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Processo n.º 794/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente A. e recorridos o MINISTÉRIO PÚBLICO e o INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P., o primeiro interpôs recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pelo Tribunal da Relação do Porto, em 27 de junho de 2012 (cfr. fls. 953-962).
2. O requerimento de interposição de recurso tinha o seguinte teor (cfr. fls 969 a 970):
«A., com os demais sinais dos autos onde é arguido, não se conformando com o aliás douto acórdão que julgou não verificada a inconstitucionalidade apontada no recurso (a interpretação do art.° 107, n.º 1 do RGIT entendida no sentido da não aplicação do limite de 7.500,00€, estabelecido no art.° 105, n.º 1 do mesmo diploma, para o crime de abuso de confiança fiscal e que não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
A presente questão — a inconstitucionalidade da aplicação do art.° 107, n.º 1 do R.G.I.T., afastando o limite descriminalizador de 7.500,00€ previsto no art.° 105, n.º 1 para onde remete — foi suscitada em recurso apresentado aquando da fase instrutória do processo, na contestação e sentença da 1ª Instancia, no 1° recurso para a Relação do Porto e no presente recurso desta Veneranda Relação, bem como nas respetivas sentenças e acórdão. Na verdade, nas conclusões 1 a 5 do recurso, o n.º 1 da motivação, e nos pontos 3.1 e, máxime 3.2 (fls. 11 do acórdão em crise) versam claramente a questão.
O presente recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.° 70 da Lei 28/82, de 15 de novembro e posteriores alterações, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.
Os violados princípios constitucionais e respetivas normas que os plasmam são o princípio da proporcionalidade (art.° 18, n.º 2 da Constituição) e princípio de igualdade (art.° 13 da Constituição).
Mostra-se cumprido o disposto no art.° 75-A da LOTC.
Por tempestivo e legal deve o presente recurso ser admitido.»
3. A Relatora proferiu, em 28/01/2013, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, a Decisão Sumária n.º 61/2013 (cfr. fls. 978-983), acolhendo o entendimento do Acórdão n.º 97/2011 e reiterado no Acórdão n.º 279/11 e formulando, pelas razões enunciadas naquele acórdão, idêntico juízo de não inconstitucionalidade da norma sindicada.
4. O recorrente apresentou reclamação para a conferência, nos termos do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, arguindo nulidade, nos termos seguintes (cfr. fls. 987-989):
«1. O recurso em apreço foi admitido nos termos do despacho de fls. 971, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto (artºs 76, n.º 1 da L TC).
2. Face a tal admissão, que não vincula o Tribunal Constitucional (art.' 76, n.º 3), o Tribunal Constitucional deveria, salvo o devido respeito, pronunciar-se sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade, uma vez que o conhecimento de mérito do recurso ocorrido no despacho em reclamação, consubstancia uma fase processual posterior à da admissão.
É de realçar que o objeto 'qua tali' do recurso, conquanto tenha o 'thema decidendum” anunciado, ainda nem sequer foi apresentado: é na fase das alegações e respetivas conclusões que tal acontece (art.° 79, nºs 1 e 2 da LCT).
3. Não ignora o reclamante a existência de tais acórdãos deste Venerando Tribunal Constitucional sobre o anunciado 'thema decidendum'.
Certo é, porém, a ponderação da questão subjacente aos mesmos, é-o na sequência de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - em acórdão de Fixação de Jurisprudência, com o nº 8/2010, de 23/09 - D.R. 1ª série nº 186 de 23 de setembro - que foi votado por maioria.
Ora os votos de vencido, em especial o do Exmº Sr. Conselheiro Doutor Santos Cabral, são de qualidade e rigor tais que impõem sejam apreciados por este Venerando Tribunal Constitucional.
Como dizia Baudelaire - - 'a razão é uma bilha com duas asas: tanto se pode pegar pela esquerda como pela direita'.
Não se aplicando, pios, à hipótese 'sub judice' o disposto no art.° 82 da LTC, óbvio se torna que a questão ainda está em aberto.
Evidentemente que a questão a decidir não é simples (para o S.T.J. não foi), nem foi objeto ainda nos seus fundamentos e conteúdo apreciada pelo Tribunal Constitucional.
4. Ora, sendo as coisas como se vêm de dizer, a decisão de improcedência do recurso configura conhecimento de questão que o tribunal ainda não podia conhecer, dada a fase processual em que se encontra o recurso.
Termos em que se deduz Reclamação para a Conferência, arguindo-se a nulidade invocada (art.° 379, n.º 1 al. c) 2ª parte do C.P.P.), devendo o recurso ser admitido, notificado o recorrente para apresentar as suas alegações, seguindo-se os ulteriores procedimentos.».
5. O representante do Ministério Público Junto deste Tribunal pronunciou-se pelo não acolhimento da reclamação apresentada e da manutenção do sentido da Decisão Sumária n.º 61/2013, com os fundamentos seguintes:
«(…) 4º
A Ilustre Conselheira Relatora entendeu, pois, para decidir como decidiu (cfr. fls. 982 dos autos) (destaques do signatário):
“Ora afigura-se ser de acolher, também no caso vertente, um tal entendimento, pelo que, pelas razões enunciadas no Acórdão nº 97/2011 e reiteradas no Acórdão nº 270/11, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, se formula idêntico juízo».
Para o efeito, a Ilustre Conselheira Relatora aplicou o disposto no nº 1 do art. 78º-A da Lei do Tribunal Constitucional, que dispõe o seguinte (destaques do signatário):
“1. Se entender que não pode conhecer-se do objeto do recurso ou que a questão a decidir é simples, designadamente por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal ou por ser manifestamente infundada, o relator profere decisão sumária que pode consistir em simples remissão para anterior jurisprudência do Tribunal.”
5º
Vem, agora, o recorrente reclamar para a conferência, nos termos do art. 78º-A, nº 3, da LTC, arguindo a nulidade da Decisão Sumária 61/2013 proferida, alegando, designadamente (cfr. fls. 987-988 dos autos):
“2. Face a tal admissão, que não vincula o Tribunal Constitucional (art. 76, nº 3), o Tribunal Constitucional deveria, salvo o devido respeito, pronunciar-se sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade, uma vez que o conhecimento de mérito do recurso recorrido no despacho em reclamação, consubstancia uma fase processual posterior à da admissão.
É de realçar que o objeto «qua tali» do recurso, conquanto tenha o «thema decidendum» anunciado, ainda nem sequer foi apresentado: é na fase das alegações e respetivas conclusões que tal acontece (art. 79º, nºs 1 e 2 da LTC).”
6º
Refere-se, em seguida, o ora reclamante, ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2010, de 23 de setembro, do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão, esse, votado por maioria, para chegar à conclusão, que “óbvio se torna que a questão ainda está em aberto”.
Assim (cfr. fls. 988-989 dos autos), “sendo as coisas como se vêm de dizer, a decisão de improcedência do recurso configura conhecimento de questão que o tribunal ainda não podia conhecer, dada a fase processual em que se encontra o recurso.
Termos em que se deduz Reclamação para a Conferência, arguindo-se a nulidade invocada (art. 379º, nº 1 al. c) 2ª parte do C.P.P.)”:
7º
Não se crê, porém, que a argumentação do interessado faça grande sentido.
Desde logo, a disposição, que invoca, não se mostra aplicável ao caso dos autos.
Refere o art. 379, nº 1, alínea c), do Código de Processo Penal:
“É nula a sentença:
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Acha, assim, o ora reclamante, que a Ilustre Conselheira Relatora conheceu “de questões de que não podia tomar conhecimento” (2ª parte da referida alínea).
No entanto, ao processo constitucional é aplicável, como legislação subsidiária, não o Código de Processo Penal, mas o Código de Processo Civil, como claramente resulta do art. 69º da LTC, que dispõe:
“À tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação”.
8º
Por outro lado, a Ilustre Conselheira Relatora conheceu, justamente, daquilo de que devia tomar conhecimento, ou seja, do objeto do recurso interposto pelo interessado, que ele próprio definiu, no seu requerimento de interposição de recurso, da seguinte forma (cfr. fls. 969 dos autos) (destaques do signatário):
“A., com os demais sinais dos autos onde é arguido, não se conformando com o aliás douto acórdão que julgou não verificada a inconstitucionalidade apontada no recurso (a interpretação do art.° 107, n.º 1 do RGIT entendida no sentido da não aplicação do limite de 7.500,00€, estabelecido no art.° 105, n.º 1 do mesmo diploma, para o crime de abuso de confiança fiscal e que não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social), vem do mesmo interpor recurso para o Tribunal Constitucional. (…)
Os violados princípios constitucionais e respetivas normas que os plasmam são o princípio da proporcionalidade (art.° 18, n.º 2 da Constituição) e princípio de igualdade (art.° 13 da Constituição).”
9º
Conheceu, pois, a Decisão Sumária reclamada, do mérito do mesmo recurso, o que pressupõe, assim, ao contrário do que alega o interessado, que o seu recurso foi considerado admissível.
Aplicou, por outro lado, a mesma Decisão Sumária, solução já anteriormente escolhida por este Tribunal Constitucional, remetendo para a fundamentação de tal jurisprudência, quer quanto à norma objeto do recurso, quer quanto aos princípios constitucionais considerados violados: princípio da proporcionalidade e princípio da igualdade.
Para este efeito, pouco interessa o sentido da jurisprudência de outros Supremos Tribunais, uma vez que é ao Tribunal Constitucional que cabe decidir, em última instância, sobre questões de constitucionalidade.
O que fez, nos presentes autos.
10º
Crê-se, pelas razões apontadas, que a presente reclamação para a conferência não deverá merecer acolhimento por parte deste Tribunal Constitucional, não havendo razões para alterar o sentido da Decisão Sumária 61/13, de 28 de janeiro, que determinou a respetiva apresentação. (…)»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. O ora reclamante reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 61/2013 de 28/01/2013 por entender que a relatora devia «pronunciar-se sobre a admissibilidade ou inadmissibilidade, uma vez que o conhecimento de mérito do recurso ocorrido no despacho em reclamação, consubstancia uma fase processual posterior à da admissão» e por entender que a a decisão sumária, no sentido da improcedência do recurso, «configura conhecimento de questão que o tribunal ainda não podia conhecer, dada a fase processual em que se encontra o recurso», arguindo por isso «a nulidade invocada (art.° 379, n.º 1 al. c) 2ª parte do C.P.P.).
O ora reclamante invoca ainda que os votos de vencido do acórdão de Fixação de Jurisprudência, com o nº 8/2010, de 23/09, pela sua «qualidade e rigor tais», impõem que sejam apreciados por este Tribunal e, ainda, que não se aplicando ao caso o disposto no artigo 82.º da LTC, «óbvio se torna que a questão ainda está em aberto».
Conclui o ora reclamante que o recurso deve ser admitido e notificado o recorrente para apresentar as suas alegações, seguindo-se os ulteriores procedimentos.
7. Não assiste razão ao reclamante.
7.1 A Decisão Sumária n.º 61/2013 foi proferida ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, segundo o qual o relator pode entender que a questão a decidir é simples designadamente – como é o caso – por a mesma já ter sido objeto de decisão anterior do Tribunal – acórdãos n.º s 97/2011 e n.º 279/11, para cuja fundamentação se remeteu na Decisão Sumária.
7.2 A prolação da Decisão Sumária n.º 61/2013 implicou – contrariamente ao que alega o ora reclamante – a admissão do requerimento de recurso de constitucionalidade e o seu conhecimento, em sentido idêntico ao decidido em jurisprudência anterior deste Tribunal
7.3 Pelo que não se verifica – ao contrário do que alega o ora reclamante – o «conhecimento de questão que o tribunal ainda não podia conhecer, dada a fase processual em que se encontra o recurso».
7.4 A competência para decidir através de decisão sumária, conferida pelo n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC e exercida pela relatora, existe independentemente da aplicação do artigo 82.º da LTC a que alude o ora reclamante, que para o caso não releva - tanto que a sua aplicação pressupõe um juízo de inconstitucionalidade que ora não ocorreu.
7.5 Não se verifica assim qualquer nulidade da decisão com o fundamento invocado pelo ora reclamante – conhecimento pelo tribunal de questões de que não podia tomar conhecimento – previsto no artigo 379.º, n.º 1, alínea c) 2ª parte, do Código de Processo Penal.
Desde logo porque tal disposição não é aplicável à tramitação dos recursos para o Tribunal Constitucional no que respeita aos processos de fiscalização concreta: o artigo 69.º da LTC dispõe que à tramitação em causa «são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, em especial as respeitantes ao recurso de apelação».
E, ainda, porque a Decisão Sumária em causa, correspondendo ao exercício da competência conferida ao relator pelo n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, implicou a admissão do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal e conheceu de questões de que podia tomar conhecimento – o mérito do recurso, com o objeto delimitado pelo recorrente e ora reclamante no requerimento de interposição de recurso (cfr. fls. 969), quer quanto à norma sindicada, quer quanto aos princípios constitucionais que o recorrente considerou terem sido violados –, no sentido idêntico a jurisprudência anterior deste Tribunal.
7.6 Por último, não releva a invocação, pelo ora reclamante, dos votos de vencido no Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2010, de 23 de setembro, do Supremo Tribunal de Justiça, já que é ao Tribunal Constitucional que compete decidir, em última instância, sobre questões de constitucionalidade.
III – Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação para a conferência.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos dos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro.
Lisboa, 23 de maio de 2013. – Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral.
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc//tc/acordaos/20130283.html ]
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