesse por necessária.
Ao mesmo tempo que procedeu a uma fixação de prazos máximos de
prisão preventiva mais curtos do que acontecia até então, com base numa leitura
do princípio da necessidade e da proporcionalidade diferentes da feita,
anteriormente, o legislador da Lei n.º 48/2007, pretendendo “introduzir maior
clareza às situações em que, por força da complexidade processual, tal importe
um alongamento da prisão preventiva dos arguidos”, passou a determinar que a
declaração de especial complexidade apenas poderia ser efectuada na 1.ª
instância, com base em despacho fundamentado, “oficiosamente ou a requerimento
do Ministério Público, ouvidos o arguido e o assistente”.
Mesmo tendo o acórdão recorrido entendido não ter o juiz o dever de
ouvir o arguido, acerca da matéria da eventual declaração da especial
complexidade do procedimento quando a sua iniciativa seja oficiosa, não pode
concluir-se, sem mais, saírem violados o princípio do contraditório e as
garantias de defesa do arguido, contra a extensão temporal da prisão preventiva.
Antes de mais, importa notar que, tendo a decisão de constar de
despacho fundamentado, ela dá a conhecer aos arguidos os pressupostos de facto e
de direito, bem como a ponderação concretamente levada a cabo, com base na qual
se concluiu pela declaração, bem podendo todos esses elementos ser refutados em
recurso, que constitui, também, ele próprio, uma das garantias de defesa, com
directo assento constitucional (cf. Acórdão n.º 686/04, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt).
Depois, sendo dada aos arguidos a possibilidade (concretizada) de se
pronunciarem sobre a manutenção ou não da sua situação de prisão preventiva, por
ocasião do reexame oficioso dos pressupostos da prisão preventiva, a que se
refere o artigo 123.º do CPP – e quando esse momento, como foi o caso, coincida
com o da declaração da especial complexidade do procedimento – não pode deixar
de relevar-se esse instrumento como realizando, no essencial, o direito de
audição, pois que lhes é possível, então, proceder ao exame de todos os
pressupostos com base nos quais o juiz se possa vir a decidir pela declaração de
especial complexidade.
Na verdade, não pode deixar de considerar-se que a declaração de
especial complexidade do procedimento não tem a natureza de aplicação de uma
nova medida de coacção ou de uma medida de agravamento da situação de prisão
preventiva em que o arguido se encontra, mas se traduz, antes, “num especial
reexame dos pressupostos de facto e de direito da prisão preventiva”, em função
dos prazos máximos previstos na lei para certo tipo de situações, sendo certo
que, como já se disse, o decretamento judicial da prisão preventiva não se
encontra enfeudado ao cumprimento específico, apenas, de um de qualquer dos
grupos de prazos máximos de prisão preventiva, previstos no artigo 215.º do CPP.
Por fim, quer a admitida possibilidade de arguição de nulidade com
base no alegado incumprimento do direito de audição, quer o direito de recurso
da decisão judicial, onde se podem contraditar os fundamentos da decisão tomada,
constituem, ainda, instrumentos de contraditório e momentos de realização de
garantias de defesa, constitucionalmente relevantes.
Não estando o direito de audição, aqui em causa, abrangido pelo
núcleo essencial das garantias de defesa, constitucionalmente definido, bem pode
ele ser configurado pelo legislador ordinário nos termos acabados de apontar, já
que o arguido continua a ter, sempre, a possibilidade de contraditar os factos
considerados relevantes para a decisão e a debater a questão de direito.
Benjamim Rodrigues
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da opinião que fez vencimento por entender que a Constituição não impõe
que o arguido seja obrigatoriamente ouvido antes do juiz, oficiosamente,
decretar a especial complexidade de um determinado processo penal.
O artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P., quando dispõe que o processo criminal assegura
todas as garantias de defesa, utiliza uma cláusula geral que não só abrange
todas as exigências garantísticas da posição processual do arguido em processo
penal, contidas em alguns dos números deste artigo, como também engloba todas as
garantias que, apesar de não se encontrarem aí explicitadas, são
imprescindíveis para assegurar uma efectiva defesa da posição do arguido.
Entre estas garantias inominadas costuma ser apontado o chamado direito de
audição (ou de audiência) do arguido antes de ser proferida decisão que
pessoalmente o possa afectar de forma relevante.
Este direito, enquanto instrumento específico do direito de defesa do arguido,
visa assegurar que não seja tomada nenhuma decisão que o afecte directa e
pessoalmente de forma relevante (v.g. a aplicação de prisão preventiva), sem que
este tenha a possibilidade de trazer ao conhecimento do tribunal todas as
circunstâncias fácticas que lhe sejam favoráveis e que devam ser ponderadas
nessa decisão.
Não se justifica assegurar este direito do arguido nos casos em que não seja
possível ouvi-lo em tempo útil, ou em que o tipo de decisão em causa torne
desnecessária a sua audição, uma vez que todos os elementos que devem ser
ponderados estão à disposição do juiz, nada podendo o arguido acrescentar de
novo.
Já quanto ao direito de audição prévia geral que assiste a todos os
intervenientes processuais principais, incluindo o arguido, nos diferentes tipos
de processos, incluindo o processo penal, e que lhes permite poder influenciar a
decisão do juiz, decorre do modelo do processo equitativo imposto pelo artigo
20.º, n.º 4, da C.R.P. Neste domínio deve entender-se que o legislador ordinário
goza de ampla liberdade de conformação, podendo restringir esse direito apenas
às decisões mais importantes e decisivas, dispensando-o, relativamente às
decisões interlocutórias e de conteúdo meramente processual, de forma a
assegurar o cumprimento de outros princípios do processo equitativo, como o da
celeridade e o da economia processual.
No presente caso, estamos perante uma decisão de qualificação de um processo
penal comum como de especial complexidade.
Esta declaração tem como efeito a alteração de alguns pontos do regime do
processo penal comum, contemplando a especial complexidade da causa,
traduzindo-se, sobretudo, num alargamento de alguns prazos processuais e de
duração de algumas medidas de coacção.
Pode dizer-se que, por decisão do juiz, o processo passa a ter uma forma
especial, com regras específicas, que o distinguem do processo penal comum,
sobretudo no que toca à duração de alguns prazos.
A declaração de especial complexidade tem as seguintes consequências no processo
onde foi proferida:
- o alargamento dos prazos máximos de prisão preventiva, proibição e imposição
de condutas e obrigação de permanência na habitação (artigos 215.º, 218.º, 200.º
e 201.º, do C.P.P.);
- a possibilidade de prorrogação dos prazos previstos nos artigos 78.º
(contestação ao pedido civil), 287.º (requerimento para abertura de instrução) e
315.º (contestação da acusação), todos do C.P.P. (artigo 107.º, n.º 6, do
C.P.P.).
- a possibilidade de alargamento do limite do número de testemunhas (artigos
283.º, n.º 7 e 315.º, n.º 4, do C.P.P.).
- a possibilidade de o juiz presidente mandar dar vista aos juízes adjuntos por
prazo não superior a oito dias (artigo 314.º, n.º 3, do C.P.P.).
- o alargamento do prazo para alegações e réplica na audiência de julgamento
(artigo 360.º, n.º 3, do C.P.P.).
Destas consequências, apenas se pode considerar que é susceptível de afectar de
forma relevante a posição do arguido, o alargamento dos prazos máximos de
duração de medidas de coacção gravemente restritivas da liberdade, como é a
prisão preventiva.
Na verdade, na hipótese de ter sido decretada a prisão preventiva, como sucedeu
no presente caso, sendo declarada a especial complexidade do processo, o limite
máximo do período em que o arguido pode estar preso preventivamente é superior
àquele em que poderia estar, caso não tivesse sido emitida essa declaração.
É uma afectação meramente mediata e hipotética, uma vez que não resulta imediata
e necessariamente da decisão do juiz o prolongamento da prisão preventiva do
arguido, mas apenas a possibilidade desta se vir a prolongar por mais tempo do
que era possível no regime comum.
Só este cariz mediato e hipotético da afectação que pode resultar para o arguido
da decisão de declaração de especial complexidade de um determinado processo
penal, é suficiente para colocar em dúvida sobre se neste caso existe uma
obrigatoriedade constitucional do arguido ser ouvido antes do juiz,
oficiosamente, proferir tal decisão.
Mas, neste tipo de decisão, acresce outra característica, que desfaz esta
dúvida.
É que a declaração de especial complexidade é uma decisão de conteúdo meramente
adjectivo, fundada apenas em factores objectivos processuais que coloquem uma
dificuldade acrescida à tramitação comum prevista na lei, podendo essa
dificuldade resultar do número elevado de arguidos ou de ofendidos, ou do
carácter altamente organizado do crime em causa.
Não há, pois, neste caso, a possibilidade do arguido alegar circunstâncias que
não sejam do conhecimento do juiz e que este deva ponderar na decisão a emitir.
Tudo está no processo.
A audição do arguido revela-se, pois, desnecessária, para assegurar o seu
direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P.), uma vez que este não pode
acrescentar nenhum elemento ou circunstância de facto que deva ser ponderada na
decisão a proferir.
Quanto ao direito constitucional, decorrente do modelo do processo equitativo
(artigo 20.º, n.º 4, da C.R.P.), do arguido poder influenciar a decisão do juiz,
argumentando quanto ao raciocínio jurídico a efectuar, e que assiste também aos
demais intervenientes processuais principais em processo penal (Ministério
Público e assistente), é evidente que esta decisão não é das mais importantes e
decisivas no figurino do processo penal, uma vez que se limita a determinar a
alteração de alguns pontos do regime do processo penal comum, atendendo à
especial complexidade da causa, traduzindo-se, sobretudo, no alargamento de
alguns prazos, incluindo os prazos gerais e abstractos da prisão preventiva.
Por estas razões entendemos que a interpretação normativa que permite ao juiz
declarar, oficiosamente, a especial complexidade de um determinado processo
penal, sem audição prévia do arguido, não viola nenhum parâmetro
constitucional, nomeadamente o direito de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º
1, da C.R.P.) e o direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da
C.R.P.).
João Cura Mariano
[1] - Como referem os Dr.s Simas Santos e Leal Henriques, em comentário a este
preceito, In Código de Processo Penal Anotado, 1, Vol., 2004, pág.s 1023 e 1024,
“importará sublinhar a acentuação da oficiosidade e da obrigatoriedade do
reexame pelo juiz dos pressupostos da prisão preventiva, obedecendo a uma
periodicidade trimestral e sem que se imponha qualquer requerimento prévio por
parte do arguido, do seu defensor ou do M. P.”; assim, “tal reexame poderá
surtir oficiosamente”.
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