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Processo n.º 672/2012
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por sentença do Juízo de Família e Menores da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste, foi atribuído a A., recorrida nos presentes autos em que é recorrente B., o direito ao arrendamento da “casa morada da família”, bem próprio do segundo, cuja utilização tinha sido atribuída à requerente no acordo de divórcio por mútuo consentimento. O ora recorrente impugnou esta decisão invocando, designadamente, a inconstitucionalidade do artigo 1793.º do Código Civil «na parte em que possibilita ao juiz decretar a constituição de uma relação arrendatícia, a favor de um dos cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge, desde que essa constituição seja contra a vontade deste» (fls. 235), por violação do artigo 62.º da Constituição nas dimensões do direito de propriedade enquanto direito de uso e fruição.
O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 3 de novembro de 2011 (fls. 257 e seguintes), confirmou a decisão recorrida, apenas alterando o montante da renda mensal para 420 euros. Quanto ao problema de constitucionalidade invocado pelo recorrente, disse o seguinte:
“(…)
Na 2.ª conclusão da alegação de recurso, o apelante levanta a questão da inconstitucionalidade do n.º 1 do art. 1793.º do C.C. – por violação do art. 62.º da C.R.P. – na parte em que possibilita ao juiz decretar a constituição de uma relação arrendatícia, a favor de um dos cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge, desde que essa constituição seja contra a vontade deste, na medida em que tolhe o direito de propriedade, nas suas dimensões de direito de uso e fruição.
Salvo melhor entendimento, não assiste razão ao apelante.
Dispõe o art. 1793.º n.º I do Cód. Civil que pode o tribunal dar de' arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
Por seu turno, preceitua o art. 62.º n.º 1 da Lei Fundamental que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
Dispondo o art. 65.º n.º 1 do mesmo diploma legal que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
Sendo que a família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal dos seus membros - cfr. art. 67.º n.º 1 da citada lei Fundamental.
Em anotação ao art. 1793.º do Cód, Civil, referem Pires de Lima e Antunes Varela, na citada obra, que '... É, todavia, uma das normas integradoras do sistema global arquitectado pela Reforma de 1977 para protecção da habitação da família, um pouco na sequência do pensamento programático da acção do Estado delineado nos artigos 65.º e 67.º da Constituição da República ...'.
Tais normas constitucionais - inseridas nos direitos e deveres económicos, sociais e culturais - são de natureza programática por serem de aplicação diferida e mediata.
Como escreveu Jorge Miranda, in Direito Constitucional, AAFD de Lisboa, 1977, pág. 63, ' ... tais normas implicam a colaboração do legislador ordinário a cujo critério fica a formulação das regras capazes de as tornar exequíveis por meio de um poder discricionário; e os cidadãos não as podem invocar desligadas destas regras de carácter legal.. .'.
Em anotação ao art. 65.º da C.R.P., Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, escreveram '... O direito à habitação deve prevalecer sobre o direito de uso e disposição da propriedade privada ... '.
Mais adiantam os mesmos constitucionalistas, em anotação ao art. 62.º da C.R.P. que ' ... sempre se terá de entender que o direito de propriedade está sujeito a muitas restrições. Além dos limites estabelecidos pela própria Constituição ... , deve entender-se que o direito de propriedade está indirectamente sob reserva das restrições estabelecidas por lei, dado que a Constituição remete em vários lugares para a lei ... '.
Ora, prevendo a dimensão normativa em análise (art. 1793.º n.º 1 do C.Civil) uma transferência do direito de uso e fruição da propriedade do imóvel (casa de morada de família) propriedade do requerido para o domínio da requerente, dando-a de arrendamento, tendo em vista garantir e proteger outros tantos direitos fundamentais dos cidadãos como a constituição e protecção da família e garantia do direito à habitação, conclui-se que essa dimensão normativa não viola qualquer daqueles preceitos constitucionais, designadamente, o art. 62.º da C.R.P., antes se articula numa perspectiva de proteger todos aqueles direitos merecedores de tutela constitucional.
Por tudo quanto se deixou dito, a norma do art. 1793.º do C.Civil, embora excepcional, porque contraria o princípio geral de liberdade contratual – como refere Pinto Furtado, in Arrendamentos Vinculísticos, 1984, pág. 38, '... o arrendamento previsto neste artigo não reveste a natureza jurídica de contrato sendo de caracterizar como um arrendamento judicial, um acto judicial...' - não é inconstitucional, como sustenta o apelante, uma vez que não viola as referidas normas-disposição (sejam elas imediatamente preceptivas sejam programáticas) nem os princípios constitucionais, sejam eles expressos (normas-princípio) sejam eles apenas implícitos.
(…).”
Na sequência de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça que não foi admitido, o recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações posteriores (Lei do Tribunal Constitucional – LTC), para apreciação do artigo 1793.º, n.º 1 do Código Civil, na medida em que permite que o tribunal dê de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quando esta seja bem próprio do outro face à protecção constitucional do direito de propriedade constante do artigo 62.º da Lei Fundamental.
3. Notificadas as partes para alegações, o recorrente concluiu nos seguintes termos:
“Conclusões:
1. A disposição, contida no n.º 1 do art.º 1793.ºdo CC, na parte em que possibilita ao juiz decretar a constituição de uma relação arrendatícia, a favor de um dos cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge, desde que essa constituição seja contra a vontade deste, é inconstitucional, por violação do art.º 62.º da CRP, na medida, designadamente, em que tolhe o direito de propriedade, nas suas dimensões de direito de uso e fruição.
2. Mesmo que se entenda que a criação da solução legislativa, constante do n.º 1 do art.º 1793º do CC, na parte aqui questionada, se configura como uma resposta do legislador ordinário à imposição constitucional do art.º 65º da CRP, não se pode aceitar que, a pretexto de promover o seu cumprimento, em vez de ser indutor ou promotor de habitação, promovendo e desenvolvendo politicas que levem ao aumento da oferta habitacional, venha o legislador ordinário, para solucionar uma necessidade pontual de habitação, a sacrificar os interesses legítimos da propriedade licitamente constituída, sacrificando, assim, o direito de propriedade privada, enunciado no art.º 62º da CRP, que, de acordo com a regra do art. o 17.º segue o regime dos direitos, liberdades e garantias, abrangido na grande parte relativa aos direitos e deveres fundamentais.
3. Não se pode aceitar que o legislador ordinário, para superar uma situação de oferta de habitação insuficiente, opte por, adoptando a solução mais fácil e mais barata, impor, aos particulares, que se encontrem em determinadas circunstâncias, que sejam eles a suportar os custos da angariação de casas para terceiros, certos terceiros.
4. A satisfação, pelo legislador, da imposição constitucional, que sobre ele recai, de planear, adoptar e executar providências tendentes a criar as condições necessárias para todos poderes ter habitação condigna, não pode ser feita através da ablação do direito de propriedade privada, um direito constitucionalmente catalogado como um direito fundamental.
5. Não se afigura legítimo, em nome da função social da propriedae, obrigar os proprietários a sub-rogarem-se ao Estado no cumprimento de incumbências infungíveis que, por expresso imperativo constitucional, sobre ele recaem, pois o direito à habitação não implica que os proprietários das casas sejam compelidos a entregá-las a quem as não tem
6. Por outro lado, o direito à habitação, do art.º 65º da CRP, não pode prevalecer sobre o direito de uso e disposição de propriedade privada, a que se refere o art.º 62º da CRP, porque, simplesmente, um e outro operam em planos distintos, planos esses que não se comunicam.
7. O direito à habitação configura-se como uma mensagem que o legislador constitucional dirige ao legislador ordinário para que este integre, nas suas politicas concretas, a promoção de condições para que aquele desiderato se cumpra, enquanto que o direito de propriedade, como direito subjectivo que é, opera em relações jurídicas concretamente estabeleci das entre o seu titular e terceiros, sendo, portanto, um direito real de gozo que os particulares exercitam, nas suas relações com terceiros, sejam eles particulares ou o Estado, sobretudo através do seu efeito erga omnes.
8. Por outro lado, quando o art.º 65.º da CRP preceitua que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, não está a constituir, na esfera jurídica de cada um dos portugueses, um direito subjectivo a uma casa, com dimensão adequada, para sua habitação, e da sua família.
9. Além disso, mesmo que se aceite que todos devem ter direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, como se estabelece no desiderato constitucional, a consecução desse objectivo programático constitucional não pode ser logrado à custa do ex-cônjuge proprietário.
10. Ao aplicar-se, aos autos, o nº 1 do art.º 1793º do CC, foi violado o art. º 62º da CRP, uma vez que aquele normativo é, em parte, inconstitucional.
Nestes termos, e nos de mais direito que V. Ex. as doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser declarada a inconstitucionalidade do dispositivo do nº 1 do art.º 1793º do CC, na parte em que possibilita ao juiz decretar a constituição de uma relação arrendatícia, a favor de um dos cônjuges ou ex-cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge, desde que essa constituição seja contra a vontade deste, na medida, designadamente, em que tolhe o direito de propriedade, nas suas dimensões de direito de uso e fruição e não fixa, como contrapartida, o pagamento de justa indemnização”.
A recorrida não contra-alegou.
Cumpre decidir.
II. Fundamentos
4. A norma submetida a apreciação de constitucionalidade integra-se no dispositivo do artigo 1793.º do Código Civil, cuja redacção é a seguinte (desde o Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro):
“Artigo 1793.º
Casa de morada da família
Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges, e o interesse dos filhos do casal.
O arrendamento previsto no número anterior fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, mas o tribunal pode definir as condições do contrato, ouvidos os cônjuges, e fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio, quando circunstâncias supervenientes o justifiquem.
O regime fixado, quer por homologação do acordo dos cônjuges, quer por decisão do tribunal, pode ser alterado nos termos gerais da jurisdição voluntária.”
Esta disposição faz parte do elenco das medidas adoptadas na reforma do Direito de Família, de 1977, para protecção da “casa de morada de família” (expressão introduzida no Código Civil por essa Reforma), em que se enquadram, também, os artigos 1682.º-A, 1682.º-B, 1775.º n.ºs 2 e 3, e 2103.º-A) do mesmo Código. Apesar de já se ter afirmado deste preceito que ele é “a peça mais delicada do sistema” e “em certos aspectos revolucionário” (P. de Lima e ª Varela, Código Civil Anotadao, Vol IV, 2ª ed., pág. 569), o Tribunal apenas foi chamado a apreciar a questão da sua extensão às situações resultantes de união de facto de que haja filhos menores (Acórdão n.º 1221/96). Actualmente, o n.º 4 do artigo 4.º da Lei n.º 7/2001, de 17 de Maio, tornou aplicável o artigo 1793.º do Código Civil à união de facto “se o tribunal entender que tal é necessário, designadamente tendo em conta, consoante os casos, o interesse dos filhos ou do membro sobrevivo”.
As medidas respeitantes à “casa de morada de família” respeitam à “política de família com caracter global e integrado” que ao Estado incumbe executar para protecção da família [alínea g) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP]. Trata-se, de medidas que, de um modo geral, visam defender a estabilidade da habilitação familiar no interesse dos cônjuges e dos filhos, “tanto no decurso da vida conjugal em termos normais, como nas situações de crise provocadas, quer pelo divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens, quer pelo falecimento de algum dos cônjuges”, a que as regras de direito comum não dariam satisfação adequada ou conduziriam a resultados indesejáveis (Pereira Coelho, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122.º, pág. 137).
Para as situações em que a habitação principal da família se estabelece em casa tomada de arrendamento, é já antiga a consagração de medidas destinadas à protecção da habitação da família na eventualidade de dissolução da comunhão conjugal por morte, divórcio ou separação (cfr. a primitiva redacção dos artigo 1110.º do Código Civil, artigo 84.º do RAU e, actualmente, o artigo 1105.º do Código Civil, embora por via de diferente instrumento de técnica jurídica). Novidade do artigo 1793.º foi ter o legislador alargado a protecção à “casa de morada de família” a outras hipóteses que não a de esta se estabelecer em casa arrendada. Com efeito, ocorrendo divórcio ou separação judicial e residindo a família em casa que seja bem próprio de um dos cônjuges, segundo as regras comuns, o outro ficaria privado da habitação em que vivera, mesmo que fosse o mais carecido dessa habitação e os filhos do casal lhe tivessem sido confiados. O mesmo poderia suceder, em consequência da partilha subsequente ao divórcio, se a casa de morada de família constituísse bem comum.
Foi a necessidade de reconhecer a situação criada pelo casamento quanto à morada de família, para lá da dissolução do vínculo conjugal, que ditou o inovador regime do artigo 1793.º do Código Civil. O tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja bem comum do casal, quer próprio do outro (ou de ambos serem únicos comproprietários, ou de um ou ambos serem titulares de um direito no uso do qual se processava a utilização da casa para morada de família e cujo regime permita a constituição de um arrendamento, acrescenta Nuno Salter Cid, A Protecção da Casa de Morada de Família no Direito Português, pág. 322), considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um deles e o interesse dos filhos do casal. Não se trata de transmissão (para o cônjuge não arrendatário) ou de concentração (num dos cônjuges) do direito a um arrendamento pré-existente, por determinação judicial ou efeito da lei, como sucede no artigo 1105.º do Código Civil (cfr. anteriormente artigo 84.º do RAU). O que na norma em apreciação se permite é a constituição de uma relação locativa cujo facto genético é um acto de autoridade do Estado, uma decisão judicial. Há a constituição forçada de um arrendamento, que fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, designadamente a fixação e obrigação de pagamento de renda, podendo o tribunal definir, ouvidos os cônjuges, as condições do “contrato” (qualificação legal a que podem ser colocadas reservas: cfr. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, pág. 28), bem como “fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio quando circunstâncias supervenientes o justifiquem” (n.º 2 do artigo 1793.º).
5. Expostas as linhas essenciais do regime jurídico em que se insere a norma que constitui objecto do pedido, vejamos se procede a imputação de violação da tutela constitucional da propriedade, consagrada no artigo 62.º da Constituição, que à dimensão normativa em causa faz o recorrente. Argumenta o recorrente que “a constituição de uma relação arrendatícia, a favor de um dos cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge, desde que essa constituição seja contra a vontade deste, é inconstitucional, por violação do artigo 62.º da CRP, na medida, designadamente, em que tolhe o direito de propriedade, nas suas dimensões de direito de uso e fruição”. E que, mesmo que se entenda “que a criação da solução legislativa, constante do n.º 1 do artigo 1793º do Código Civil, na parte aqui questionada, se configura como uma resposta do legislador ordinário à imposição constitucional do artigo 65.º da CRP, não se pode aceitar que, a pretexto de promover o seu cumprimento, em vez de ser indutor ou promotor de habitação, promovendo e desenvolvendo politicas que levem ao aumento da oferta habitacional, venha o legislador ordinário, para solucionar uma necessidade pontual de habitação, a sacrificar os interesses legítimos da propriedade licitamente constituída, sacrificando, assim, o direito de propriedade privada, enunciado no artigo 62.º da CRP, que, de acordo com a regra do artigo o 17.º segue o regime dos direitos, liberdades e garantias, abrangido na grande parte relativa aos direitos e deveres fundamentais”.
É, portanto, por referência à tutela constitucional da propriedade que a questão vem discutida, pelo que nela vai centrar-se a resposta do Tribunal, começando por recordar o seu quadro geral de análise da “garantia” conferida pelo artigo 62.º da Constituição que no Acórdão n.º 421/09 expôs nos seguintes termos:
“[O Tribunal ] tem dito, em jurisprudência constante (e vejam-se, entre outros, os Acórdãos nºs. 44/99; 329/99; 205/2000; 263/2000; 425/2000; 187/2001; 57/2001; 391/2002; 139/2004; 159/2007, todos eles disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), que sendo afinal a “propriedade” um pressuposto da autonomia das pessoas, não obstante a inclusão do direito que lhe corresponde no título respeitante aos “Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”, alguma dimensão terá ele que permita a sua inclusão, pelo menos parcial, nos clássicos direitos de defesa, ou, para usar a terminologia da CRP, em alguma da sua dimensão será ele análogo aos chamados direitos, liberdades e garantias.
Que assim é demonstra-o, afinal, a própria História do constitucionalismo, em que a defesa da propriedade ocupou sempre um lugar central: no plano individual, contra as investidas arbitrárias dos poderes públicos no património de cada um; no plano colectivo, quanto à própria possibilidade da existência de uma sociedade civil diferenciada do Estado, e assente autonomamente na apropriação privada de uma ampla gama de bens que permita o estabelecimento de relações económicas à margem do poder político.
Resta saber qual a dimensão da garantia constitucional da propriedade que acolherá assim um radical subjectivo, que, pela sua estrutura, será análogo a um direito, liberdade e garantia. Ora, e quanto a esta matéria, decorrem da jurisprudência do Tribunal alguns pontos firmes, que poderão ser sintetizados como seguem. O primeiro ponto firme é o da não identificação entre o conceito civilístico de propriedade e o correspondente conceito constitucional: a garantia constitucional da propriedade protege – no sentido que a seguir se identificará – os direitos patrimoniais privados e não apenas os direitos reais tutelados pela lei civil, ou o direito real máximo. O segundo ponto firme é o da dupla natureza da garantia reconhecida no artigo 62.º, que contém na sua estrutura tanto uma dimensão institucional-objectiva quanto uma dimensão de direito subjectivo. O terceiro ponto firme dirá respeito ao âmbito desta última dimensão, de radical subjectivo, que irá incluída na estrutura da norma jusfundamental. A esta dimensão pertence, precisamente como direito “clássico” de defesa, o direito de cada um a não ser privado da sua propriedade senão por intermédio de um procedimento adequado e mediante justa compensação, procedimento esse especialmente assegurado no n.º 2 do artigo 62.º. Para além disso – e como se disse no Acórdão n.º 187/2001, § 14 – “a outras dimensões do direito de propriedade, essenciais à realização do Homem como pessoa (…), poderá também, eventualmente, ser reconhecida natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias”.
Análise mais demorada exigirá agora a natureza, atrás referida, da garantia constitucional da propriedade enquanto garantia de instituto, objectivamente considerada.
Na verdade, a “garantia” que vai reconhecida no n.º 1 do artigo 62.º tem uma importante dimensão institucional e objectiva, que se traduz, antes do mais, em injunções dirigidas ao legislador ordinário. Por um lado, e negativamente, estará este proibido de aniquilar ou afectar o núcleo essencial do instituto infraconstitucional da “propriedade” (nos termos amplos atrás definidos). Por outro lado, e positivamente, estará o mesmo legislador obrigado a conformar o instituto, não de um modo qualquer, mas tendo em conta a necessidade de o harmonizar com os princípios decorrentes do sistema constitucional no seu conjunto. É justamente isso que decorre da parte final do n.º 1 do artigo 62.º, em que se diz que “a todos é garantido o direito à propriedade privada (..) nos termos da Constituição.”
Assim, e apesar de a redacção literal do preceito constitucional não conter, como é frequente em direito comparado, uma referência expressa às funções que a lei ordinária desempenha enquanto instrumento de modelação do conteúdo e limites da “propriedade”, em ordem a assegurar a conformação do seu exercício com outros bens e valores constitucionalmente protegidos, a verdade é que essa remissão para a lei se deve considerar implícita na “ordem de regulação” que é endereçada ao legislador na parte final do n.º 1 do artigo 62.º, e que o vincula a definir a ordem da propriedade nos termos da Constituição. Tal vinculação não será, portanto, substancialmente diversa da contida, por exemplo, no artigo 33.º da Constituição espanhola (“É reconhecido o direito à propriedade privada (…). A função social desse direito limita o seu conteúdo, em conformidade com as leis.”); no artigo 42.º da Constituição italiana (“A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina o seu modo de aquisição, gozo e limites com o fim de assegurar a [sua] função social (…)”; no artigo 14.º da Lei Fundamental de Bona (“A propriedade e o direito à herança são garantidos. O seu conteúdo e limites são estabelecidos pela lei (...). O seu uso deve servir ao mesmo tempo os bens colectivos”.
Embora a Constituição lhe não faça uma referência textual, existirá portanto, e também entre nós, uma cláusula legal da conformação social da propriedade, a que aliás terá aludido desde sempre a jurisprudência constitucional, ao dizer que “[e]stá tal direito de propriedade, reconhecido e protegido pela Constituição, na verdade, bem afastado da concepção clássica do direito de propriedade, enquanto jus utendi, fruendi et abutendi – ou na fomulação impressiva do Código Civil francês (…) enquanto direito de usar e dispor das coisas de la manière la plus absolue (...). Assim, o direito de propriedade deve, antes do mais, ser compatibilizado com outras exigências constitucionais” (referido Ac. n.º 187/2001, § 14, citando anterior jurisprudência)”.
6. Passando à aplicação desta doutrina à hipótese presente, a primeira nota que importa reter é que a norma em causa não tem efeito ablativo do direito de propriedade, de modo que possa ser-lhe atribuído efeito expropriativo. Não só o proprietário da coisa não é privado da sua titularidade, como nem sequer pode imputar-se directamente à norma em causa o sacrifício da consistência económica prática do direito. Efectivamente, o arrendamento é um modo de o locador fruir os bens de que se é proprietário e o ex-cônjuge constituído na qualidade de arrendatário da casa de morada de família fica obrigado a pagar ao outro uma contrapartida pela cedência do gozo da coisa: uma renda.
Assim, a faculdade do direito de propriedade de que o cônjuge forçadamente constituído em senhorio se vê privado é, em bom rigor, o jus utendi. O ex-cônjuge proprietário não pode usar, nem destinar ou comprometer o uso do bem por acto de vontade sua ou que lhe seja imputável. Vê o uso da coisa cedido ao ex-cônjuge por acto de autoridade.
Identificada a componente do direito de propriedade sobre que incide a ingerência estadual, deve começar por reconhecer-se que, apesar de a liberdade de uso e fruição dos bens de que se é proprietário não ser expressamente mencionada no n.º 1 do artigo 62.º da Constituição, no seu núcleo essencial, esta faculdade integra naturalmente o direito de propriedade quando este respeita ao universo das coisas. Todavia, são particularmente intensos os limites constitucionais quanto a este aspecto, podendo a lei estabelecer limitações dos poderes do proprietário usar a coisa credenciadas nos demais valores constitucionais. Aliás, pode até afirmar-se que o jus utendi constitui, no conjunto das faculdades inerentes à proprietas rerum, aquela que pode considerar-se mais necessitada de determinações de conteúdo e mais passível de limitações, seja na própria modelação dos poderes do proprietário no confronto com direitos de terceiro (p. ex. relações de vizinhança), seja os que decorrem da compatibilização com outros valores constitucionais [p. ex. dever de uso (artigo 88.º) e condicionamento (artigo 90.º, n.º 2) de meios de produção, ambiente, urbanismo, segurança e saúde públicas, património cultural e natural].
7. Contrariamente ao que nas alegações do recorrente se supõe, as limitações da liberdade de determinação quanto ao uso da coisa que resultam da norma em causa não provêm da concretização pelo legislador de políticas de habitação e urbanismo, nem convocam o conflito entre o direito de propriedade e o direito inscrito no n.º 1 do artigo 65.º da Constituição contra cujos termos de resolução o recorrente discorre. É, consequentemente, imprestável a sua argumentação quanto à filiação da solução normativa neste preceito constitucional para concluir que ele não suporta o gravame aos poderes de uso do proprietário que dela decorrem. A limitação dos poderes de uso da coisa tem, na norma em causa, outra base constitucional que claramente se reflecte na inserção sistemática do preceito no capítulo do Código referente ao divórcio e separação judicial de pessoas e bens e na própria literalidade da previsão da norma. Como se referiu na exposição introdutória, trata-se de uma medida introduzida pelo legislador para protecção da família, enquanto elemento fundamental da sociedade (artigo 67.º da CRP). Emerge da relação conjugal e da constituição do bem como “casa de morada de família”, qualidade em que o sujeito que vê a sua esfera jurídica afectada voluntariamente ingressou e situação para que contribuiu, e que tem como beneficiários o outro cônjuge e os filhos.
De acordo com o regime legal em que o segmento normativo agora questionado se insere e da qual não pode ser isolado para compreensão da questão que neste recurso é colocada, esta específica vinculação da propriedade só existe por causa da família e poderá deixar de subsistir quando circunstâncias supervenientes o justificarem. Na verdade, é da essência do vínculo conjugal – só desse modo de constituição da família aqui cuidamos – afectar a situação pessoal e patrimonial dos cônjuges, gerando direitos e deveres que põem perdurar para além da sua dissolução, designadamente em matéria de alimentos, que é o efeito mais próximo daquele que agora analisamos. Nesta perspectiva, que é a que corresponde à razão determinante da medida legislativa em causa, trata-se de norma conformadora do estatuto jurídico de um bem (aquele em que a família estabeleceu o centro da vida familiar) por ter sido afectado pelos cônjuges a uma determinada finalidade que se entende exigir protecção especial, no contexto da relação familiar e por causa dela, mesmo depois da dissolução do vínculo. Não se trata de um sacrifício imposto ao titular em nome de uma genérica hipoteca social da propriedade, mas de manter uma situação emergente dos efeitos do casamento e que vai para além dele. Aliás, os direitos de cada um dos cônjuges sobre o bem em que o casal estabelece o centro da vida familiar sofrem compressão noutros aspectos, designadamente, na alienação ou oneração (artigo 1682.º-A do CCv), na disposição do direito ao arrendamento (1782.º-B) do CCv).
8. Assim, encontrando legitimação na defesa de um elemento constitucionalmente proclamado como elemento fundamental da sociedade, sendo meio idóneo a prosseguir essa finalidade e de modo algum podendo ser acusada de “reduzir a nada” os poderes de disposição, fruição e utilização, a solução normativa questionada não viola a garantia constitucional do artigo 62.º da Constituição. É uma norma de vinculação da propriedade, mas enquanto incidente sobre um bem em especial e de um tipo de proprietário e beneficiário: a casa de morada de família e o ex-cônjuge relativamente ao outro. Cabe, atendendo à imposição constitucional de protecção da família, nos poderes de determinação legislativa do conteúdo da propriedade “nos termos da Constituição”.
9. Lembre-se, finalmente, que o que está em apreciação, embora deva ser interpretada no conjunto do preceito, é norma do n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, em si mesmo, porque foi assim constituída em objecto do presente recurso. Não se exclui que outros princípios constitucionais, designadamente os decorrentes do princípio da proporcionalidade, devam intervir no escrutínio da conformidade à Constituição de específicos sentidos normativos com que o preceito seja aplicado. Mas não caberia na competência deste Tribunal – nem isso, aliás, lhe é pedido, atendo-se o recorrente a uma rigorosa formulação normativa da questão – determinar se, nas concretas circunstâncias, ocorrem os pressupostos capazes de justificar a solução. E, ainda que fosse possível configurar normativamente uma questão que permitisse absorver para o controlo de constitucionalidade tal realidade, não pode o Tribunal proceder oficiosamente a essa definição, apenas podendo pronunciar-se sobre a questão de constitucionalidade da norma tal como o recorrente a identificou.
III. Decisão
Face ao exposto, negando provimento ao recurso, decide-se
a) Não julgar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1793.º do Código Civil, na parte em que, em caso de divórcio, permite a constituição, por decisão judicial, de uma relação de arrendamento da casa de morada de família a favor de um dos ex-cônjuges, quando a casa de morada de família seja um bem próprio do outro cônjuge e contra a vontade deste;
b) Condenar o recorrente nas custas, com 25 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 27 de fevereiro de 2013 – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Catarina Sarmento e Castro – Maria José Rangel de Mesquita – Maria Lúcia Amaral.
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