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Processo n.º 812/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, veio A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. O recorrente enunciou o objeto do recurso, nos termos seguintes:
“ART.º 400.º, n.º 1 – al. f) do C.P.P., no sentido de que é interpretação restritiva e inconstitucional por violação expressa do art.º 32.º, n.º 1 da C.R.P.: “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“4. O recorrente não enuncia, no requerimento de interposição do recurso, a concreta norma ou interpretação normativa que extrai da disposição legal que identifica e cuja sindicância pretende, parecendo, assim, esquecer que os conceitos de norma e preceito legal não são sobreponíveis.
Incumpre o recorrente, desta forma, o disposto no n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC.
Na verdade, por força do referido preceito, tem este Tribunal entendido que sobre a parte, que pretenda questionar a constitucionalidade de uma norma ou de determinada interpretação normativa, impende o ónus de enunciar expressamente tal norma ou interpretação, em termos tais que o Tribunal Constitucional, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, possa reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral fiquem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
A omissão de menção, autónoma e especificada, de tal elemento não é, por natureza, abstratamente insuprível.
Porém, em obediência aos princípios de economia e celeridade processuais, não é equacionável, in casu, facultar ao recorrente a possibilidade de suprir tal deficiência, mediante o convite ao aperfeiçoamento a que se reporta o n.º 6 do artigo 75.º-A da LTC, porquanto, ainda que o mesmo aperfeiçoasse, de forma satisfatória, o requerimento de interposição do recurso, sempre o mesmo não prosseguiria, por falta de pressupostos de admissibilidade do recurso, como melhor analisaremos.
5. Convém acentuar que a deficiência assinalada não poderia ser suprida com recurso à análise das alegações juntas pelo recorrente, em novembro de 2011.
É que, face ao disposto no n.º 5 do artigo 78.º-A da LTC, resulta incontroverso que a apresentação de alegações foi prematura. Na verdade, as alegações de recurso apenas devem ser apresentadas pelo recorrente, após prolação de despacho do relator, nesse sentido (cfr., em conformidade, os Acórdãos deste Tribunal Constitucional, com os n.os 39/99, 15/01, 61/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Assim, não poderá a aludida peça processual ser tida em consideração, nesta fase, para nenhum efeito.
6. Feito este esclarecimento prévio, detenhamo-nos sobre os pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, atendendo à especificidade do concreto tipo de recurso em análise nos autos.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem requisitos cumulativos da admissibilidade do recurso, da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
7. Comecemos por analisar este último pressuposto, que se consubstancia na exigência de que o recorrente coloque a questão de constitucionalidade, que pretende ver dirimida, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara, criando para esse tribunal um dever de pronúncia sobre tal matéria.
Torna-se indispensável, neste âmbito, uma precisa delimitação e especificação do objeto de recurso – necessariamente, de natureza normativa - e uma fundamentação, minimamente concludente, com um suporte argumentativo que inclua a indicação das razões justificativas do juízo de inconstitucionalidade defendido, de modo a tornar exigível que o tribunal a quo se aperceba e se pronuncie sobre a questão jurídico-constitucional, antes de esgotado o seu poder jurisdicional (cfr. v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 708/06 e 630/08, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
No presente caso, não obstante o recorrente não enunciar, no requerimento de interposição do recurso, o específico critério normativo, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, expressamente reporta-o ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal (CPP).
Assim, não estando em causa qualquer interpretação normativa insólita ou surpreendente que, sendo adotada de forma imprevisível pelo tribunal a quo, poderia legitimar uma não suscitação prévia da mesma, deduz-se que a admissibilidade do presente recurso está dependente da circunstância de o recorrente ter problematizado a constitucionalidade de um critério normativo, extraível do referido preceito, junto do tribunal a quo, antes de esgotado o seu poder jurisdicional.
Ora, analisando a reclamação – peça processual em que o recorrente deveria ter suscitado ou renovado a suscitação da questão de constitucionalidade, que pretendesse ver apreciada em ulterior recurso para o Tribunal Constitucional – conclui-se que, ao contrário do que é referido no requerimento de interposição do recurso, em nenhum momento o recorrente antecipa e enuncia qualquer questão de constitucionalidade normativa extraível do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP.
Pelo exposto, não tendo o recorrente cumprido o aludido ónus de suscitação prévia, não colocando, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer questão de constitucionalidade normativa reportada ao preceito identificado, enunciando-a, em termos autónomos, de forma a criar para o tribunal a quo um específico dever de pronúncia, sempre estaria definitivamente prejudicada a possibilidade de vir, ulteriormente, interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
Nestes termos, face ao caráter cumulativo dos pressupostos de admissibilidade do recurso, demonstrado que se encontra o incumprimento do ónus de suscitação prévia, torna-se ociosa a discussão sobre a verificação dos restantes, concluindo-se, desde já, pelo não conhecimento do objeto do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. Refere o reclamante que, ao contrário do que se refere na decisão sumária reclamada, cumpriu o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, perante o tribunal a quo.
Esclarece que o objeto do recurso é a interpretação da norma plasmada no artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, segundo a qual é irrecorrível o acórdão do Tribunal da Relação, que mantém com voto de vencido a decisão da 1.ª Instância, por, desta forma, se entender ser decisão confirmatória uma decisão que verdadeiramente não confirma a anterior.
Acrescenta o reclamante que, se existiam deficiências no requerimento de interposição de recurso, deveria o Tribunal ter dirigido ao reclamante um convite ao aperfeiçoamento, dando-lhe a oportunidade de suprir as mesmas.
Nestes termos, conclui pedindo que seja julgada procedente a presente reclamação e, em consequência, se siga a ulterior tramitação tendente ao conhecimento do objeto do recurso.
5. O Ministério Público responde à reclamação, pugnando pelo seu indeferimento.
Argumenta que o reclamante não cumpriu adequadamente o ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade que pretendia ver apreciada, não identificando, na reclamação deduzida nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal, – peça processual em que deveria ter cumprido o aludido ónus – a exata dimensão normativa alegadamente inconstitucional, limitando-se a sustentar a tese da recorribilidade e invocando, em defesa da mesma, princípios constitucionais.
Mais refere que, nesta fase processual, se continua a desconhecer o exato sentido interpretativo que o reclamante questiona, nomeadamente se corresponde ao sentido literal do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, ou ao entendimento de que o acórdão da Relação é confirmatório, apesar de ter sido proferido com um voto de vencido.
II - Fundamentos
6. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que os argumentos aduzidos pelo reclamante não infirmam a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida, consubstanciando-se sobretudo numa manifestação de discordância face ao sentido de tal decisão.
Na verdade, pretende o reclamante infirmar a conclusão da decisão sumária, quanto ao não cumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade.
Para demonstrar a sua tese, o reclamante remete para as seguintes menções, constantes da reclamação, apresentada nos termos do artigo 405.º do Código de Processo Penal:
“ Poderá esta disposição excecional comportar o sentido restritivo do direito ao recurso que lhe é dada pelo Tribunal a quo? A resposta não poderá deixar de ser negativa.”
“Por outro lado, ressalvando sempre o devido respeito por diversa posição, há ou parece haver uma certa petição de princípio na tese proposta, ao assentar em que, nos casos como o caso sujeito, dado que não houve alteração da qualificação jurídica do crime em causa, existindo no entanto outras alterações, que a decisão da Relação é sem dúvida mais confirmativa, limitando o direito fundamental de recorrer de uma medida privativa de liberdade do arguido, ou seja depois do tribunal de recurso já não seria possível ir para além da pena em que as instâncias convergiram.”
“E não parece aceitável, do ponto de vista do direito constitucional da igualdade de armas, logrando portanto, duvidosa cobertura nas atinentes previsões, entre outras, nomeadamente a do artigo 32.º,nº 1 da Constituição”
‘’Na verdade, na interpretação proposta, verificando-se dupla conforme, isto é, convergência de posições entre as instâncias quanto à condenação, só à acusação fica reservado o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, direito que, assim, é incompreensivelmente negado ao condenado, o que, privilegiando sem razão aparente a parte acusadora, coloca a defesa numa injustificada situação de inferioridade e incomportável desigualdade processual.”
“É que, por um lado, não se vê onde possa residir a reclamada igualdade de posições processuais ou de armas, quando o direito ao recurso do arguido é subtraído à sua própria avaliação e fica dependente de ponderação e avaliação alheias, e por outro, tratando-se, ali – na dupla conforme absolutória – de preservar a absolvição, dá-se, por essa via, corpo visível à regra da liberdade consagrada, nomeadamente, no art.º 27.º, nº 1 da Lei Fundamental – e, sobretudo, a garantia constitucional de processo criminal, decorrente da dignidade da pessoa humana (art.º 1.º), de que “todo o arguido se presume inocente (art.º 32.º, nº 2).”
“Não parece razoável, com efeito, até do ponto de vista constitucional do eficaz direito ao recurso, condicionar a sua existência, afinal, ao concreto entendimento das instâncias, que, para o bem e para o mal, teriam ao seu alcance o poder imenso de decidir, em última instância, da recorribilidade ou não da decisão por elas proferida.”
Os excertos transcritos, porém, apenas corroboram que o reclamante, em nenhum momento, enunciou, de forma clara e precisa, um critério normativo extraível do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, em termos tais que o Tribunal Constitucional, ulteriormente, no caso de concluir pela sua inconstitucionalidade, pudesse reproduzir tal enunciação, de modo a que os respetivos destinatários e operadores do direito em geral ficassem cientes do concreto sentido normativo julgado desconforme com a Lei Fundamental.
Cumpre ainda salientar que o incumprimento do ónus de suscitação prévia da questão de constitucionalidade é insuprível - ao contrário do que parece pressupor o reclamante – pelo que não faria qualquer sentido, no caso concreto, dirigir ao reclamante um convite ao aperfeiçoamento.
Na verdade, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.os 5 e 6, da LTC, só tem sentido útil quando faltam apenas meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito - carecendo, ao invés, de utilidade quando faltam os pressupostos de admissibilidade do recurso – enunciados especificamente no artigo 70.º e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC - que não podem ser supridos deste modo. Nesta última hipótese, em vez de proferir um convite ao aperfeiçoamento – que determinaria a produção de processado inútil, em prejuízo dos princípios de economia e celeridade processuais – pode o relator proferir logo decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso (cfr., neste sentido, acórdãos deste Tribunal Constitucional n.os 99/00, 397/00, 264/06, 33/09 e 116/09, disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt).
Nestes termos, pelo essencial da fundamentação da decisão sumária, conclui-se pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
7. Pelos fundamentos expostos, decide-se confirmar a decisão sumária reclamada, proferida no dia 16 de janeiro de 2013, e, em consequência, indeferir a reclamação apresentada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 27 de fevereiro de 2013. – Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.
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