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Processo n.º 487/2012
1ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
(Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros)
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. “A., S.L. (Sociedad Unipersonal) – Sucursal em Porugal” apresentou, perante o Tribunal Tributário de Lisboa, impugnação judicial da decisão de indeferimento da reclamação graciosa contra os atos tributários, praticados pelo INFARMED, de autoliquidação da taxa sobre comercialização de produtos de saúde relativa aos anos de 2000, 2001, 2002, 2003 e 2004, e respetivos juros compensatórios.
Por decisão datada de 14 de junho de 2012, o Tribunal Tributário de Lisboa julgou procedente a impugnação judicial.
Para assim decidir, começou o tribunal por qualificar o tributo em causa, concluindo, sem margem para dúvidas, que se tratava “claramente de um imposto” (fls. 706 dos autos). De seguida passou a analisar a questão de saber se procedia a ilegalidade, invocada pela impugnante, dos atos de liquidação referentes aos meses de janeiro a março de 2000, “por contenderem com o artigo 103.º, n.º 2 da CRP, que impõe o princípio da irrectroactividade das leis fiscais” (fls. 707).
Sobre esta última questão - e depois de ter dado por assente que a denominada taxa sobre a comercialização de produtos de saúde (já substancialmente qualificada, segundo vimos, como imposto) havia sido criada pelo artigo 72.º da Lei n.º 3B/2000, de 4 de abril, que aprovara o Orçamento de Estado para o ano de 2000 -, o Tribunal Tributário de Lisboa invocou o Acórdão n.º 135/2012 do Tribunal Constitucional.
Após a reprodução de passagens do referido Acórdão, disse o tribunal tributário:
“Concluiu assim, este alto Tribunal [o Tribunal Constitucional] julgar inconstitucional, por violação do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de direito democrático enunciado no artigo 2.º da Constituição, a norma do artigo 103.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, quando aplicada à liquidação da ‘taxa sobre comercialização de produtos de saúde’, prevista no artigo 72.º do mesmo diploma, no período respeitante aos meses de janeiro a março de 2000.
Não se vislumbrando fundamento para divergir deste entendimento, cumprirá então dar razão à impugnante nesta sede, com a consequente anulação das liquidações referentes aos meses de janeiro a março de 2000.” (fls. 710 dos autos).
Contudo, e após a análise de outras questões – para o caso irrelevantes –, o Tribunal Tributário concluiu a sua fundamentação do seguinte modo:
Vem ainda invocado que as liquidações são ilegais por padecerem do vício de falta de audição da impugnante no âmbito do procedimento de liquidação.
Já na vigência do Código de Processo Tributário (CPT), o direito de audição constituía uma garantia dos contribuintes, cf. artigo 19.º, al. c), e era aplicável subsidiariamente o disposto no artigo 100.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), no caso de inexistir previsão expressa em qualquer das formas especiais do procedimento tributário.
Atualmente, a Lei Geral Tributária impõe de forma expressa este direito de audição prévia no seu artigo 60.º, prevendo igualmente os casos em que o mesmo pode ser dispensado, concretizando o direito constitucionalmente consagrado da participação dos cidadãos na formação das decisões que lhes disserem respeito, cf. artigo 267.º, n.º 5, da CRP.
Naquele artigo 60.º é então imposto o direito de audição antes da liquidação — al. a), o direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições - al. b), o direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou ato administrativo em matéria fiscal - al. c), o direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indiretos, quando não haja lugar a relatório de inspeção - al. d), e o direito de audição antes da conclusão do relatório da inspeção tributária – al. e).
Nos termos do artigo 60.º, n.º 2 (na redação aplicável ao caso dos autos, que é a originária, anterior ao Decreto-Lei n.º 53-A/2006, de 29 de dezembro), só é dispensada a audição no caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe for favorável.
Por outro lado, conjugada a alínea e), do n.º 1 e o n.º 3 do artigo em referência, a audição do contribuinte antes da liquidação apenas não se justificaria quando já teve oportunidade de o fazer na fase do procedimento de ¡inspeção, que veio a dar azo à prática daquele ato tributário.
Sustentou a entidade demandada no âmbito da decisão da reclamação graciosa que a liquidação foi efetuada com base em declaração do sujeito passivo, pelo que estaria dispensada a sua audição.
No caso em análise, afigura-se, pois, indisputado que o Infarmed não notificou a impugnante para exercício do direito de audição, no decurso do procedimento que antecedeu a prática dos atos de liquidação da taxa de comercialização.
Contudo, ao contrário do que sustenta a entidade demandada, não é de considerar que a liquidação haja sido efetuada com base em declaração do sujeito passivo, porquanto a remessa de elementos por parte da impugnante ao lnfarmed teve origem em notificação desta entidade, que fazia menção expressa à abertura de um procedimento de inspeção.
Evidentemente, não se trata de cumprimento por parte do sujeito passivo das suas obrigações declarativas, tal como pressupõe a norma em questão.
Não era, pois, caso de dispensa do direito de audição.
(…)
Por aqui se vê ser inequívoca a demonstração da violação do direito de audição prévia da impugnante, sendo que a consequência da verificação deste vício passará necessariamente pela anulação dos atos tributários impugnados.
(…)
Deste modo, impunha-se o cumprimento do direito de audição, o que não foi feito.
Porque assim é, para além do que já ficou supra expresso quanto à anulação parcial dos atos de liquidação verifica-se agora que a violação do direito de audição ora em análise determina que não possam manter-se na totalidade os atos tributários impugnados, impondo-se a respetiva anulação.
(…)
Termos em que necessariamente se conclui pela procedência da presente impugnação judicial.
2. Desta decisão interpôs recurso para o Tribunal Constitucional o Ministério Público, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei do Tribunal Constitucional: LTC).
Fê-lo nos seguintes termos:
A Magistrada do Ministério Público, junto deste Tribunal, vem, nos autos supra identificados, nos termos dos artigos 280º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 70º n.º 1 al. a) e 72º n.º 1, al a) e n.º 3 da Lei 28/82 de 15/11, alterada pelas Leis 85/89 de 7/9 E 13-A/98 de 26/2, interpor recurso para o Tribunal Constitucional da douta sentença de fls. 688 e seguintes (do processo físico) proferida nos autos à margem referenciados, na parte em que desaplicou o disposto no art.º 103º da Lei n.º 3-B/2000 de 4 de abril à liquidação da “taxa sobre a comercialização de produtos de saúde”, referente aos meses de janeiro a março de 2000, efetuada pelo INFARMED ao abrigo do disposto no art.º 72º da Lei n.º 3 – B/2000 de 4 de abril, por entender ser tal norma violadora do princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito democrático enunciado no art.º 2º da Constituição da Republica Portuguesa.
3. Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, nele apresentaram alegações o Ministério Público, enquanto recorrente, e “A., S.L. (Sociedade Unipersonal) – Sucursal em Portugal”, recorrida.
Disse o primeiro, essencialmente, que, configurando a pronúncia do tribunal a quo uma recusa, pelo menos implícita, de aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade, se deveria considerar no caso aberta a via de recurso para o Tribunal Constitucional; e que este último deveria retomar a fundamentação e o juízo já constantes do seu Acórdão n.º 135/2012, cuja doutrina o recorrente por inteiro subscrevia.
No mesmo sentido pugnou a recorrida, que, contra-alegando, sublinhou que a CRP, após a revisão de 1997, consagrara expressamente o princípio da proibição da retroatividade das leis fiscais; e que, sendo no seu entender o tributo em causa, inquestionavelmente, um imposto, e devendo ele ser aplicável, por força do artigo 103.º da Lei n.º 3-B/2000, de 4 de abril, a factos integralmente passados, ocorria no caso retroatividade própria ou autêntica, o que, nos termos de jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, configurava uma opção legislativa proibida pela Constituição.
4. Já no momento de elaboração da decisão, sobreveio a dúvida quanto à questão de saber se estaria, no caso, aberta a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Notificado para se pronunciar sobre a questão, o recorrente respondeu afirmativamente. Igualmente notificado, o recorrido nada disse.
Fixada a orientação da Secção, e após a mudança de relator, cumpre decidir.
II – Fundamentação
5. No presente caso, o Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, de uma decisão do Tribunal Tributário de Lisboa que se fundou numa dualidade de argumentos: por um lado, em argumentos de ordem constitucional; por outro, em argumentos atinentes, exclusivamente, ao direito ordinário.
Na verdade, para decidir como decidiu – julgando procedente a impugnação apresentada – o tribunal a quo atendeu à inconstitucionalidade da norma que tinha que aplicar. O juízo de inconstitucionalidade (que já fora emitido, em fiscalização concreta, pelo Tribunal Constitucional) permitiu-lhe resolver em parte a questão principal que tinha que ser julgada: com fundamento nesse juízo foram desde logo anuladas as liquidações referentes aos meses de janeiro a março de 2000, dando-se portanto razão, quanto a este período, ao impugnante.
Contudo, o que permitiu a decisão final, pela qual foram anulados todos os atos de liquidação praticados e julgada procedente a impugnação na sua totalidade, não foi o argumento de teor constitucional. O que permitiu a decisão foi o argumento de direito ordinário, fundado na violação do artigo 60.º da Lei Geral Tributária. Sob a epígrafe “princípio da participação”, garante o n.º 1 deste preceito que todos os contribuintes tenham o direito a ser ouvidos antes da liquidação; e foi por ter verificado que, no caso, não ocorrera nem a referida audição, nem nenhuma das circunstâncias em que aquela poderia ser dispensada, que o juiz a quo concluiu pela procedência total da impugnação.
Perante estes dados, ganha toda a pertinência a questão de saber se, in casu, se encontra aberta a via de recurso para o Tribunal Constitucional.
6. Nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas, o Tribunal Constitucional português (e diferentemente do que sucede em muitos outros ordenamentos constitucionais da Europa) julga em recurso, que é interposto de decisão proferida por um tribunal comum. Embora o recurso seja restrito à questão da invalidade da norma (artigo 280.º, n.º 6, da CRP), a decisão que nele se profira não pode deixar de ter efeitos sobre a decisão recorrida, obrigando ou à sua reforma ou à sua confirmação, consoante se altere ou se mantenha o juízo proferido pelo juiz a quo quanto à questão de constitucionalidade (artigo 80.º da LTC).
Na exata medida em que esta questão, que é objeto do recurso para o Tribunal Constitucional, surge como incidente no processo principal que o juiz comum tem que julgar (sendo o problema da validade ou invalidade da norma que se aplica ao caso um problema de resolução prévia face ao julgamento do mesmo), a reforma ou confirmação da decisão recorrida há- de, logicamente, traduzir-se em alteração ou manutenção da solução material (infraconstitucional) que o juiz a quo, por causa do seu juízo quanto à questão da inconstitucionalidade, já dera ao caso, antes da intervenção do Tribunal Constitucional.
Assim, se, por algum motivo, se mostrar invariável a solução dada pelo juiz a quo à questão principal que tem que julgar, por não depender ela da solução que o Tribunal Constitucional vier a dar à questão [incidental] da constitucionalidade, o juízo que este último vier a fazer não terá qualquer virtualidade para manter ou alterar a decisão recorrida. Nestas circunstâncias, a intervenção da jurisdição constitucional no processo mostrar-se-á perfeitamente inútil, e, portanto, injustificada. Na verdade, aqui, o Tribunal não poderá ser a instância de recurso que a Constituição prevê (artigo 280.º), uma vez que não poderá emitir decisão modificativa ou confirmatória (artigo 80.º da LTC) de qualquer decisão proferida por tribunal comum.
É o que se passa no presente caso.
Na verdade, se o juízo que nele se proferisse fosse o da não inconstitucionalidade (possibilidade sempre aberta, não obstante o Acórdão n.º 135/2012), a decisão do Tribunal Constitucional, que mandaria reformar a decisão recorrida em conformidade com o juízo agora emitido sobre a questão de constitucionalidade, não produziria quaisquer efeitos. A solução dada à questão principal manter-se-ia inalterada, uma vez que sempre subsistiria, para a fundamentar, o argumento de direito ordinário segundo o qual, não tendo havido a audição dos contribuintes exigida pelo artigo 60.º da LGT, os atos de liquidação praticados – e todos eles – deveriam ser anulados. Aliás, e como já se viu, a “reforma da decisão recorrida” ordenada eventualmente pelo Tribunal Constitucional seria sempre, no caso, uma “reforma parcial”, uma vez que o juízo de inconstitucionalidade feito pelo tribunal a quo servira para fundamentar apenas parte da resolução a dar à questão principal que tinha que ser julgada.
Por outro lado, se o juízo fosse, na senda do Acórdão n.º 135/2012, o da inconstitucionalidade, a confirmação da decisão recorrida quanto a esse juízo – decorrente da decisão do Tribunal Constitucional – também nenhum efeito teria, uma vez que o tribunal a quo manteria a solução dada à causa principal independentemente da confirmação ou infirmação que viesse a ser feita do seu julgamento quanto à questão de constitucionalidade.
7. É certo que os recursos que são interpostos de decisões dos tribunais que recusem a aplicação de uma norma com fundamento na sua inconstitucionalidade (artigo 280.º, n.º 1, alínea a) da CRP; artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da LTC) apresentam particularidades que não podem ser negligenciadas, quando se trata de decidir sobre a utilidade do seu conhecimento por parte do Tribunal.
A Constituição da República conferiu a cada juiz o poder e o dever de não aplicar normas que sejam contrárias à Constituição (artigo 204.º da CRP). Diferentemente do que sucede nos restantes ordenamentos jurídico-constitucionais da Europa, o direito português atribuiu aos juízes não apenas o direito de examinar a constitucionalidade das normas a aplicar aos casos sob juízo; mais do que isso, devolveu-lhes a competência para rejeitar a aplicação dessas normas, caso se conclua pela sua inconstitucionalidade.
Esta diferença específica do ordenamento português face aos seus congéneres europeus não deve, porém, escamotear a homogeneidade fundamental que existe entre ambos (entre o “modelo” difuso português e o restante “modelo” europeu). É que é o mesmo, o fundamento dos sistemas que se esteiam apenas no direito judicial de exame da constitucionalidade de normas e o fundamento dos sistemas que, como o nosso, se esteiam, para além disso, na competência judicial para desaplicar normas que sejam contrárias à Constituição. Ou dizendo de outro modo: a fundamentar o direito judicial de exame – que é o que existe nos restantes sistemas nacionais europeus, em que o juiz examina a norma, e coloca ao Tribunal Constitucional, a título prévio e incidental, a questão da sua constitucionalidade – está o mesmo princípio que fundamenta a competência judicial de rejeição da aplicação de uma norma, previsto pelo artigo 204.º da CRP. Jura novit curia: como o juiz conhece o Direito, sobre ele impende a obrigação de não aplicar normas inválidas, porque contrárias à Lei Fundamental. A obrigação poderá traduzir-se no exame da questão de constitucionalidade (com competência para a colocação da questão, a título prejudicial, ao Tribunal Constitucional),ou, mais fortemente, em competência para rejeitar a aplicação da norma, em decisão da qual caiba recurso para o Tribunal Constitucional; a sua razão de ser, porém, manter-se-á sempre a mesma.
É essa razão de ser que justifica as particularidades do recurso que é interposto, para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da CRP e da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC., e que se traduzem, desde logo e nos casos de normas dotadas de superior dignidade hierárquica, na obrigatoriedade para o Ministério Público da sua interposição imediata (n.º 3 do artigo 280.º da CRP). Nada disto existe, como se sabe, nos recursos que são interpostos de decisões dos tribunais que apliquem normas cuja constitucionalidade tenha sido arguida durante o processo (artigo 280.º. n.º 1, alínea b) e n.º 4); assim sendo, as diferenças entre um e outro tipo de recursos (e as particularidades dos recursos de decisões de desaplicação) não devem ser negligenciadas, quando se tem que decidir sobre a questão da utilidade do seu conhecimento por parte do Tribunal.
Simplesmente, tal não altera um dado fundamental, que aliás se mostra determinante para a resolução da questão que agora tem que decidir-se. O Tribunal Constitucional português é, nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade das normas, um tribunal de recurso. As decisões que proferir terão que produzir efeitos sobre a decisão recorrida, mantendo-a ou alterando-a. Caso seja impossível a alteração, ou inútil a manutenção, a decisão que o Tribunal profira sobre a questão de constitucionalidade, não produzindo efeitos nenhuns sobre a decisão recorrida, não será a própria de um Tribunal de recurso.
Tanto basta para que, se tal suceder, não possa o Tribunal conhecer do objeto do recurso.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide não conhecer do objeto do recurso.
Sem custas.
Lisboa, 28 de maio de 2013.- Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida de acordo com a declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro (revendo posição anterior).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencida. Teria conhecido do recurso, pelas seguintes razões:
A decisão recorrida julgou a impugnação judicial procedente com base numa pluralidade de fundamentos. Com efeito, para além da inconstitucionalidade da norma desaplicada - objeto do presente recurso -, a improcedência da impugnação judicial fundou-se ainda na caducidade do direito à liquidação por referência ao ano de 2000 e na falta de audição da impugnante no âmbito do procedimento de liquidação. A circunstância de, para além da inconstitucionalidade, poderem subsistir outras razões a fundamentar a decisão recorrida não deve, porém, condicionar o conhecimento do presente recurso de constitucionalidade.
O recurso em análise foi interposto nos termos dos artigos 280.º, n.º 1, alínea a) da Constituição da República Portuguesa, 70.º, n.º 1, alínea a) e 72.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 da LTC, constituindo recurso obrigatório para o Ministério Público (artigo 280.º, n.º 3 da CRP).
Ora, o facto de se tratar de um recurso interposto após a desaplicação judicial de norma, com fundamento na sua inconstitucionalidade é central na análise. Trata-se de uma situação intrinsecamente diferente da mera alegação por um recorrente desta inconstitucionalidade – porque neste caso já ocorreu um juízo prévio no sentido da inconstitucionalidade por parte de um órgão judicial.
Aliás, é a própria Constituição que consagra uma diferença de regimes relativos aos recursos previstos na alínea a) e na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º. Essa diferença pode ser comprovada, desde logo, através dos n.os 3 e 4 do mesmo preceito, onde se estabelece, para o que agora nos interessa, a natureza obrigatória para o Ministério Público do recurso nesses casos.
De facto, a natureza obrigatória dos recursos de decisões que recusem a aplicação de qualquer norma com fundamento em inconstitucionalidade não pode ser ignorada na aferição do interesse no seu conhecimento. Visando a obrigatoriedade destes recursos assegurar a competência do Tribunal Constitucional para conhecer, por forma específica e em última instância, a questão de natureza jurídico-constitucional julgada pela decisão recorrida, o seu conhecimento não pode estar condicionado pela subsistência do interesse das partes ou da efetiva repercussão do julgamento de inconstitucionalidade no sentido decisório da sentença recorrida. Independentemente da subsistência daquele interesse ou desta repercussão, a desaplicação de uma norma legal por um órgão de soberania independente com competência para administrar a justiça (artigo 202.º da CRP) fundada num juízo de inconstitucionalidade não pode deixar de ser apreciada, em última instância, pelo Tribunal Constitucional.
Como lembrado no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 256/04 «ao imporem ao Ministério Público a obrigação de interpor recurso das decisões dos tribunais que hajam recusado a aplicação de norma constante, designadamente, de ato legislativo (como é o presente caso), com fundamento em inconstitucionalidade e ao estabelecerem a regra da subida imediata desses recursos, sem prévia exaustão dos recursos ordinários no caso cabíveis, a Constituição e a lei pretendem que o “conflito entre o poder judicial e o poder legislativo”, vislumbrável naquela recusa judicial de aplicação de norma legal, seja rapidamente dirimido pelo órgão constitucional competente para dizer a última palavra em questões de constitucionalidade – o Tribunal Constitucional –, impedindo a consolidação, na ordem jurídica, de decisões judiciais de inconstitucionalidade de normas legais sem que o Tribunal Constitucional possa controlar esses juízos».
A natureza deste recurso está, assim, intrinsecamente relacionada com o princípio da separação e interdependência dos poderes (artigo 11.º da Constituição) e com o papel do Tribunal Constitucional como árbitro último da legitimidade constitucional da desaplicação judicial de norma.
Trata-se de preservar a supremacia do julgamento do Tribunal Constitucional em questões jurídico-constitucionais (artigo 221.º da CRP). Um interesse que não cede perante considerações de economia ou utilidade processual.
Maria de Fátima Mata-Mouros
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