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Processo nº: 731/12
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional:
1. A. recorreu, ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art.º 70.º da Lei 28/82 de 15 de novembro (LTC) do acórdão do Tribunal da Relação de Évora que confirmou despacho que revogara a suspensão da execução da pena em que tinha sido condenado, determinando-se o cumprimento da pena de prisão, com fundamento em violação grosseira do dever que lhe foi imposto (pagamento de indemnização à assistente).
Convidado, nos termos do art.º 75.º-A da LTC, o recorrente esclareceu que pretende a apreciação de constitucionalidade “da norma da alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º do Código Penal, quando interpretada no sentido que a suspensão da execução da pena é revogada, quando não ficou demonstrado que o recorrente infringiu grosseiramente o dever que lhe foi imposto e que dispusesse de capacidade financeira para suportar o pagamento da indemnização à assistente, por violação do artigo 1.º do Protocolo n.º 4 Adicional à CEDH e artigos 1.º, 18.º, n.º 2 e 27.º, n.º 1 e 2 da Constituição da República”.
O relator proferiu, então, “decisão sumária” do seguinte teor:
“Ora, este enunciado não corresponde ao sentido com que a norma da al. a) do n.º 1 do art.º 56.º do Código Penal foi aplicada pelo acórdão recorrido. Com efeito, a ratio decidendi foi a oposta desta que o recorrente enuncia. Depois de se analisar o que deve entender-se por violação grosseira ou repetida das regras de conduta impostas, o acórdão recorrido considerou:
“Por outro lado, pode asseverar-se que o Tribunal deve, por sua própria iniciativa, diligenciar pela sedimentação das razões que motivaram o arguido ao incumprimento ou dos motivos pelos quais este se encontrou impossibilitado de cumprir, vale por dizer que, perante a formalização de um dos requisitos de revogação da suspensão da execução da pena, o Tribunal não se pode demitir de uma averiguação substantiva dos factos que relevam para discernir sobre se o arguido podia e devia ter agido de modo diverso.
Atenta a materialidade de facto acima editada, não pode deixar de se concluir, in casu, por um lado, que o Tribunal diligenciou, aos limites do possível, pelo apuramento das razões do incumprimento, e, por outro lado, que o arguido manifestou uma completa indiferença pela condenação e pela obrigação imposta.
Daquelas razões, sem desconsiderar as dificuldades económico-financeiras do trem de vida do arguido - que já estavam presentes no momento da condenação -, não pode também esquecer-se que, como sublinha, com particular acuidade, a Dg.ma Procuradora-Geral Adjunta, «como o próprio arguido refere, em anterior recurso, a fls. 1023, tem como despesa normal a prestação do automóvel e respetiva gasolina, sendo certo que não está propriamente desempregado, uma vez que, como se vê do relatório de fls. 1130, tem uma loja/escritório onde desempenha atividade compatível com a sua habilitação de licenciado em direito».
Com efeito, tem de reconhecer-se que se, por um lado, o arguido não logrou demonstrar a impossibilidade de cumprir a condição, também, por outro lado, o Tribunal logrou apurar suficientemente que a situação económico-financeira do condenado não o inibia de, ao longo do tempo (cinco anos se passaram), ir aforrando quanto bastasse para cumprir a obrigação de indemnizar a assistente.
Por que assim, tem de concluir-se que não se podem considerar satisfeitas as finalidades da punição, melhor, tem de concluir-se que o incumprimento da condição por parte do arguido infirmou, em definitivo, o juízo de prognose favorável que esteve subjacente à decisão de suspensão da execução da pena”.
Assim, tem de concluir-se que o acórdão recorrido entendeu, face aos factos apurados, que se verifica uma situação de violação grosseira dos deveres que na condenação foram impostos e uma situação económico-financeira que não era impeditiva de pagar a indemnização fixada. É óbvio que não cabe a este Tribunal censurar esse juízo no plano do preenchimento do conceito infraconstitucional ou de apuramento dos factos pertinentes”.
2. O recorrente reclama para a conferência, com os seguintes fundamentos:
Diga-se desde já, que não se entende o alcance do douto despacho ao decidir não tomar conhecimento do recurso com o fundamento que a norma identificada pelo recorrente não corresponde à norma aplicada pelo acórdão recorrido, quando, bem demonstrado fica, que o recorrente arguiu a inconstitucionalidade da norma do artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, não só junto do Tribunal recorrido, como inclusive, no Tribunal de 1.ª Instância.
Refere ainda o douto despacho, “que o acórdão recorrido entendeu, face aos factos apurados, que se verifica uma situação de violação grosseira dos deveres a que na condenação foram impostos e uma situação económica que não era impeditiva de pagar a indemnização fixada.”
Também aqui e, salvo o devido respeito por opinião contrária, não assiste razão ao Emo. Senhor Juiz Conselheiro Relator, como passaremos a demonstrar:
Estabelece o artigo 55º. do Código Penal:
“Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta expostos, ou não corresponder ao plano de readaptação, pode o tribunal:
a) Fazer ma solene advertência;
b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão;
c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação;
d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de 1 ano nem por forma a exceder o prazo máximo se suspensão previsto no n.º 5 do art.º 50º.”
E ainda o artigo 56 º Código Penal
“1. A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:
a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social; ou
b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.
2 A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado.”.
O sentido deste preceito é ainda complementado pelo art.º 495º CPP referente à falta de cumprimento das condições de suspensão.
Pois bem, o que decorre desde logo da conjugação dos referidos preceitos, designadamente tendo em conta a aplicação subsidiária do Código Penal, é a de que só o incumprimento culposo (art.º 55.º CP) da falta de pagamento das prestações tributárias pode conduzir a um prognóstico desfavorável relativamente ao comportamento do arguido.
E resulta igualmente da leitura de tais preceitos que o não cumprimento das obrigações impostas não desencadeia necessariamente a revogação da suspensão da pena em que o arguido foi condenado.
Veja-se que por força do artº 56º CP, tal revogação só pode ter lugar em última ratia.
O que diga-se se compreende, face à preocupação do legislador em lutar contra a pena de prisão.
Por isso a revogação, como o refere expressamente o citado artº 56º nº 1 alínea a) do Código Penal só se impõe se o condenado “infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social.”
Não nos diz contudo a lei o que deve entender-se como violação grosseira dos deveres, ficando ao critério do julgador a sua fixação.
Parece-nos porém que o AcSTJ 97.02.19 CISTJ 1/97, 166, é lapidar nessa definição e com a qual estamos absolutamente de acordo: “A violação grosseira dos deveres ou regras de conduta impostos, de que se fala na alínea a) do nº 1 do artigo 56º do Código Penal, há de constituir uma indesculpável atuação, em que o comum dos cidadãos não incorra e que não mereça ser tolerada nem desculpada. Só a inconciliabilidade do incumprimento com a teleologia da suspensão da pena é que deve conduzir à respetiva revogação”.
Assim face a um incumprimento culposo das condições de suspensão o tribunal tem de ponderar se a revogação constitui a única forma de conseguir as finalidades da punição, isto é se as restantes providências consignadas no artº 14º nº 2 são manifestamente ineficazes para o caso concreto.
Como diz Figueiredo Dias Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 357.” Correto seria que, qualquer que houvesse sido a natureza do incumprimento culposo das condições de suspensão, está só fosse revogada se um tal incumprimento revelasse que as finalidades que estavam na base da suspensão já não poderiam, por meio desta, ser alcançadas; ou dito por outra forma, se nascesse dali a convicção de que um tal incumprimento infirmou definitivamente o juízo de prognose que esteve na base da suspensão, é dizer, a esperança de, por meio desta, manter o delinquente, no futuro, afastado da criminalidade”.
Ora constituindo a revogação da suspensão e o consequente cumprimento da pena de prisão, a medida mais radical, a pergunta que cabe agora colocar é a seguinte: Será que a conduta da arguida ao longo destes anos consubstancia uma atuação indesculpável e que não merece ser tolerada?
E ainda, será que a situação por si vivida durante este período é reveladora de que já se perdeu a finalidade da sua recuperação subjacente à suspensão?
Face ao quadro relatado não se pode afirmar que o arguido/recorrente violou de forma grosseira o dever de pagamento fixado no acórdão.
É que não só não ficou demonstrado que o arguido/recorrente dispusesse de capacidade financeira para suportar o pagamento da referida indemnização após a prolação da sentença condenatória.
É que só assim seria se tivesse ficado demonstrado que o arguido/recorrente podendo paga, não o fez, pois que, como já referido anteriormente, o juízo sobre a revogação há de traduzir-se numa manifesta e inequívoca violação dos deveres impostos ao condenado o que, no que concerne ao pagamento de indemnizações passa pela demonstração da sua capacidade financeira para o fazer.
Quer isto dizer que não ficou demonstrado que o arguido não cumpriu a condição por motivo que lhe seja imputável, mas sim não ter possibilidades económicas de o fazer.
Ora a falta de capacidade financeira para pagar o montante indemnizatório não pode levar ao cumprimento da pena aplicada, pelo que assiste razão ao recorrente ao sustentar que a suspensão da execução da pena não deveria ter sido revogada.
Veja-se que o acórdão recorrido não refere uma ÙNICA fonte de rendimento do recorrente.
O Acórdão recorrido limita-se a referir que o “arguido não logrou demonstrar a impossibilidade de cumprir a condição”.
Mas é o recorrente que tem que demonstrar ao Tribunal que é “pobre” ou é o Tribunal que tem que demostrar que o recorrente possuir rendimentos para cumprir a condição imposta.
O acórdão recorrido não demonstra que o recorrente aufere qualquer rendimento, que tem contas bancarias, que tem património que gere rendimentos, entre outras fontes de rendimento.
Termos em que, deverá ser concedido provimento à presente reclamação e, em consequência, revogar-se a decisão sumária do Excelentíssimo Juiz Conselheiro Relator e substituir-se por outra que decida conhecer do objeto do recurso.
3. O Ministério Publico sustenta que a reclamação improcede, salientando:
“2°
Ora, vendo o que o recorrente afirma no requerimento apresentado na sequência da notificação prevista no artigo 75.°-A, n.º 6, da LTC, parece-nos evidente - como de forma transparente se demonstra na douta decisão reclamada - que não há coincidência entre as duas dimensões normativas em causa.
3º
Na rec1amação, o recorrente não impugna verdadeiramente o fundamento que levou ao no conhecimento do objeto do recurso, antes tece considerações sobre o que se deve entender por “violação grosseira” dos deveres impostos (artigo 56.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal), adiantando os factos que demonstram que, no caso dos autos, essa violação não ocorrera.
4º
Ou seja, o recorrente discorda do acórdão recorrido enquanto ali se qualificou como “grosseira” a vio1ação do comportamento, matéria naturalmente insindicáve1 por este Tribunal Constitucional”.
Cumpre decidir.
4. É exato que o acórdão recorrido fez aplicação de norma extraída da al. a) do n.º 1 do art.º 56.º do Código Penal. Mas não com o sentido que o recorrente identificou na resposta ao convite formulado. Efetivamente, o tribunal a quo entendeu que há lugar à revogação da suspensão da execução da pena de prisão sempre que, no seu decurso, o condenado tenha infringido grosseiramente os deveres que lhe foram impostos como condição da suspensão. E considerou, valorando os factos, que ocorreu essa violação grosseira. Ora, o recorrente enunciou o objeto do recurso como correspondendo a uma dimensão normativa segundo a qual há lugar a tal revogação quando “não ficou demonstrado que o recorrente infringiu grosseiramente o dever que lhe foi imposto”. O oposto do sentido com que o tribunal a quo aplicou a al. a) do n.º 1 do art.º 56.º do Código Penal, que assentou na qualificação do incumprimento do dever de indemnizar como traduzindo nas circunstâncias do caso, infração grosseira aos deveres fixados na condenação.
Como a argumentação da reclamação torna evidente, esta discrepância radica no facto de o recorrente considerar que não houve violação grosseira de tais deveres e supor que pode integrar tal questão no objecto do recurso. É essa qualificação do incumprimento que, com argumento de violação de normas e princípios constitucionais, o recorrente quer ver apreciado. Mas isso é matéria que não cabe ao Tribunal Constitucional decidir. São questões distintas saber se os factos provados integram o conceito normativo de negligência grosseira e saber se determinado sentido deste conceito normativo, adotado pela decisão recorrida, é compatível com normas e princípios constitucionais. Só esta última questão seria da competência do Tribunal Constitucional, mas o recorrente não logrou definir uma questão desta natureza. A primeira é ainda respeitante à determinação do sentido da norma de direito ordinário e à valoração dos factos da causa, matéria em que não cabe ao Tribunal interferir.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas custas, com 20 UCs de taxa de justiça.
Lx, 22-1-2013. - Vítor Gomes – Catarina Sarmento e Castro – Maria Lúcia Amaral
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