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Processo n.º 222/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. foi condenado no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Vila Nova de Famalicão, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, e 22.º e 23.º, do Código Penal, na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, por acórdão proferido em 16 de abril de 2012.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto.
O Desembargador Relator, por despacho proferido em 19 de setembro de 2012, convidou o arguido a aperfeiçoar as conclusões das alegações de recurso, de modo a nas mesmas sejam especificadas as concretas provas que, na sua tese, impõem decisão diversa da recorrida, sob pena de, não o fazendo, naquela medida não se conhecer do recurso.
O arguido apresentou requerimento com novas conclusões das alegações.
O Desembargador Relator, por despacho proferido em 28 de novembro de 2012, advertiu o arguido que poderia acontecer uma alteração da qualificação jurídica do crime pelo qual o arguido havia sido condenado na 1.ª instância, tendo-o convidado a pronunciar-se sobre tal possibilidade.
O arguido não se pronunciou.
Em 19 de dezembro de 2012, o Tribunal da Relação do Porto proferiu acórdão em que concedendo parcial provimento ao recurso, condenou o arguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, na forma consumada, alterando a pena em que o arguido foi condenado para 5 anos de prisão.
O arguido apresentou requerimento, arguindo a nulidade desta decisão e pedindo a sua correção.
Este requerimento foi indeferido pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 6 de fevereiro de 2013.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, pedindo a declaração de inconstitucionalidade das seguintes normas:
“1 - A interpretação da exigência de fundamentação de facto e de direito contida na norma prevista no nº 1 do art 187º do CPP no sentido de que esta se basta com a mera remissão de forma genérica para outros despachos proferidos no mesmo processo sem determinação em concreto do despacho em que se fundamenta, de entre os vários proferidos é inconstitucional por violação do princípio da fundamentação de todas as decisões dos Tribunais que não sejam de mero expediente e da violação das garantias de defesa, previstas nos arts. 32 nºs 1 e 8, 34º nº 4 e 250 nº 1 da CRP, tendo tal questão sido suscitada em sede de arguição de nulidade na audiência de julgamento que decorreu no Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão.
2 - A norma prevista na al. b) do nº 3 do art. 412º do Código de Processo Penal interpretada no sentido de que é imperativo para o cumprimento do referido ónus e por conseguinte para que o tribunal superior conheça do recurso de matéria de facto, a especificação dos concretos trechos dos depoimentos que infirmam a decisão recorrida nas conclusões, redundando tal interpretação num acréscimo de formalidades legais (no caso concreto, não mais que uma mera duplicação do teor literal dos concretos trechos dos depoimentos transcritos na motivação, já que estes são insuscetíveis de resumo) para a interposição de recurso que a letra da lei não consente, deve ser julgada inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade, do acesso ao direito e do direito ao recurso previstos nos art. 18 nº 2, 20 nº 1 e 4 e 32 nº 1 da Constituição, sendo que tal questão apenas foi suscitada em sede de Requerimento de Correção do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, porquanto o Recorrente apenas foi confrontado com a mesma pela primeira vez com a notificação do douto Acórdão do TRP.
3 - É também inconstitucional a interpretação que se extraia do disposto no artº 358 nº 1 e 3 do Código de Processo Penal e 424º nº 3 do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei 48/07 no sentido de que incumbe ao Tribunal da Relação comunicar ao arguido uma alteração da qualificação jurídica e proferir decisão condenando-o por essa nova qualificação jurídica, por violação dos artºs 2º e 32º nº 1 e 5 da CRP, designadamente, do princípio do Estado de Direito e da Segurança jurídica, dos direitos de defesa e de recurso e do contraditório, sendo que tal questão apenas foi suscitada em sede de Requerimento de Correção do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, porquanto o Recorrente apenas foi confrontado com a mesma pela primeira vez com a notificação do douto Acórdão do TRP.
4 - É ainda inconstitucional, a interpretação que se extraia do disposto no artº 424º nº 3, por remissão para o artº 353º nº 1 e 3 do Código de Processo Penal no sentido de que, comunicada uma alteração da qualificação jurídica do Tribunal da Relação para figura criminal mais grave, em recurso interposto apenas pelo arguido, a subsequente determinação da medida da pena, escolha da pena e ponderação dos pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena não incumbe à 1 instância, salvaguardando-se o princípio da proibição da reformatio in pejus, por violação do direito ao recurso (artº 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa), designadamente, por ser sonegado um grau de recurso ao arguido, sendo que tal questão apenas foi suscitada em sede de Requerimento de Correção do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, porquanto o Recorrente apenas foi surpreendido com a mesma pela primeira vez com a notificação do douto Acórdão do TRP.”
Foi proferida decisão sumária de não conhecimento do recurso, com a seguinte fundamentação.
“1. Dos requisitos do conhecimento do recurso de constitucionalidade
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitado previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido da sua aclaração, correção ou reforma não constituem já meios adequados de suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto» do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também, por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respetivas alegações.
Contudo, este requisito (suscitação da questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a decisão impugnada) considera-se dispensável nas situações especiais em que, por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo excecionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Expostos, sumariamente, os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelo Recorrente neste processo.
2. Do conhecimento da constitucionalidade da interpretação do artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Penal
O Recorrente pretende que se fiscalize a constitucionalidade do artigo 187.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando este é interpretado com o sentido de que a fundamentação de uma decisão em processo penal se basta com a mera remissão de forma genérica para outros despachos proferidos no mesmo processo sem determinação em concreto do despacho em que se fundamenta, de entre os vários proferidos.
Nas alegações de recurso dirigidas ao tribunal recorrido, sobre este tema, o arguido escreveu o seguinte:
“Mas ainda que assim se não entendesse, sempre o recorrente estaria em tempo de se pronunciar sobre o despacho em crise arguindo a dita nulidade por falta de fundamentação, o que assim fez tempestivamente, porquanto apenas foi confrontado com a existência do mesmo na 4ª sessão de julgamento e tendo requerido prazo para se pronunciar foi-lhe o mesmo deferido.
E não se diga que o alegado vício de falta fundamentação do despacho em crise não existiu, senão vejamos:
Refere o douto despacho ao nível da sua fundamentação o seguinte: “em face do lapso de tempo em que decorrem já as interceções em apreço, dando-se por reproduzida a fundamentação contida nos nossos anteriores despachos, defiro, pelo período de 30 dias as diligências promovidas pelo MP (…)”.
Desde logo, ressalta à evidência que o coletivo de juízes não leu ou não quis ler a fundamentação (ou a falta dela) do despacho ora em crise, porquanto ao afirmarem no douto acórdão recorrido que 'Nota-se que, para sua conveniência, nem esclareceu quais os fundamentos para os quais remete o despacho em crise' evidenciam total ignorância quanto ao teor do despacho, pois caso contrário, não deixariam de notar que seria impossível ao aqui recorrente esclarecer quais os fundamentos para os quais remete o despacho em crise exatamente por ser o próprio despacho em crise a remeter a, sua fundamentação para a contida nos anteriores despachos, sejam eles quais forem e de cuja autoria forem.
É que efetivamente não se sabe a que fundamentação se refere e a que despachos se alude, até porque a fundamentação que presidiu à prolação de um despacho de autorização da utilização de escutas à cerca de oito ou dez meses, não será a mesma que presidirá à prolação de um despacho numa fase de desenvolvimento da investigação bem mais avançada, havendo que aquilatar criticamente e em concreto se os objetivos a alcançar com a investigação não serão realizáveis mediante o recurso a meios de obtenção de prova bem menos gravosos para os suspeitos face aos indícios de prova já recolhidos, ou seja, não será legítimo ordenar as escutas telefónicas nos casos em que os resultados probatórios almejados possam, sem grandes dificuldades, ser, alcançados por meio mais benigno de afronta aos direitos fundamentais.
É neste sentido que dispõe o inciso legal do nº 1 do art. 187º do CPP quando diz que: 'a interceção e a gravação de conversações ou comunicações telefónicas só podem ser autorizadas durante o inquérito, se houver razões para crer que a diligência é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria de outra forma impossível ou muito difícil de obter, por despacho fundamentado do juiz de instrução e mediante requerimento do MP (...)
Com efeito, recorrendo novamente aos subsídios da Professora Ana Raquel Conceição 'o despacho de autorização legitimador de um escuta é um ato decisório do juiz e, como tal, tem de ser fundamentado conforme consagramos comandos do nº 4 do art. 97 do CPP e o nº 1 do art. 205º da CRP. É através da decisão judicial de autorização que se impõem os limites de restrição dos direitos, liberdades e garantias afetados com a escuta telefónica.”
“A motivação será o conhecimento do raciocínio e do juízo de ponderação que levam o juiz a optar pelo sacrifício do direito fundamental, pois só com a exposição dos motivos que levaram à escolha pelo juiz, de tão gravoso meio de obtenção de prova, poderá o arguido impugnar essa decisão, uma vez que só assim pode conhecer da ponderação e raciocínio do juiz.”
'Esta exposição de motivos passará pela, indicação dos elementos que levaram o juiz à tomada de decisão e como se chegou a esses elementos. Ou seja, terá de fazer uma exposição mais completa possível dos motivos, de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico dos indícios que serviram para formar a sua convicção, pois só assim o arguido poderá exercer o seu direito ao contraditório.”
“Essa motivação deverá manter-se durante todo o processo de duração das escutas, pois só assim se saberá se o juiz está, efetivamente, a controlar a utilização deste meio de obtenção de prova. Este deverá acompanhar todo o seu funcionamento, sendo ele quem determina o seu prazo de duração e eventual renovação que deverá ser novamente fundamentada, sendo que esta motivação está sujeita aos mesmos requisitos impostos na elaboração do auto de autorização, uma vez que, a renovação implica um novo juízo de ponderação e a análise da verificação dos pressupostos ordinários e constitucionais legitimadores deste meio de obtenção de prova, ou seja, da proporcionalidade, necessidade e adequação na manutenção da escuta telefónica.”
“Logo, se um juiz emite um auto de autorização judicial que não respeita estes requisitos, está a extravasar os limites constitucionais permissivos das escutas telefónicas, o que, desencadeará uma nulidade de prova.”
Posto isto, naturalmente que a remissão no despacho ora em crise para 'a fundamentação contida nos nossos despachos anteriores' evidencia claramente a falta de acompanhamento ou controlo a-crítico da legalidade das operações de escutas telefónicas efetuadas pelos Órgãos de Polícia Criminal (OPC) e pelo JIC previamente ordenadas. Com isto não se pretende dizer o que o JIC não possa fundamentar o seu despacho por remissão para um outro ou até dando por reproduzida a fundamentação, contida na promoção do MP, mas terá que o fazer indicando concretamente para que despacho, relatório ou promoção se refere, não da forma genérica como o fez.
Ora, tal situação colide frontalmente com o nº 4 do art. 32.º da CRP, que obriga a que seja o juiz a praticar todos, os atos instrutórios que se prendam com direitos fundamentais. Se esse controle não é feito pelo juiz, mas pelos OPC, significa que o primeiro delegou nos segundos a prática de atos que se prendem diretamente com direitos fundamentais.
Pelo que o seu desrespeito terá de ter a mesma consequência que o desrespeito pelas condições de admissibilidade das escutas telefónicas, pois com qualquer um deles está a ser posto em causa os direitos das pessoas que se viram envolvidas nas escutas telefónicas: tal prova assim obtida é nula, sendo que sobre si recai uma proibição de valoração probatória no próprio processo, contaminando todas as demais que dela tenham sido oriundas, impondo-se desta forma a absolvição do arguido por inexistência de prova.”
E nas conclusões:
“16. O despacho de autorização legitimador de um escuta é um ato decisório do juiz e, como tal, tem de ser fundamentado conforme consagram os comandos do nº 4 do art. 97 do CPP e o nº 1 do art. 205º da CRP, sendo certo que, é através da decisão judicial de autorização que se impões os limites de restrição dos direitos, liberdades e garantias afetados com a escuta telefónica.
17. A postergação das formalidades exigidas para a realização de escutas telefónicas determina a sua nulidade, acarretando a sua declaração a presença no processo de prova proibida, e, insuscetível de ser tida em consideração pelo Tribunal.
18. Ao não fundamentar de facto e de direito o douto despacho, violou-se o disposto nos arts. 97º nº 5 e 187 nº 1 do CPP e 32º nº 8, 34º nº 4 e 205º nº 1 da CRP, sendo a decisão vertida no mesmo, nula e inconstitucional, contaminando todas as demais escutas que dela tenham sido oriundas.”
Da leitura destes excertos verifica-se que o arguido não questiona a constitucionalidade do critério que está subjacente à decisão de não considerar nulo, por falta de fundamentação, o despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, mas sim a conformidade constitucional deste mesmo despacho, por não se encontrar devidamente fundamentado.
A suscitação processualmente adequada da questão de constitucionalidade implica o cumprimento pelo recorrente de um ónus de clara, precisa e expressa delimitação e especificação do preceito legal ou da interpretação normativa cuja inconstitucionalidade é arguida, de modo a que o tribunal recorrido se possa aperceber que tem uma questão de constitucionalidade para decidir e qual o seu objeto.
Neste caso a suscitação efetuada não foi feita de modo a permitir que o tribunal recorrido se apercebesse da questão de constitucionalidade que agora vem colocada ao Tribunal Constitucional, como aliás é confirmado pelo facto da decisão recorrida não a ter apreciado, pelo que não pode ser conhecido o mérito desta questão devido ao incumprimento deste requisito processual.
3. Do conhecimento da constitucionalidade da interpretação do artigo 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal.
O Recorrente pretende a fiscalização da alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é imperativo para o cumprimento do referido ónus e por conseguinte para que o tribunal superior conheça do recurso de matéria de facto, a especificação dos concretos trechos dos depoimentos que infirmam a decisão recorrida nas conclusões.
O Recorrente diz que apenas suscitou esta questão de constitucionalidade no requerimento em pediu a correção do acórdão recorrido, porque foi surpreendido pela aplicação do critério questionado.
Como já acima se referiu, a peça em que se pediu a correção da decisão que aplicou o critério normativo cuja constitucionalidade é posta em causa não é idónea para acolher uma suscitação atempada.
Por outro lado, o arguido, antes de ser proferida a decisão recorrida, foi convidado a aperfeiçoar as conclusões das alegações de recurso, de modo a nas mesmas sejam especificadas as concretas provas que, na sua tese, impõem decisão diversa da recorrida, sob pena de, não o fazendo, naquela medida não se conhecer do recurso, pelo que teve oportunidade de se aperceber que o Tribunal da Relação do Porto perfilhava o entendimento cuja constitucionalidade agora pretende questionar, não sendo por isso possível afirmar que a sua aplicação pela decisão recorrida constituísse uma surpresa que o dispensava da suscitação prévia de tal questão.
4. Do conhecimento da constitucionalidade das interpretações dos artigos 358.º, n.º 1 e 3, e 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal
O Recorrente também arguiu a inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 358.º, n.º 1 e 3, e 424.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/07, no sentido de que incumbe ao Tribunal da Relação comunicar ao arguido uma alteração da qualificação jurídica e proferir decisão condenando-o por essa nova qualificação jurídica, e da interpretação dos mesmos preceitos no sentido de que, comunicada uma alteração da qualificação jurídica do Tribunal da Relação para figura criminal mais grave, em recurso interposto apenas pelo arguido, a subsequente determinação da medida da pena, escolha da pena e ponderação dos pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena não incumbe à 1 instância.
Tais questões apenas foram suscitadas em sede de requerimento de correção do acórdão recorrido, alegando o arguido que foi surpreendido pela sua aplicação pela decisão recorrida.
Reafirma-se que a peça em que se pede a correção que aplicou o critério normativo cuja constitucionalidade é posta em causa já não é idónea para acolher uma suscitação atempada.
E, tendo o arguido, antes de ser proferida a decisão recorrida, beneficiado da oportunidade de se pronunciar sobre a possibilidade do Tribunal da Relação alterar a qualificação jurídica do crime pelo qual havia sido condenado na 1.ª instância, não é possível afirmar que a efetivação dessa alteração tenha constituído uma surpresa que o dispensasse da suscitação prévia das questões de constitucionalidade agora colocadas ao Tribunal Constitucional.
5. Conclusão
Pelas razões expostas verifica-se que o arguido, relativamente a qualquer uma das questões de constitucionalidade colocadas ao Tribunal Constitucional, não cumpriu o requisito de suscitação adequada perante o Tribunal recorrido dessas mesmas questões, quando era exigível que o tivesse feito, pelo que não pode ser conhecido o mérito deste recurso, devendo ser proferida decisão sumária nesse sentido, nos termos do artigo 78.º - A, n.º 1, da LTC.”
O arguido reclamou desta decisão com os seguintes argumentos:
Na decisão sumária proferida, entendeu o Tribunal Constitucional que o ora Reclamante não cumpriu, relativamente a cada uma das questões de constitucionalidade colocadas, o requisito de suscitação adequada perante o Tribunal recorrido dessas mesmas questões, decidindo então pelo não conhecimento do mérito deste recurso, com a qual não concorda o Arguido pelas razões que a seguir se aduzem:
1 - Do conhecimento da constitucionalidade da interpretação do artigo 187º nº 1 do Código de Processo Penal (CPP de ora em diante);
Entendeu o Venerando Tribunal Constitucional que o Recorrente não deu cumprimento a um ónus de clara, precisa e expressa delimitação e especificação do preceito legal ou da interpretação cuja inconstitucionalidade é arguida, de modo a que o tribunal recorrido se pudesse aperceber que tinha uma questão de constitucionalidade para decidir e qual o seu objeto, pois que,
“(…) O Arguido não questiona a constitucionalidade do critério que está subjacente à decisão de não considerar nulo, por falta de fundamentação, o despacho proferido pelo juiz de instrução criminal, mas sim a conformidade constitucional deste mesmo despacho, por não se encontrar devidamente fundamentado”.
Ora entende o aqui Reclamante que delimitou de forma suficientemente clara e precisa o preceito legal e a interpretação normativa cuja inconstitucionalidade é arguida, de forma a que o tribunal recorrido dela tivesse conhecimento e tomado decisão quanto ao seu objeto.
Na verdade, tal questão, além de outras, foi materialmente suscitada em sede de primeira instância, no primeiro momento processual em que o Arguido interveio após ser confrontado com o despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal, tendo o Tribunal de Primeira Instância dela tomado conhecimento e decidido em sede de sentença pela não existência de qualquer inconstitucionalidade.
Posto isto, em sede de recurso interposto para b Tribunal da Relação do Porto, suscitou novamente o Arguido a predita inconstitucionalidade, percebendo-se pelos pontos 11 a 18 das suas conclusões que o que se pretendia era que o Tribunal conhecesse e decidisse se a interpretação do artigo 187º nº 1 deve ser lida à luz dos arts. 97 nº 5 do CPP e 32º nº 8, 34º nº 4 e 205º nº 1 todos da Constituição da República Portuguesa, e não como fez o Tribunal de Primeira Instância no sentido em que, se basta para dar cumprimento à fundamentação do despacho autorizador da interceção e gravação das conversações ou comunicações telefónicas, a mera remissão de forma genérica para os despachos anteriores, sem determinação em concreto do despacho em que faz repousar a sua fundamentação.
Entende por isso o Arguido, ora reclamante, que deu satisfação adequada perante o Tribunal da Relação do Porto, ao ónus de clara e precisa delimitação da questão de constitucionalidade suscitada para que a mesma tivesse sido por este conhecida. Aliás, o mesmo Tribunal da Relação do Porto, conheceu da questão da constitucionalidade suscitada no ponto 11 das conclusões do Recorrente, pronunciando-se de forma favorável ao Recorrente.
Ora, o direito de acesso ao direito e aos Tribunais em geral abrange igualmente o direito ao recurso para o Tribunal Constitucional. 'O direito ao processo, conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva, impõe, por conseguinte, a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de 'requisitos processuais', se manifeste numa decisão que, afinal, não consubstancia mais do que uma simples denegação de justiça.'
Pelo que, a adoção de uma interpretação normativa de cariz tão formalista que importe o não conhecimento pelo Tribunal Constitucional da questão de constitucionalidade aqui suscitada, redundará na imposição de um ónus de tal forma desproporcionado ao recorrente que acabará por afetar inelutavelmente a garantia de acesso à justiça e aos tribunais mediante um processo equitativo (cfr. JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS in 'CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA ANOTADA' - TOMO I, pág. 191 e TOMO III, pág. 758).
2 - Do conhecimento da constitucionalidade da interpretação do artigo 412º nº 3, al. b) do CPP;
Para o não conhecimento da questão da constitucionalidade aqui suscitada, estribou o Tribunal a sua decisão sumária em dois considerandos:
a) '(...) a peça em que se pediu a correção da decisão que aplicou o critério normativo cuja constitucionalidade é posta em causa não é idónea para acolher uma suscitação atempada.'
b) '(...) o arguido, antes de ser proferida a decisão recorrida, foi convidado a aperfeiçoar as conclusões das alegações de recurso, pelo que teve oportunidade de se aperceber que o Tribunal da Relação do Porto perfilhava o entendimento cuja constitucionalidade agora pretende questionar, não sendo por isso possível afirmar que a sua aplicação pela decisão recorrida constituísse uma surpresa que o dispensava da suscitação prévia de tal questão.”
Efetivamente, o Recorrente foi convidado ao aperfeiçoamento das suas conclusões de modo a especificar as concretas provas que no seu entendimento impunham uma decisão diversa da recorrida, mas já não se concede que, a partir desse instante, teve oportunidade para se aperceber do entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação do Porto e cuja constitucionalidade agora pretende questionar.
A verdade é que o recorrente respondeu ao convite para melhor especificação das concretas provas que mereciam decisão diversa da recorrida, apoiando-se em jurisprudência sobre a matéria quer do Tribunal Constitucional (veja-se a título exemplificativo o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 485/2008 in Diário da República 2.ª Série, de 11 de novembro de 2008), quer do Supremo Tribunal de Justiça.
E aperfeiçoou-o indicando as específicas provas de forma sintética nas conclusões que, no seu modesto entendimento, impunham decisão diversa da recorrida, considerando que já tinha procedido à especificação por transcrição dos concretos trechos dos depoimentos que infirmariam a decisão recorrida na motivação do recurso. É que, a não ser assim, estaríamos perante uma mera duplicação do teor literal dos concretos trechos dos depoimentos transcritos na motivação, já que estes são insuscetíveis de resumo, pelo que o entendimento do recorrente foi aperfeiçoa-las o melhor que pôde e sabe. Ou seja, jamais passou pelo pensamento do recorrente, ora reclamante, nem tal se pode colher ou alcançar do convite ao aperfeiçoamento que lhe foi remetido porquanto o mesmo se limitou a reproduzir o preceito legal, que o Tribunal da Relação pretendesse que o recorrente transcrevesse novamente para as conclusões os depoimentos transcritos já na motivação do recurso apresentado.
Ora, se o despacho de convite ao aperfeiçoamento não continha a exigência para que o recorrente procedesse à transcrição dos depoimentos já cima transcritos, não pode o Tribunal Constitucional considerar sem mais que o ora reclamante teve oportunidade de se aperceber do entendimento cuja constitucionalidade pretende questionar por via do recurso interposto.
Justamente por isso é que o aqui Reclamante, entende ter sido surpreendido com a decisão vertida no acórdão recorrido e da qual reclamou, na primeira oportunidade processual que teve, suscitando a questão da constitucional idade desse entendimento, e que pretende seja agora conhecida.
Razão pela qual, também aqui se reclama da decisão sumária de não conhecimento desta questão, por, salvo o devido respeito, não concordância com a mesma.
3 - Do não conhecimento da constitucionalidade das interpretações dos artigos 358º nº 1 e 3, e 424º nº 3 todos do CPP;
Decidiu ainda o Tribunal Constitucional pelo não conhecimento das questões aqui suscitadas porquanto, por um lado, “(...) a peça em que se pede a correção que aplicou o critério normativo cuja constitucionalidade é posta em causa já não é idónea para acolher uma suscitação atempada (...)' e, por outro, 'tendo o arguido, antes de ser proferida a decisão recorrida, beneficiado da oportunidade de se pronunciar sobre a possibilidade do Tribunal da Relação alterar a qualificação jurídica do crime pelo qual havia sido condenado em 1ª instância, não é possível afirmar que a efetivação dessa alteração tenha constituído uma surpresa que o dispensasse da suscitação prévia das questões de constitucionalidade agora colocadas ao Tribunal Constitucional.”
Cumpre antes de mais, salientar o seguinte: não é a alteração da qualificação jurídica para figura criminal mais grave que constituiu para o ora reclamante decisão surpresa, mas a decisão subsequente a essa alteração, ou seja, a prolação de subsequente decisão condenatória, sem que a mesma baixasse à primeira instância para que esta procedesse, dentro do novo enquadramento jurídico, ao direito ao contraditório e, subsequente, determinação da medida da pena, escolha da pena e ponderação dos pressupostos de aplicação da suspensão da execução da pena. É que o Tribunal da Relação do Porto poderia proceder, como fez, à alteração da qualificação jurídica para figura criminal mais grave, mas, de seguida, decidir no sentido que os autos baixassem à primeira instância, o que não o fez e, nesta justa medida, constituiu decisão surpresa para o aqui reclamante.
Com efeito, o próprio Tribunal da Relação do Porto, no âmbito do processo nº 7030/05-1 (1ª secção), com origem nos Juízos Criminais do Porto, 3º juízo, 3ª secção com o nº de processo 224/03.9PTPRT, decidiu em conferência que, '(...) num ponto, porém o requerente tem razão, e é quando diz que a comunicação da alteração jurídica a que alude aquele despacho deve ser feita pessoalmente ao requerente (e não apenas, como aconteceu nestes autos, ao seu ilustre mandatário) e que deve ser o tribunal recorrido a comunicar tal alteração, pois que é imperativo, no caso, reabrir a audiência e dar ao arguido a oportunidade de apresentar defesa e provas em relação àquela pena acessória. O que, de resto, sempre se imporia, em obediência ao respeito pelo direito ao recurso (direito ao duplo grau de jurisdição) (...)”.
Neste contexto, atendendo ao Acórdão supra referido, naturalmente que foi o recorrente surpreendido com a decisão condenatória proferida no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, já que, estava plenamente convicto de que os autos baixariam à primeira instância e não que fosse proferida decisão condenatória na sequência da alteração da qualificação jurídica.
Isto é, o recorrente confiou, louvando-se nas suas decisões anteriores, que o Tribunal da Relação do Porto perfilhasse o mesmo entendimento na questão de constitucionalidade ora suscitada. E não o tendo feito, a decisão condenatória subsequente constituiu uma decisão surpresa com a qual não contava o aqui reclamante, o que justif.ca a libertação deste desse ónus de antecipação.
Motivo pelo qual, suscitou a presente questão de constitucionalidade no primeiro momento processual em que teve oportunidade para tal, isto é, no requerimento de correção / aclaração do acórdão.
Termos em que devem Vªs Exas dar provimento à reclamação ora deduzida e a final, conhecer da constitucionalidade das questões aqui suscitadas, quer porque o ónus de clara e precisa delimitação da questão da constitucionalidade foi suficientemente cumprido, quer porque não era exigível ao recorrente, aqui reclamante, que antevesse o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação por forma a não ficar dispensado da suscitação prévia das questões ora suscitadas.”
O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
Fundamentação
O Recorrente vem manifestar a sua discordância com a decisão sumária que não tomou conhecimento do recurso por si interposto para o Tribunal Constitucional, defendendo que suscitou adequadamente perante o tribunal recorrido a primeira questão de constitucionalidade por si indicada no requerimento de interposição de recurso, e que, quanto às restantes questões, a sua não suscitação se encontra justificada pela surpresa que constituiu a aplicação das normas impugnadas.
Ora, relativamente à primeira questão de constitucionalidade, da leitura das alegações de recurso dirigidas ao Tribunal da Relação de Lisboa resulta, sem margem para dúvidas, que o Recorrente se limitou a questionar a constitucionalidade do despacho proferido na primeira instância, nunca tendo colocado uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa ao Tribunal da Relação.
O mesmo sucede nas conclusões dessas alegações, designadamente nas conclusões 16.º a 18.º que respeitam ao despacho em causa.
Já o conteúdo das conclusões 11.º a 15.º respeitam a questão diferente daquela que é agora colocada ao Tribunal Constitucional.
Daí que seja correta a afirmação que o Recorrente não suscitou ao tribunal recorrido a questão de constitucionalidade normativa que agora pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e, por isso, aquele tribunal não a conheceu, conforme resulta da leitura da decisão recorrida.
Quanto à segunda questão colocada no requerimento de interposição de recurso, tendo o Tribunal da Relação convidado o arguido, antes de ser proferida a decisão recorrida, a aperfeiçoar as conclusões das alegações de recurso, de modo a nas mesmas serem especificadas as concretas provas que, na sua tese, impunham decisão diversa da recorrida, sob pena de, não o fazendo, naquela medida não se conhecer do recurso, permitiu ao Recorrente antever que, caso não especificasse nas conclusões do recurso os trechos dos depoimentos que na sua opinião infirmavam a decisão sobre a matéria de facto, o recurso não seria conhecido nessa parte, pelo que este teve oportunidade de nessa altura suscitar a inconstitucionalidade de tal interpretação. Alicerçando o Recorrente a sua discordância quanto à decisão da matéria de facto nos depoimentos prestados em audiência, a especificação das concretas provas só podia ser o relato desses depoimentos, na parte relevante, na ótica do recorrente. Não tendo efetuado a suscitação da questão de constitucionalidade nesse momento, não pode o recurso ser conhecido nesta parte.
No que respeita às terceira e quarta questões de constitucionalidade colocadas no requerimento de interposição de recurso, tendo o Tribunal da Relação notificado o arguido para se pronunciar sobre a possibilidade desse tribunal proceder à qualificação jurídica do crime pelo qual havia sido condenado na 1.ª instância, permitiu ao arguido antever que era possível que aquele tribunal viesse a sancionar o arguido por crime diferente daquele pelo qual havia sido condenado na 1.ª instância, pelo que este teve oportunidade de, nessa altura, suscitar perante o tribunal recorrido a inconstitucionalidade de tal critério normativo. Não o tendo feito, não pode também o recurso ser conhecido nessa parte.
Por estas razões improcede a reclamação apresentada.
Decisão
Pelo exposto indefere-se a reclamação apresentada por A..
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de maio de 2013. – João Cura Mariano – Ana Guerra Martins – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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