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Processo n.º 766/03
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1.A. interpôs recurso contencioso de anulação, perante o Supremo Tribunal Administrativo (STA), da resolução do Conselho de Ministros n.º 309/79, de 12 de Outubro, constante do DR, I Série, de 26 de Outubro de 1979, a qual autorizou o aumento de capital social da sociedade B., S.A.R.L., tendo ainda aprovado as alterações aos seus estatutos e determinado a cessação da intervenção do Estado na empresa, na data da realização da Assembleia Geral extraordinária, a efectivar a celebração do contrato de viabilidade. Por acórdão da Secção do STA, datado de 2 de Maio de 2002, proferido em cumprimento e na sequência do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 257/92, que julgou não ser inconstitucional a norma do artigo 20º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º
422/76, de 29 de Maio, na redacção do Decreto-Lei n.º 543/76, de 10 de Julho, foi negado provimento ao recurso “por não se verificarem os alegados vícios de violação de lei que haviam sido imputados ao acto recorrido [resolução n.º
309/79], tendo sido ainda julgado improcedente o vício de desvio de poder subsidiariamente invocado”. Após habilitação da herdeira da recorrente, C., veio esta interpor recurso para o Pleno da Secção do Contencioso Administrativo do STA, pedindo a revogação do acórdão recorrido e a anulação do acto impugnado, e alegando, no que ora interessa:
“ (..) N – Por cautela, ainda se dirá que o entendimento do acórdão recorrido quanto ao fim legal que preside às operações de intervenção e desintervenção do Estado na gestão de empresas privadas, designadamente os art.ºs 20º e 24º do DL n.º 422/76
– no sentido de que é apenas o saneamento económico-financeiro das empresas que está em causa – é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa económica e do direito de propriedade privada, consagrados nos art.ºs 61º e 62º da CRP, ofendendo igualmente o princípio de que ninguém pode ser privado da sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional, consagrado no art.º 1º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. O – O acto recorrido – ao subverter o fim do instituto em pauta – viola as garantias mínimas da protecção da propriedade privada, como tal consagradas na CRP e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.” Por acórdão datado de 26 de Junho de 2003, o Pleno da 1ª Secção do STA negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida, “que julgou não se verificar no acto impugnado o vício de desvio de poder por não ter sido subvertido o fim da lei, designadamente no âmbito dos bens e interesses protegidos pelas normas aplicadas que regulam a cessação da intervenção do Estado nas empresas”. Considerou-se nesse acórdão, no que à questão de inconstitucionalidade suscitada pela recorrente respeita:
“(...) Na conclusão N das suas alegações a recorrente defende que é inconstitucional o entendimento do acórdão recorrido quanto ao fim legal que preside às operações de intervenção e desintervenção do Estado nas empresas privadas, por violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa económica e do direito de propriedade privada consagrados nos artigos 61º e 62º da CRP, ofendendo igualmente o princípio de que ninguém pode ser privado da sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional, consagrado no art.º 1º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Trata-se de conclusão que não tem qualquer suporte nas alegações apresentadas, pelo que carece de substanciação mínima por falta de explanação das razões de que pudesse retirar-se a conclusão. Porém, como vem exposto acima, o acórdão recorrido, designadamente no âmbito da questão que vem colocada relativa ao alegado abuso de direito em que teria incorrido o acto impugnado, fez correcta interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis as quais, para além de já terem sido consideradas conformes à Constituição no referido acórdão do TC de fls. 189 a 431, não vêm agora arguidas de quaisquer outras inconstitucionalidades. Assim, não se vê como possa considerar-se inconstitucional o entendimento do acórdão recorrido que se limitou a interpretar e aplicar correctamente normas que dentro do sistema normativo-constitucional aplicável não foram consideradas inconstitucionais nem foram arguidas de inconstitucionalidade ou contrárias a quaisquer normas de direito internacional.”
2.Notificada deste acórdão, a recorrente interpôs o presente recurso de constitucionalidade, nos termos do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, dizendo:
«2° Nas alegações do recurso a que respeita o acórdão ora recorrido, já se dissera: “O fim legal que preside aos art.ºs 20º e 24ºdo DL n.º 422/76 não é apenas, ao contrário do que julgou o acórdão recorrido, o saneamento económico-financeiro das empresas, antes pressupõe que tal saneamento, quando possível, seja feito no respeito pela índole privada das empresas. O entendimento daqueles preceitos legais adoptado no acórdão recorrido viola os princípios constitucionais da livre iniciativa económica e do direito de propriedade privada, consagrados nos art.ºs 61º e 62º da CRP, bem como o principio de que ninguém pode ser privado da sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional, consagrado no art.º 1º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.
3° E na conclusão N dessas alegações, já se escrevera: “Por cautela, ainda se dirá que o entendimento do acórdão recorrido quanto ao fim legal que preside às operações de intervenção e desintervenção do Estado na gestão de empresas privadas, designadamente os art.ºs 20º e 24º do DL n.º 422/76 - no sentido de que é apenas o saneamento económico-financeiro das empresas que está em causa –
é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa económica e do direito de propriedade privada, consagrados nos art.ºs
61º e 62° da CRP, ofendendo igualmente o princípio de que ninguém pode ser privado da sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional, consagrado no art.º 1º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem”.
4° O acórdão ora sob recurso, acerca desta matéria, mantém a posição da decisão jurisdicional anterior, dele constando o seguinte: “Porém, como vem exposto acima, o acórdão recorrido, designadamente no âmbito da questão que vem colocada relativa ao alegado abuso de direito em que teria incorrido o acto impugnado, fez correcta interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis as quais, para além de já terem sido consideradas conformes à Constituição no referido acórdão do TC de fls. 389 a 431, não vêm agora arguidas de quaisquer outras inconstitucionalidades. Assim, não se vê como possa considerar-se inconstitucional o entendimento do acórdão recorrido que se limitou a interpretar e aplicar correctamente normas que dentro do sistema normativo-constitucional aplicável não foram consideradas inconstitucionais nem foram arguidas de inconstitucionalidade ou contrárias a quaisquer normas de direito internacional”.
5° Na óptica da Recorrente, a interpretação dos artigos 20º e 24º do D.L. n.º
422/76, na redacção em vigor à data da prolação da Resolução n.º 309/79, efectuada pelo primeiro acórdão do STA, ora confirmada pelo acórdão do Pleno ora sob recurso, no sentido de que o fim legal das operações de cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas - aí previstas - visa apenas o saneamento económico financeiro das empresas, muito particularmente não pressupondo que tal saneamento, quando possível, deva respeitar a sua índole privada, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa económica e do direito de propriedade privada, consagrados nos art.ºs. 61º e 62º da CRP , ofendendo igualmente o princípio de que ninguém pode ser privado da sua propriedade a não ser por utilidade púbica e nas condições previstas na lei e pelos princípios gerais do direito internacional, consagrado no art.º 1º do Protocolo n.º 1 adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.» Admitido o recurso no Tribunal Constitucional, foi proferido, pelo Ex.mº Conselheiro Relator, o despacho que se transcreve:
“Conforme resulta de fls. 55v., 83v., 86v., 108v. e 142, o signatário interveio como representante do Ministério Público, junto do Supremo Tribunal Administrativo, nos autos de recurso contencioso de que emerge o presente recurso de constitucionalidade. Tal intervenção assume particular relevo no que concerne à emissão de parecer
(fls. 108v) sobre a decisão final a proferir e à interposição de recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 142). No referido parecer, o signatário pronunciou-se sobre uma invocada inconstitucionalidade dos artigos 26° e 23° do Decreto-lei n.º 422/76, de 29 de Maio, no sentido de que ela se não verificava, em contrário do que veio a ser decidido no Acórdão de fls. 116 e segs. que recusou por inconstitucionalidade a aplicação das normas dos artigos 20º, n.º 1 e 23° daquele diploma legal. Pelo Acórdão n.º 257/92, o Tribunal Constitucional concedeu provimento ao recurso não julgando inconstitucional a norma do artigo 20°, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 422/76. Muito embora o presente recurso tenha por objecto as normas dos artigos 20º e
24º do Decreto-Lei n.º 422/76 numa dimensão que poderá entender-se não ser inteiramente coincidente com a que foi ponderada no parecer de fls. 108 v. e apreciada no Acórdão n.º 257/92, a verdade é que a questão de constitucionalidade ora em apreço não deixa, de algum modo, de se assemelhar à que foi então conhecida, como o revela o acórdão recorrido ao citar, em apoio ao decidido, o dito Acórdão n.º 257/92. Nestes termos e ao abrigo do artigo 122°, n.º 1, alínea c), do CPC, declaro-me impedido de intervir no julgamento.” Após mudança de relator, a recorrente foi notificada para alegar, incluindo para se pronunciar, querendo, “sobre a possibilidade de se vir a entender que a questão de constitucionalidade em causa no presente recurso coincide , ao menos em parte, com a que foi apreciada e decidida, neste mesmo processo, pelo Acórdão n.º 257/92, com a possível coincidência de sobre tal questão de constitucionalidade existir caso julgado que inviabilize, total ou parcialmente, o conhecimento do presente recurso”. A recorrente concluiu assim as suas alegações:
“A) Nestes autos, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se uma outra vez, constando o respectivo acórdão de fls. 389 a 434. B) Estava então em causa a constitucionalidade de um segmento normativo que previa uma conversão forçada de créditos em capital, mesmo que à custa da compressão dos direitos dos accionistas. C) Neste recurso, debate-se a constitucionalidade do entendimento normativo das normas em pauta no sentido de que o seu fim legal visa apenas o saneamento económico-financeiro das empresas (e eventualmente a protecção dos seus trabalhadores), sem considerar, sempre que possível, o respeito pela sua índole privada. D) Em 1992, discutia-se a constitucionalidade da conversão dos créditos em capital. Em 2004, debate-se a constitucionalidade de que o fim legal das medidas de desintervenção - particularmente a conversão dos créditos em capital - tenha apenas de ser orientado pelo saneamento económico das empresas (e eventualmente pela protecção dos seus trabalhadores), esquecendo que, sempre que possível, as medidas adoptadas devem respeitar a índole privada das empresas. Não há caso julgado. E) No acórdão ora recorrido, de fls. 626 e ss., bem como naquele que o antecedeu de fls. 514 e ss., discutia-se basicamente um vício de desvio de poder, porque a Recorrente entendia - como entende - que existe uma manifesta discrepância entre o fim legal que deve presidir a uma operação de desintervenção do Estado numa empresa privada e aquilo que - de forma primacial e determinante - fundou a Resolução n.° 309/79. F) O tema fundamental debatido pelo Supremo Tribunal Administrativo teve, pois, a ver com a identificação do fim que presidiu em concreto à operação de desintervenção da B. e com a sua eventual discrepância relativamente ao fim legal das normas invocadas. Mas essa discussão acabou por ser condicionada pela identificação de qual o fim legal em apreço, o que é obviamente determinante para avaliar a existência ou não de um vício de desvio de poder.
É aí que entra a questão de constitucionalidade ora sob recurso. G) Discute-se qual o fim legal que preside às medidas a adoptar no âmbito da cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas, que estão previstas nos art.ºs 20° e 24° do D.L. n.° 420/76, com a redacção em vigor à data da Resolução n.° 309/79. Isto implica a identificação do elemento t[el]eológico que preside à interpretação daqueles preceitos legais. H) Segundo o acórdão de fls. 514, tal fim legal é o saneamento económico-financeiro das empresas intervencionadas: Os fins legais da desintervenção são, por conseguinte, o saneamento económico-financeiro das empresas intervencionadas consideradas viáveis, prevendo a lei, para a respectiva prossecução, uma ampla gama de meios ou instrumentos. (cfr. fls. 528). I) Na óptica do acórdão recorrido, o fim legal é definido não só por aquele saneamento, mas também pela protecção dos trabalhadores das empresas: Isto é, o fim legal das medidas permitidas pela lei e que, no caso, foram adoptadas previamente à cessação da intervenção do Estado era o necessário saneamento económico-financeiro da empresa e a protecção dos seus trabalhadores.
(cfr. fls. 644). J) Em qualquer um dos arestos, esquece-se que preside também a tal fim a consideração, sempre que possível, da índole privada das empresas, o que implica o respeito pelas posições accionistas dos seus donos. L) Segundo a Recorrente, a filosofia do D.L. n.° 422/76 pressupõe tal necessidade de respeitar, sempre que possível, o estatuto privado das empresas. M) Não há, pois, lugar a qualquer dúvida quanto à circunstância do acórdão recorrido ter tomado como fim legal dos art.ºs 20° e 24° do D.L. n.° 422/76 - isto é, das medidas a adoptar no âmbito do processo de cessação da intervenção do Estado na gestão das empresas privadas - apenas o saneamento económico-financeiro dessas empresas, acrescido da protecção dos seus trabalhadores. Na óptica da Recorrente, falta a consideração - como elemento desse fim legal – da necessidade de respeitar, sempre que possível, o estatuto privado das empresas e, daí, as posições accionistas dos seus donos. N) A interpretação normativa dada pelo acórdão recorrido aos art.ºs. 20° e 24° do D.L. n.° 422/76 naturalmente que condicionou - de forma decisiva - o indeferimento do recurso interposto. O) O acórdão recorrido interpreta os art.ºs. 20° e 24° do D.L. n.° 422/76 no sentido de que o fim que deve presidir à adopção de medidas de cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas se circunscreve ao saneamento económico-financeiro dessas empresas, bem como à protecção dos seus trabalhadores. P) Tais preceitos legais assim interpretados violam os princípios constitucionais da livre iniciativa económica e do direito da propriedade privada, consagrados nos art.ºs 61 ° e 62° da CRP, bem como o princípio de direito internacional de que as pessoas têm direito ao respeito dos seus bens, ninguém podendo ser privado da sua propriedade a não ser por utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional, consagrado no art.º 1 ° do Protocolo n.° 1 Adicional à CEDH. Q) Na verdade, de acordo com tais princípios, só é admissível a intervenção do Estado na gestão de empresas privadas se, para além de outros objectivos relevantes - como são o saneamento financeiro e a protecção dos trabalhadores -, não se perder igualmente de vista a sua índole privada, o que implica o respeito das posições accionistas dos seus donos, que apenas podem ser postergadas na medida em que isso se torne necessário ou adequado ao prosseguimento daqueles outros objectivos. R) Esses princípios implicam uma avaliação - ao nível da finalidade da intervenção – da articulação entre os objectivos de saneamento e de protecção dos trabalhadores com o estatuto privado da empresa, o que no caso dos autos não aconteceu. S) A não ser assim - admitindo-se, pelo contrário, uma discricionariedade técnica absoluta nas opções a adoptar -, minar-se-ia, de forma intolerável, a protecção da confiança ínsita aos princípios constitucionais da protecção da livre iniciativa económica e da propriedade privada.” Contra-alegando, concluiu o Primeiro-Ministro:
“A) No presente recurso, foi posta em causa a constitucionalidade dos artigos
20° e 24° do DL n.° 422/76, na interpretação dada pelo Acórdão recorrido, em que se considerou que o fim que deve presidir à adopção de medidas de cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas se circunscreve ao saneamento económico-financeiro dessas empresas, bem como à protecção dos seus trabalhadores; B) Porém, as referidas medidas e o fim que elas prosseguem não violam as disposições constitucionais invocadas pela requerente (art.º 61° e 62° da CRP); C) Na verdade, as normas do Decreto-Lei n.° 422/76, elencam várias medidas e muitas delas não põem minimamente em causa a posição dos accionistas; D) A aplicação, de entre tais medidas, daquelas que consubstanciam uma redução ou diminuição da posição dos accionistas é feita quando, ponderado o fim do saneamento financeiro da empresa e o direito de propriedade, se conclua pela necessidade da prevalência do primeiro; E) A própria recorrente reconhece que o respeito pelo estatuto privado das empresas deve ser feito, sempre que possível; F) A interpretação normativa do Acórdão recorrido, não postergou, deste modo, o respeito pelo referido estatuto privado das empresas.” Por sua vez, o recorrido banco D. concluiu assim as suas contra-alegações,:
«1ª - A questão da constitucionalidade que constitui o objecto do presente recurso para o Tribunal Constitucional não pode ter-se por adequadamente
“suscitada durante o processo”, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 70º, n.º 1, b), da LTC, pelo que não é possível conhecer-se do objecto do recurso;
2ª - Nunca nos acórdãos do STA de 2/5/2002 e de 26/6/2003 proferidos a fls. dos autos foi dada aos artigos 20° e 24º do D.L. n.º 422/76 a interpretação ora sugerida pela recorrente e que esta reputa de inconstitucional;
3ª - A recorrente pretende, muito para além do que é processualmente admissível, reabrir a discussão sobre os fins últimos da actuação governativa posta em causa, como o desenvolvimento da questão nas respectivas alegações de recurso bem evidencia. Ainda que assim não fosse,
4ª - Jamais o presente recurso poderia ser julgado procedente porquanto nenhum princípio ou norma constitucional resultou violado pela actuação posta em causa, atento o quadro constitucional e legal ao tempo vigente.» Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
3.Importa começar por tratar das questões prévias que possam eventualmente obstar ao conhecimento do presente recurso, o qual vem interposto ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, constituindo requisitos específicos para que dele se possa tomar conhecimento que hajam sido esgotados todos os recursos ordinários, que a inconstitucionalidade da norma ou dimensão normativa impugnada tenha sido suscitada durante o processo e que tal norma impugnada tenha sido aplicada pela decisão recorrida. Nos termos do requerimento de recurso, este tem por objecto a apreciação da constitucionalidade dos artigos 20º e 24º do Decreto-Lei n.º 422/76, de 29 de Maio, na redacção do Decreto-Lei n.º 543/76, de 10 de Julho (em vigor à data da prolação da Resolução n.º 309/79), interpretados no sentido de que “o fim legal das operações de cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas aí previstas visa apenas o saneamento económico financeiro das empresas”. Não se suscitando qualquer questão atinente à verificação do primeiro requisito enunciado, pode também concluir-se pela improcedência da questão da falta de suscitação da inconstitucionalidade, levantada pelo 2º recorrido: como se viu, nas alegações de recurso para o Pleno da 1ª Secção do STA, a recorrente deixou expressamente suscitada, de forma clara e perceptível, a inconstitucionalidade do entendimento normativo em causa. Já é, porém, de duvidar da aplicação, pelo acórdão recorrido, da dimensão normativa impugnada – e mesmo desconsiderando a referência, que se tem por não essencial, na dimensão normativa enunciada pela recorrente, à expressão “muito particularmente não pressupondo que tal saneamento, quando possível, deva respeitar a sua índole privada” (cuja aplicação pelo tribunal recorrido se afigura também duvidosa). Na verdade, enquanto o entendimento impugnado pela recorrente é o de que “o fim legal das operações de cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas aí previstas visa apenas o saneamento económico financeiro das empresas” (itálico aditado), na decisão recorrida pode ler-se:
«(...) mesmo o Tribunal Constitucional, solicitado a verificar a conformidade das normas legais aplicadas com a Lei Fundamental vigente, entendeu, como o fez o acórdão recorrido, que o fim da lei, ou o desiderato legal como ali se diz, é a recuperação económica da empresa (e a defesa dos seus trabalhadores), isto é, o saneamento económico financeiro da empresa, como diz o art.º 20º, n.º 1, do DL
422/76, prevendo a lei que, na prossecução desse fim, possa haver lugar à adopção das medidas que foram efectivamente tomadas com alteração da estrutura accionista da empresa em que a maioria do capital acabou por ficar a pertencer a uma empresa pública (o D.), designadamente como no caso, por conversão dos respectivos créditos em capital social. Isto é, o fim legal das medidas permitidas pela lei e que, no caso foram adoptadas previamente à cessação da intervenção do Estado era o necessário saneamento económico-financeiro da empresa e a protecção dos seus trabalhadores”
(último itálico aditado)» A decisão recorrida não se baseou, pois, no entendimento de que o fim legal das operações de cessação da intervenção do Estado na gestão de empresas privadas aí previstas era apenas o saneamento económico financeiro das empresas, como enuncia a recorrente. Quanto ao artigo 24º do Decreto-Lei n.º 422/76, cumpre ainda referir que não se retira da decisão recorrida a conclusão de que esta aplicou tal norma no entendimento de que visam apenas o saneamento económico e financeiro das empresas. Se bem que, ao descrever o regime legal, se afirma no acórdão que no artigo 24º “se indicam as medidas que podem ser aplicadas no acto de desintervenção visando aquela finalidade” (o saneamento económico e financeiro), o acórdão conclui, apreciando o alegado desvio de poder, apenas no que toca ao artigo 20º, o seguinte:
“Ora, atenta a prova exibida, e como se diz no acórdão recorrido em termos que seria ocioso repetir, não está minimamente demonstrado que o fim principalmente determinante da prática do acto recorrido não condiga com aquele fim visado na lei ao conceder à Administração os adequados poderes para levar a cabo as operações tendentes à cessação da intervenção nas empresas e optar pelas medidas legais que considerasse necessárias para garantir tal fim imposto por lei (art.º
20º do DL 422/76) – de garantir o necessário saneamento económico-financeiro da empresa.» Logo por esta razão se conclui, pois, que o Tribunal Constitucional não pode tomar conhecimento do recurso.
4.À falta de coincidência entre a dimensão normativa impugnada e a aplicada na decisão recorrida, acresce, porém, pelo menos quanto ao artigo 20º, n.º 1, do diploma em questão – n.º 1 deste artigo que é o único que pode igualmente estar em causa no presente recurso (o n.º 2 do artigo 20º refere-se ao caso de não ser possível executar as medidas referidas no número anterior antes da cessação da intervenção, e não foi aplicado pelo tribunal recorrido) –, uma outra razão para se não poder tomar conhecimento do presente recurso: sobre a norma em questão existe caso julgado nos autos, firmado pelo Acórdão n.º 257/92. Na verdade, neste aresto (e seria totalmente descabido discutir agora a sua fundamentação, bem como a maior ou menor correcção, em si mesma, das soluções normativas em causa) não se julgou inconstitucional a norma do artigo 20º, n.º
1, do Decreto-Lei n.º 422/76, de 29 de Maio, na redacção do Decreto-Lei n.º
543/76, de 10 de Julho, no segmento em que se previa a conversão de créditos em capital (“autorizando-se a realização do aumento do capital social através da conversão de créditos existentes sobre as empresas intervencionadas”), consequentemente se tendo concedido provimento ao recurso e determinando a reforma de decisão que se havia baseado na inconstitucionalidade desse segmento normativo. E disse-se na fundamentação desse acórdão n.º 257/92:
“À luz do exposto, o objecto do recurso há-de circunscrever-se à apreciação e julgamento da questão de constitucionalidade da norma do artigo 20º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/76 (na versão do Decreto-Lei n.º 543/76), não se tomando conhecimento, consequentemente, da questão de constitucionalidade relativa à norma do artigo 23º do mesmo diploma legal.
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7 – Como já se observou, o direito de propriedade privada, o direito de empresa e o direito de iniciativa privada, não dispunham na versão originária da Constituição, como aliás não dispõem hoje em dia, pese embora a marcada alteração entretanto sofrida pelo ordenamento jurídico-constitucional, de um valor absoluto, conhecendo um conjunto de fortes limitações. Decorria dos artigos 82º e 85º do texto constitucional, a afirmação da discricionariedade legislativa na definição das formas de intervenção do Estado e na liberdade de empresa privada, como decorria do artigo 62º que o direito de propriedade privada apenas era garantido dentro dos limites e nos termos definidos em outras normas constitucionais, nomeadamente as que integravam a Constituição económica. Ao definir a intervenção do Estado na gestão das empresas privadas, a Constituição apenas condicionava o legislador ordinário em termos de a intervenção se destinar ao asseguramento do interesse geral e dos direitos dos trabalhadores (artigo 85º, n.º 3). Mas, o acto de intervenção não valia por si, havendo de ser avaliado em função dos objectivos que através dele o legislador visava alcançar. A autorização constitucional para a intervenção do Estado na gestão das empresas privadas, ao legitimar o acto de intervenção em si mesmo considerado, pressupunha que esta havia de pautar-se pela adopção de um conjunto de medidas relativamente às empresas intervencionadas em ordem à concretização do seu fim específico: a recuperação económico-financeira da empresa, orientada no sentido do interesse geral e da defesa dos direitos dos trabalhadores. A credencial concedida pela Constituição ao legislador ordinário permitia que os direitos das empresas intervencionadas (direitos de propriedade ou direitos de iniciativa privada), no quadro da crise geradora da própria intervenção, pudessem ser eventualmente limitados, na medida em que isso se apresentasse como condição necessária à realização de outros direitos também constitucionalmente tutelados, desde logo, todos aqueles que o texto constitucional instituía para os meios de produção.
À luz deste princípios, e no contexto peculiar em que eles se aplicavam, se há-de avaliar a legitimidade constitucional da norma do artigo 20º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/76. A cessação da intervenção do Estado, ali prevista, haveria de ser precedida das medidas necessárias ao “saneamento económico-financeiro da empresa, incluindo, nomeadamente, a sua transformação em empresa de economia mista ou toda e qualquer operação de fusão, cisão, transformação, aumento ou redução de capital, designadamente através da conversão de créditos em capital (...)”. Deste modo, autorizando-se a realização do aumento do capital social através da conversão de créditos existentes sobre as empresas intervencionadas, não se garantia, na medida e dimensão desses mesmos créditos, os direitos de preferência que os antigos accionistas pudessem ter sobre a emissão de novas acções. E a privação, por parte dos accionistas, desse direito de preferência, envolvia ou podia envolver, a perda daquilo a que o acórdão recorrido chama “domínio da sociedade”. Existiria no texto constitucional, nomeadamente nas normas atrás invocadas, credencial bastante para um regime jurídico assim concebido?
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8 – À data da aprovação da Resolução n.º 309/79 e da ulterior aplicação ao caso concreto da norma do artigo 20º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/76, não existia no nosso ordenamento jurídico qualquer preceito legal a consagrar expressamente o direito de opção dos accionistas na subscrição de acções ordinárias de uma nova emissão, pronunciando-se, aliás, a doutrina mais autorizada no sentido do seu não reconhecimento legal [cfr. Ferrer Correia, (Se o aumento do capital social com admissão de novos sócios é acto de alienação, para efeitos do artigo
150º do Código Civil), Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 95º, pp.
194 e ss., Fernando Olavo, Aumento de Capital Social (um feixe de questões), O Direito, Ano 95º, 1963, Abril-Junho, pp. 97 e ss. e J. G. Pinto Coelho,
(Representação de sócio menor no exercício de direitos sociais), Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 95º, pp. 67 e ss.]. A esse tempo, apenas o Decreto n.º 1645, de 15 de Junho de 1915 (suspenso na sua execução pela Lei n.º 338, de 30 de Julho de 1915, mas reposto em vigor pelo Decreto n.º 4118, de 18 de Abril de 1918), concedia aos antigos accionistas o direito de opção para subscreverem os aumentos de capital desde que realizados através da emissão de acções privilegiadas, sendo certo que nunca logrou aceitação doutrinal generalizada o entendimento defendido por Amândio Anes de Azevedo, O direito de preferência dos accionistas na subscrição de novas acções emitidas pela sociedade, Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XVI, 1969, pp. 103 e ss., no sentido de uma aplicação analógica deste diploma, nomeadamente do seu artigo 3º, à emissão de acções ordinárias. A consagração legal do direito de preferência dos accionistas em aumentos de capital veio a ser concretizada no nosso direito pelo Código das Sociedades Comerciais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro (cfr. artigos
458º, 266º e 267º, bem como o comentário aquele compêndio normativo feito por Raúl Ventura, Alterações do Contrato de Sociedade, Almedina, Coimbra, 1986, pp.
172 e ss.). Sendo assim, no caso dos autos, a posição dos antigos accionistas não se encontra protegida por lei beneficiando, contudo, da tutela estatutária que lhes concedia preferência na subscrição de novas acções na proporção das que já possuíam. Ora, a norma do artigo 20º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/76, ao consentir o aumento do capital das empresas intervencionadas, designadamente através da conversão de créditos em capital, no específico plano da dimensão desses créditos, poderia ocasionar uma compressão transitória dos direitos estatutários daqueles accionistas, na medida em que, ao menos conjecturalmente, lhes criava uma limitação ou possibilidade de limitação no acesso a uma parte do capital social emitido. Simplesmente, a possibilidade de compressão ou limitação desses direitos, bem podia apresentar-se como condição do saneamento económico-financeiro das empresas intervencionadas, e, simultaneamente, da própria cessação da intervenção do Estado. A Constituição, ao remeter para a lei os meios e as formas de intervenção (e de desintervenção), concedia ao legislador ordinário credencial bastante para limitar e condicionar o exercício daqueles direitos estatutários, em ordem à concretização das medidas necessárias à recuperação económica da empresa e à defesa dos direitos dos seus trabalhadores, sendo certo que a conversão de créditos em capital social prevista naquela norma, ao menos teoricamente, não se apresenta como meio inidóneo ou inadequado à concretização daquele desiderato legal.
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9 – Mas, sustenta-se na decisão recorrida, esta limitação dos direitos dos antigos accionistas envolveu, para eles, a perda do “domínio da sociedade sem qualquer indemnização”. Independentemente da natureza jurídica a atribuir a semelhante conceito, há-de dizer-se que a intervenção do Estado na gestão das empresas não pode confundir-se com um acto de expropriação ou de nacionalização. Com efeito, enquanto na expropriação (em sentido estrito) se verifica a privação, por acto de autoridade pública e por motivo de utilidade pública, da propriedade ou do uso de determinada coisa, e na nacionalização, por acto político, tem lugar a transferência, normalmente de uma universalidade de bens, para a propriedade nacional (cfr. sobre esta matéria, Luís S. Cabral de Moncada, Direito Económico, Coimbra, 1986, pp. 198 e ss., Manuel Afonso Vaz, Direito Económico, Coimbra, 1977, pp. 192 e ss. e Acórdão do Tribunal nº 39/88, Diário da República, I série, de 3 de Março de 1988), a intervenção do Estado na gestão das empresas privadas visava, prioritariamente, corrigir desiquilíbrios fundamentais na sua situação económico-financeira e defender o interesse nacional, não podendo redundar, como aliás se acentuava no preâmbulo do Decreto-lei n.º 422/76, “num processo indirecto de nacionalizações”. Seja como for, o Estado achava-se constitucionalmente autorizado a exercer a gestão da empresa, a gestão controlada da empresa, em termos de evitar a sua dissolução ou a declaração da sua falência, resultados esses que, ao menos potencialmente, poderiam afectar o interesse da economia nacional e os direitos dos trabalhadores. Assim, a eventual alteração das posições accionistas autorizada pela norma sob sindicância há-de ser entendida no âmbito global do quadro complexo da intervenção e dos fins essenciais através desta perseguidos e tutelados pela Constituição e pela lei. E há-de ser avaliada também à luz do significado económico daquilo a que se chamou o “domínio da sociedade”.
É que, no contexto de uma situação de grave crise económica e num quadro de falência técnica anunciada, “o domínio da sociedade” apresenta-se como algo despojado de valor económico, aparentemente insusceptível de ocasionar, por ausência dos seus pressupostos condicionadores, uma qualquer indemnização. E por assim ser, num contexto deste tipo, a norma sob controvérsia, não se mostrando intoleravelmente desproporcionada no tratamento da situação nela prevista (mesmo quando interpretada no sentido de consentir a conversão de créditos em capital sem indemnização, podendo envolver uma alteração da estrutura accionista das empresas intervencionadas), não atenta contra o texto constitucional.» Concorde-se ou não com a decisão a que se chegou no Acórdão n.º 257/92, resulta claramente desta decisão que o juízo de não inconstitucionalidade do artigo 20º, n.º 1, do Decreto n.º 422/76 se baseou na ponderação da respectiva estatuição – a conversão dos créditos em capital – também à luz do seu “fim específico”: “a recuperação económico-financeira da empresa, orientada no sentido do interesse geral e da defesa dos direitos dos trabalhadores”. E, apreciando tal elemento teleológico da norma – que, evidentemente, é de distinguir do seu teor, consistente nas consequências jurídicas que comanda –, concluiu pela inexistência de inconstitucionalidade. A apreciação da constitucionalidade do segmento normativo do artigo 20º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 422/76, na parte em que previa a conversão de créditos em capital, mesmo que com compressão dos direitos dos accionistas e independentemente da sua manifestação de vontade, incluiu, pois, já a ponderação do “fim legal” ora em causa – tendo, aliás, o acórdão recorrido sido proferido justamente em recurso de um outro que visara dar execução ao acórdão do Tribunal Constitucional, aplicando as normas que neste não haviam sido julgadas inconstitucionais. Por outro lado, a circunstância de o Acórdão n.º 257/92 ter sido proferido na sequência de uma recusa de aplicação de um segmento daquele artigo 20º, n.º 1, e de agora a recorrente invocar um vício de desvio de poder é irrelevante para afectar a coincidência de dimensões normativas em causa: com a ponderação de todos os elementos de interpretação (incluindo o elemento teleológico), o que está em causa é sempre a previsão da conversão de créditos em capital da empresa intervencionada, independentemente da vontade dos acccionistas, e a constitucionalidade desta solução normativa já foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, nestes mesmos autos. III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento do presente recurso e condenar a recorrente em custas, com 15 (quinze) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 15 de Fevereiro de 2005
Paulo Mota Pinto Maria Fernanda Palma Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos