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Processo n.º 773/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), de acórdão daquele Tribunal.
2. Pela Decisão sumária n.º 14/2013 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão, no que agora releva, tem a seguinte fundamentação:
“(…)7. O presente recurso suscita, porém, problemas que impedem o seu conhecimento pelo Tribunal Constitucional: a questão de constitucionalidade não foi suscitada em termos processualmente adequados.
8. Para que ocorra uma suscitação processualmente adequada da questão da inconstitucionalidade é necessária a sua enunciação, de forma clara e percetível, bem como a sua fundamentação, em termos minimamente concludentes. O objetivo é permitir que o Tribunal recorrido e o Tribunal Constitucional se pronunciem sobre a questão de inconstitucionalidade efetivamente levantada.
Quando se pretende questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação normativa, é indispensável que a parte identifique expressamente essa interpretação ou dimensão normativa em termos que o Tribunal Constitucional, no caso de decisão de provimento, a possa enunciar na decisão, de modo apreensível para os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral (cfr., nomeadamente, Acórdãos n.os 367/94, 549/2001 e 37/2009, disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, para cumprir esse ónus não basta afirmar, como fez o recorrente, que «a interpretação plasmada na douta sentença recorrida [é] inconstitucional» (cfr. alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, p. 27, conclusão EE., fls. 218 dos autos) por ser diferente da por si defendida, ou alegar a «inconstitucionalidade da interpretação da norma legal em causa (artigo 198.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007) tendo por fundamento não só os princípios da proporcionalidade e proibição do excesso em conjugação com o princípio da proteção da confiança e do Estado de direito, como igualmente igualdade e culpa» ou apontar como «fundamento do recurso» o «entendimento sufragado quer na douta decisão administrativa, quer na douta sentença de primeira instância, quer nos doutos acórdãos do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra» (cfr. requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, fls. 349 dos autos). Manifestamente, com estas formulações, não se identifica de modo claro e preciso, a dimensão normativa que se quer ver desaplicada.
O recorrente limita-se a referir que faz uma determinada interpretação do preceito, diversa da aplicada pelas instâncias judiciais – que, segundo ele, aplicaram a «norma de forma literal» (cfr. requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, fls. 350 dos autos) –, sem que, todavia, formule adequadamente do ponto de vista normativo qual será essa interpretação que apoda de inconstitucional. Dizer que uma interpretação diversa daquela que se propõe como correta é inconstitucional não é identificar essa diferente interpretação, pelo menos para efeitos de permitir o recurso de constitucionalidade que o recorrente interpôs.
Esta posição decorre de jurisprudência constante deste Tribunal (cfr., nomeadamente, Acórdãos n.os 210/2006, 376/2006 e 141/2008, disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt). Por exemplo, no Acórdão n.º 361/2006 (disponível no sítio citado), o Tribunal Constitucional esclarece que «O cumprimento do ónus a que se refere o artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional não se basta, com efeito, com a mera afirmação, perante o tribunal recorrido, de que certa interpretação normativa, não concretizada, é inconstitucional, pois que tal não traduz a invocação de uma verdadeira questão de inconstitucionalidade: o preceito vai mais longe, impondo ao recorrente a delimitação dessa questão, de forma a possibilitar ao tribunal recorrido a sua cabal compreensão e, portanto, a sua efetiva decisão».
9. Por este motivo, o recorrente foi convidado a explicitar qual a exata dimensão interpretativa acolhida na decisão recorrida que reputa de inconstitucional.
Em resposta, o recorrente cita o preceito legal em causa e enuncia a seguinte norma que comina como inconstitucional: «a aplicação das coimas plasmadas na norma em causa não dever ser feita num sistema de progressividade por escalões, à imagem do sistema fiscal, com efetiva concessão de tratamento diferenciado no caso de serem mais de 5 e sem a inusitada e injustificável virtualidade de a 5.ª alterar de forma automática o tratamento jurídico que seria devido às primeiras quatro, sob pena de violação do art. 9.º CC, não se podendo cingir unicamente à letra da lei, devendo considerar igualmente os elementos histórico, sistemático e sobretudo teleológico».
É manifesto que o recorrente continua a não identificar a interpretação normativa que pretendia questionar, identificando afinal o critério normativo que tem por correto.
Como já se referiu, não basta a mera invocação de normas ou princípios constitucionais que, no entender do recorrente, reclamam solução diferente da adotada pelo Tribunal recorrido, para fundar um recurso de constitucionalidade. Para a formação do dever de pronúncia cai sobre o recorrente o ónus de clara, precisa e expressa delimitação e especificação do objeto do recurso.
10. Torna-se assim evidente que o recorrente não especificou de forma adequada perante o Tribunal recorrido qual a interpretação normativa dos preceitos em causa que seria inconstitucional, tendo-se limitado a, de modo genérico e vago, imputar inconstitucionalidades à suposta «interpretação» efetuada.
Ao não cumprir este seu ónus, o recorrente não concedeu ao Tribunal perante o qual a questão foi colocada a possibilidade de decidir sobre a inconstitucionalidade da norma supostamente em questão. Por força deste fundamento, i.e. a inadequação da arguição do objeto normativo, é legalmente inadmissível conhecer do objeto do presente recurso. (…)”
3. Daquela Decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC.
Como fundamento da reclamação indica que:
“O que está em causa e ressalta quer do teor da douta decisão proferida pelos Venerandos Tribunais de 1ª instância quer da Relação de Coimbra é a forma de interpretar tal norma legal por escalões como se defende ou de forma literal, buscando o número de infrações e ver em que patamar se situam e tratar todas de tal forma.
Tal visão perfilhada pelas doutas decisões já proferidas terá o inconveniente plasmado na conclusão FF do recurso apresentado perante o venerando Tribunal da Relação de Coimbra, ou seja, leva a que a punição mínima nunca seja benefício para o infrator.
Apenas a interpretação preconizada faz jus à progressividade que o legislador teve em mente!
O recurso de constitucionalidade não será nunca uma ilha, tendo de ser olhado sob a perspetiva processual já decorrida e à luz das decisões proferidas.
Em se de convite ao aperfeiçoamento entende-se que se deu cumprimento ao mesmo e se suscitou de forma clara e percetível a questão jurídica que se mostra ainda devida e solidamente fundamentada.
Reproduzindo o aí vertido, dir-se-á que o presente recurso versa desde logo sobre uma questão concreta e objetiva: I) da inconstitucionalidade da interpretação e dimensão normativa da norma legal em causa (art. 198º, nº 2 da Lei 23/2007), tendo por fundamento não só os princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, em conjugação com o princípio da proteção da confiança e estado de Direito, como igualmente igualdade e culpa, quando interpretada no sentido de «a aplicação das coimas plasmadas na norma em causa não dever ser feita num sistema de progressividade por escalões, à imagem do sistema fiscal, com efetiva concessão de tratamento diferenciado no caso de serem mais de 5 e sem a inusitada e injustificável virtualidade de a 5ª alterar de forma automática o tratamento jurídico que seria devido às primeiras quatro, sob pena de violação do art. º 9 CC, não se podendo cingir unicamente à letra da lei, devendo considerar igualmente os elementos histórico, sistemático e sobretudo teleológico».
Em tal passagem, que consta do requerimento apresentado no passado dia 17 de dezembro de 2012, mostra-se identificada quer a concreta questão jurídica quer mesmo a passagem da douta decisão proferida que se tem por inconstitucional aí estando a interpretação dada pelo Tribunal e com a qual se discorda.
E tendo-se vertido quer a posição sufragada pelas decisões judiciais anteriores quer o manifestar de discordância do recorrente, decorre de forma cristalina a questão do exato decorte da questão jurídica que se mostra devidamente enunciada!”
Mais refere:
“A prova provada de que a questão de constitucionalidade se mostrou devidamente suscitada ressalta de forma clara do facto de ter sido conhecida pelo Tribunal da Relação de Coimbra, que a bem percebeu e sobre a mesma se pronunciou, afastando-se e perfilhando o entendimento já anteriormente assumido pelo Tribunal a quo .
Tem-se assim por preenchido o ónus que recaía sobre o recorrente, estando de forma clara, precisa e expressamente delimitado o objeto do recurso, que igualmente se mostra especificado e apto a ser conhecido.”
4. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso, por não se poder dar por verificado o requisito da suscitação prévia de forma adequada da questão de inconstitucionalidade posta a este Tribunal.
A presente reclamação em nada contraria este fundamento. O reclamante sustenta apenas que indicou a norma cuja apreciação pretendia, identificando o « art. 198º, nº 2 da Lei 23/2007 (…) quando interpretada no sentido de a aplicação das coimas plasmadas na norma em causa não dever ser feita num sistema de progressividade por escalões, à imagem do sistema fiscal, com efetiva concessão de tratamento diferenciado no caso de serem mais de 5 e sem a inusitada e injustificável virtualidade de a 5ª alterar de forma automática o tratamento jurídico que seria devido às primeiras quatro», como referido no aperfeiçoamento do requerimento de recurso apresentado em resposta à notificação que, para tanto, lhe foi feita.
O fundamento da decisão reclamada não foi, porém, a não satisfação de um dos requisitos do artigo 75.º-A da LTC, antes a não suscitação prévia de forma adequada de uma questão de inconstitucionalidade diante do tribunal recorrido.
Com efeito, quando recorreu para o Tribunal da Relação se, por um lado, questionou a constitucionalidade (e a legalidade) de uma decisão judicial, concluindo que «a interpretação plasmada na douta sentença recorrida [é] inconstitucional» (cfr. alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, p. 27, conclusão EE., fls. 218 dos autos), por outro, não identificou a interpretação normativa que tinha por inconstitucional, omissão esta que, de resto, manteve tanto no requerimento de apresentação de recurso para o Tribunal Constitucional, como no requerimento que em aperfeiçoamento do mesmo apresentou, como, finalmente, na reclamação ora apresentada, limitando-se sempre a identificar o critério normativo que, em seu entender, representa a correta interpretação do preceito legal em causa, nunca a dimensão normativa que reputa de inconstitucional e que atribui à decisão recorrida.
Como resulta da decisão sumária, ora reclamada, quando se pretenda questionar a constitucionalidade de uma dada interpretação normativa é indispensável que o recorrente identifique expressamente essa interpretação em termos de o tribunal, no caso de vir a julgá-la inconstitucional, a poder enunciar na decisão de modo que não só os seus destinatários, como também os operadores do direito em geral, fiquem cientes do sentido da norma que não pode ser aplicado. Ora, «o ónus de suscitação, clara e precisa, da questão de inconstitucionalidade implica que não baste afirmar-se que uma “diferente interpretação” normativa será violadora da Constituição» (v., Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, 2010, p. 104 e Acórdãos do Tribunal Constitucional ali citados).
De nada vale, assim, invocar que o tribunal recorrido entendeu a questão de constitucionalidade que era colocada. Indispensável era que aquele tribunal tivesse sido colocado em condições de a decidir o que, manifestamente não é o caso, já que nenhuma questão de constitucionalidade normativa lhe foi colocada de forma adequada. Antes e tão-só o enunciado de princípios constitucionais pretensamente violados, na interpretação de uma disposição infraconstitucional, com a qual o recorrente não se conforma. De resto, o tribunal recorrido, no que respeita à questão de constitucionalidade aludida no recurso, limitou-se a referir o seguinte:
“Prossegue o recorrente alegando que a interpretação e aplicação das coimas deverá ser feita por escalões, à imagem do sistema fiscal, mas sem qualquer razão, pois nada na lei aponta nesse sentido nem se vê como se possa revelar «inconstitucional» interpretação diversa, como o recorrente sustenta, ou que a aplicação da lei nos termos em que foi considerada na decisão recorrida viole qualquer princípio de direito penal”.
Ora, diferentemente do pretendido pelo reclamante, uma tal apreciação está longe de refletir a apreensão de qualquer questão de constitucionalidade (a qual «nem se vê como se possa revelar»), antes evidenciando mera refutação da interpretação feita pelo recorrente do preceito legal aplicado na decisão, por não encontrar na letra da lei correspondência verbal, ao mesmo tempo que se confirma a aplicação do mesmo preceito feita pelo tribunal recorrido, por não importar qualquer violação de princípios do direito penal.
Na falta de verificação de um pressuposto do recurso de constitucionalidade, por ausência de suscitação prévia adequada de uma questão de constitucionalidade, há que confirmar, por conseguinte, a decisão reclamada.
III – Decisão
6. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 20 de fevereiro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.
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