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Processo n.º 764/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.Na contestação apresentada por A., melhor identificado nos autos, arguido num processo a correr termos no 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Águeda, foi requerido o exame à escrituração e documentos da sociedade B., também arguida nos mesmos autos, “relativos ao período a que os factos se reportam, para verificar quais as contribuições que foram pagas à Segurança Social de Aveiro”. Por despacho de 11 de Junho de 2002 foi indeferida a requerida prova pericial com os seguintes fundamentos:
“Compulsados os autos, verifica-se que consta suficientemente documentado nos autos, quais as prestações relativas a contribuições de trabalhadores e gerentes da sociedade arguida, entretanto pagas à Segurança Social.
(…) Afigura-se, pois, sem interesse para a decisão da causa a prova pericial ora requerida, sendo certo que, qualquer pagamento entretanto efectuado à Segurança Social (que não o já demonstrado nos autos), relativos aos factos indiciados, sempre poderá ser provado pelo arguido/requerente, através dos competentes documentos.” O arguido recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, logo suscitando a questão da inconstitucionalidade do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal “por violação do princípio da garantia de defesa do arguido e da presunção de inocência, consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º da Constituição, quando interpretada no sentido de permitir ao Juiz, expressa ou implicitamente, limitar os direitos de defesa do arguido, fora dos casos aí previstos”, e “por conter previsão – ‘se for notório que’ – demasiado indeterminada”, que permite “a limitação (prejudicial, antecipada e sem controlo) da possibilidade de o arguido apresentar a prova que se entende ser essencial para a sua defesa”. Por decisão de 3 de Março de 2004, tirada em conferência, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso, acrescentando não vislumbrar “a inconstitucionalidade alegada pelo recorrente”.
2.O arguido trouxe então recurso ao Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, “para ser apreciada a inconstitucionalidade da norma contida no n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, por violação do princípio de garantia de defesa do arguido e da presunção de inocência, consagrados nos n.ºs 1 e 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, quando interpretada no sentido de permitir ao Juiz, expressa ou implicitamente, limitar os direitos de defesa do arguido, fora dos casos ali previstos, e, ainda, por conter previsão – ‘se for notório que’ – demasiado indeterminada, que permite, como resulta da interpretação aparentemente acolhida na douta decisão recorrida, a limitação (prejudicial, antecipada e sem controlo) da possibilidade de o arguido apresentar a prova que se entende ser essencial para a sua defesa”, mas pedindo que, “previamente à interposição deste recurso”, o tribunal ora recorrido reparasse “a nulidade por omissão de pronúncia que vicia o douto Acórdão”, por, alegadamente, não se ter pronunciado sobre a questão de constitucionalidade que perante ele fora suscitada. Por decisão de 12 de Maio de 2004, a conferência indeferiu a arguição de nulidade. Notificado desta decisão, o recorrente renovou, nos seus precisos termos, o recurso antes interposto para o Tribunal Constitucional, que foi admitido. Nas alegações que produziu neste Tribunal, o recorrente conclui assim:
«A prova requerida não era supérflua, antes absolutamente relevante, para a determinação da existência ou inexistência de um crime, da punibilidade ou não punibilidade do arguido e para a determinação da pena aplicável; mostrando-se, ainda, a prova adequada e de obtenção possível, e despida de qualquer finalidade dilatória, já que foi requerida somente para salvaguarda da defesa do arguido. O que se verificou no caso sob juízo foi que as instâncias ignoraram os direitos e princípios constitucionalmente consagrados, limitando-os fora dos casos expressamente previstos no n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, exactamente por isso que aderiram a uma interpretação extensiva do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, recorrendo à previsão “se for notório que”. A expressão “se for notório que”, porque demasiado vaga e indeterminada, acabou por permitir aos Meritíssimos e Venerandos Senhores Juízes recorridos uma limitação prejudicial, antecipada e sem controlo, absolutamente discricionária, da possibilidade de o arguido apresentar a prova que entende essencial para a sua defesa. Tal interpretação do artigo 340.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, tornada possível pela cláusula geral nele aparentemente vertida, acaba por permitir – como no caso sob juízo –, uma interpretação discricionária, que é ilegal e inconstitucional, por violação do princípio da legalidade e desrespeito das mais elementares garantias de defesa em matéria criminal, como indiscutivelmente é o direito a produzir prova.» Por sua vez, o Ministério Público encerrou deste modo as suas contra-alegações:
“1 – Não viola o princípio das garantias de defesa a circunstância de a lei processual penal outorgar ao juiz, no exercício de um poder de direcção e controlo do processo, a faculdade de rejeitar diligências probatórias, requeridas pelo arguido, e tidas por manifestamente irrelevantes, inadequadas ou dilatórias – não cumprindo obviamente ao Tribunal Constitucional sindicar o concreto ou casuístico despacho que, face a um caso particular, entendeu qualificar certa diligência probatória como notoriamente irrelevante e supérflua para a justa decisão da causa.
2 – Termos em que deverá improceder o presente recurso.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.É a seguinte a redacção da norma impugnada – o n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, cuja epígrafe é “Princípios gerais”, e constitui o primeiro artigo do capítulo epigrafado “Da produção de prova”:
“(…)
4. Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.” Ora, como notou o Ministério Público nas suas contra-alegações, e o Tribunal Constitucional tem repetidamente salientado na sua jurisprudência, a este Tribunal “apenas cumpre a apreciação de inconstitucionalidades normativas, não lhe cabendo naturalmente sindicar o concreto e casuístico fundamento da decisão impugnada”, pelo que está fora de questão que este Tribunal Constitucional vá valorar se a prova pericial requerida era ou não em concreto “supérflua” ou
“absolutamente relevante” para a decisão da causa”. Não pode, pois, considerar-se, nesta medida, o que consta da primeira conclusão do recorrente, pois o juízo sobre o carácter em concreto supérfluo ou não da prova não compete ao Tribunal Constitucional. Quanto ao que o recorrente afirma nas conclusões segunda e terceira, não se acompanha a afirmação de que as instâncias (expressa ou implicitamente)
«aderiram a uma interpretação extensiva do n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal, em particular quanto à previsão “se for notório que”» como fundamento da sua decisão. Na verdade, pode desde logo discutir-se se na falta deste inciso o resultado seria, como pretende o recorrente, uma diminuição dos poderes dos tribunais, e não antes um seu alargamento, já que o requisito da “notoriedade” importa uma exigência acrescida em relação aos juízos a que apelam as três alíneas do n.º 4 do dito artigo 340.º. Acresce que, como refere o Ministério Público, “a outorga ao juiz de um poder de direcção do processo, na fase de produção de prova, lhe permite rejeitar liminarmente as diligências probatórias notoriamente irrelevantes, supérfluas, inadequadas ou meramente dilatórias” – naturalmente, de acordo com a apreciação do juiz, susceptível de reexame (e que foi reexaminada) em via de recurso –, o que “não viola qualquer preceito ou princípio constitucional, ‘maxime’ o das garantias de defesa.” Desde logo, há que distinguir o indeferimento de diligências probatórias requeridas e a situação de impossibilidade de o arguido “apresentar a prova que entende essencial para a sua defesa”, sendo que de modo algum o primeiro tem de provocar logo a segunda. E isto mesmo é dito no despacho que foi alvo de recurso, onde se salientou que “qualquer pagamento entretanto efectuado à Segurança Social (que não o já demonstrado nos autos), relativo aos factos indiciados, sempre poderá ser provado pelo arguido/requerente, através dos competentes documentos”. A invocada limitação, de forma “prejudicial, antecipada e sem controlo, absolutamente discricionária”, da possibilidade de o arguido “apresentar a prova que entende essencial para a sua defesa”, como fundamento da inconstitucionalidade, pode, aliás, ser posta em dúvida, tendo em conta o que resulta dos autos: a decisão de não ordenar o exame à escrituração e documentos da sociedade foi objecto de recurso para o Tribunal da Relação e, portanto, não pode dizer-se “sem controlo” nem “absolutamente discricionária”; depois, não se vê que a invocação de um alegado “prejuízo”, decorrente da decisão “antecipada”
(embora não se veja como é que o indeferimento de diligências probatórias pudesse deixar de ser “antecipado”, pois, se se esperasse pelo seu desfecho, não se poderiam indeferir), seja adequada ao caso, uma vez que o fundamento do indeferimento foi o de que já “consta suficientemente documentado nos autos quais as prestações relativas a contribuições de trabalhadores e gerentes da sociedade arguida entretanto pagas à Segurança Social” – ou seja, foi por já se ter provado o que havia a provar que se indeferiu o requerido. O que também afasta o argumento esgrimido contra o outro sentido “prejudicial” da decisão: o de que a norma em causa inverteria “completamente as regras de distribuição do ónus da prova em processo penal”. Na verdade, não se trata – nem se tratou, no caso concreto – de fazer reverter para o arguido qualquer “ónus” de demonstração da sua inocência, até porque da insuficiência probatória sempre resulta a sua absolvição. Trata-se, apenas, da atribuição ao tribunal do poder de disciplinar a produção da prova, quer da acusação, quer do arguido, para evitar que aquela se eternize ou se perca o contacto com o thema decidendum, e essa função, de controlo, só pode caber ao juiz (embora, como se disse, o seu exercício possa ser – e no caso foi – objecto de reapreciação). Há, pois, que concluir que o artigo 340.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na medida em que confere ao juiz poderes de disciplina da produção de prova, exigindo para o indeferimento desta a notoriedade do seu carácter irrelevante ou supérfluo, inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, ou, ainda, da sua finalidade meramente dilatória, não viola as garantias de defesa do arguido
– isto, sempre reiterando-se que não cabe nos poderes do Tribunal Constitucional apreciar a relevância ou não, no caso concreto, da diligência de prova requerida, ou, mesmo, o juízo decisório sobre a procedência ou não, no caso concreto, das qualificações apontadas, mas apenas apreciar a conformidade com a Constituição da República da norma em causa.
III. Decisão Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide: a) Não julgar inconstitucional o n.º 4 do artigo 340.º do Código de Processo Penal; b) Consequentemente, negar provimento ao recurso e condenar o recorrente em custas, fixando-se em (20) unidades de conta a taxa de justiça.
Lisboa, 31 de Março de 2005
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos