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Processo n.º 85/06
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal
Constitucional,
1. A. vem reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no
n.º 3 do artigo 78.º‑A [por manifesto lapso refere o n.º 4 do artigo 76.º] da
Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional,
aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela
Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), da decisão sumária do relator, de
2 de Fevereiro de 2006, que decidiu, no uso da faculdade conferida pelo n.º 1
do mesmo preceito, não conhecer do objecto do presente recurso.
1.1. A decisão sumária reclamada tem o seguinte teor:
“1. A. interpôs, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º
13‑A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), recurso do acórdão do Tribunal da Relação de
Coimbra, de 30 de Novembro de 2005, que, além do mais, negou provimento ao
recurso por ele interposto contra o acórdão do Tribunal Colectivo do 2.º Juízo
da Comarca de Seia, de 14 de Julho de 2005, que o condenou, pela prática de um
crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º, n.º 1, e
204.º, n.ºs 1, alínea e), e 2, alínea e), na pena de três anos de prisão e na
pena acessória de expulsão do território nacional com interdição de entrada no
mesmo território pelo período de cinco anos.
De acordo com o respectivo requerimento de interposição de recurso:
«2 – Pretende‑se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do artigo
412.°, n.°s 3, alíneas b) e c), e 4, do Código de Processo Penal, quando
aplicada com a interpretação e o alcance dados àquele normativo, pelo Venerando
Tribunal da Relação de Coimbra, ao considerar que o recorrente, no recurso que
interpôs para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra do douto Acórdão
proferido pelo Tribunal Judicial de Seia, não procedeu ao cumprimento dos ónus
impostos nas alíneas b) e c) dos n.°s 3 e 4 do artigo 412.° do Código de
Processo Penal, tendo como consequência a vedação ao Venerando Tribunal da
Relação de Coimbra da apreciação da prova testemunhal produzida em audiência de
discussão e julgamento, e a mesma fixada, uma vez que, em tal recurso, o
recorrente estava impossibilitado de especificar as provas que impunham decisão
diversa da recorrida e as provas que deveriam ser renovadas, bem como estava
impossibilitado de proceder a tais especificações por referência aos suportes
técnicos, e respectiva transcrição, conforme estabelece o artigo 412.°, n.°s 3,
alíneas b) e c), e 4, do Código de Processo Penal, dado que nada ficou gravado
no registo em suporte fonomagnético da sessão de audiência de julgamento
realizada em 8 de Julho de 2005 e à qual se reporta a acta de fls. 1561 a 1566.
3 – Sendo certo que foi a ausência dessa documentação da prova que impediu o
recorrente de proceder às especificações acima mencionadas e atendendo a que
nessa sessão de audiência de julgamento foram produzidos os depoimentos das
testemunhas B. e C. e que, conforme resulta da fundamentação do douto Acórdão
proferido pelo Tribunal Judicial de Seia, contribuíram de forma relevante e
fundamental para a convicção daquele Tribunal de modo a considerar provados os
factos enumerados de 36 a 52 da matéria de facto provada e constante do Acórdão
proferido por aquele Tribunal.
4 – Tal realidade foi alegada pelo recorrente no seu requerimento de
interposição de recurso, bem como na sua motivação, conforme resulta de fls.
..., tendo determinado a sua impossibilidade de recorrer da matéria de facto
fixada pelo Tribunal de 1.ª Instância.
5 – A aplicação do artigo 412.°, n.°s 3, alíneas b) e c), e 4 do Código de
Processo Penal pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, com a
interpretação e o alcance que lhe foram conferidos pelo douto Acórdão
recorrido, violou as garantias de defesa do recorrente na vertente do seu
direito ao recurso, em sede de matéria de facto, consagrado no artigo 32.°,
n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
6 – Mais pretende o recorrente ver apreciada a questão da inconstitucionalidade
da norma do artigo 374.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, quando
interpretada e aplicada no sentido em que o Venerando Tribunal da Relação de
Coimbra o fez, no douto Acórdão recorrido, considerando a factualidade dada
como provada harmónica, fundamentada e bastante para servir de suporte à
condenação do ora recorrente e quando omite a questão de saber como é que a
partir dos depoimentos das testemunhas B. e C. veio a considerar como provado
que o recorrente praticou o crime de furto qualificado, desde logo o
arrombamento da porta e o corte do cofre. Sendo certo que a demonstração do modo
como aqueles meios de prova foram utilizados pelo Tribunal recorrido para firmar
a convicção da autoria pelo recorrente de tais factos é um requisito essencial
à correcta fundamentação da matéria de facto dada como assente e, por
conseguinte, ao cumprimento efectivo do disposto no artigo 374.°, n.º 2, do
Código de Processo Penal.
7 – A aplicação do artigo 374.°, n.° 2, do Código de Processo Penal pelo
Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, com a interpretação e o alcance que
lhe foram conferidos pelo douto Acórdão recorrido violou o princípio in dubio
pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência
consagrado no artigo 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa e o
princípio da fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.°,
n.° 1, da Lei Fundamental.
8 – A questão da inconstitucionalidade foi suscitada nos presentes autos no
recurso interposto pelo recorrente do douto Acórdão proferido pelo Tribunal
Judicial de Seia a fls. ... do presente processo.
9 – A interpretação e aplicação dadas à norma do artigo 412.°, n.°s 3, alíneas
b) e c), e 4, do Código de Processo Penal pelo douto acórdão proferido pelo
Venerando Tribunal da Relação de Coimbra verificou‑se com a notificação ao ora
recorrente de tal acórdão, pelo que o mesmo só nesse momento conheceu de tal
interpretação e aplicação, que reputa como inconstitucional. Por conseguinte,
só perante o acórdão proferido pelo Tribunal Superior se viu o recorrente na
possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa, fazendo‑o agora e no
primeiro momento em que se lhe impõe fazer.
10 – Pelo exposto, deve considerar‑se tal suscitação de inconstitucionalidade
efectuada de modo processual e atempadamente adequado para os efeitos da
alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada
pela Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei
n.º 143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei
n.º 88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro.
11 – Por último, o recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade
do douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, no
sentido em que não dá cumprimento ao disposto na alínea c) do n.° 1 do artigo
379.° do Código de Processo Penal, uma vez que o acórdão em causa não se
pronuncia sobre o não acesso do ora recorrente à documentação da prova produzida
na sessão de audiência de julgamento realizada em 8 de Julho de 2005 e a sua
consequente impossibilidade de recorrer da matéria de facto fixada pelo
Tribunal Judicial de Seia, com clara violação do direito ao recurso do
recorrente, no que respeita à matéria de facto, consagrado no artigo 32.°, n.°
1, da Constituição da República Portuguesa, sendo certo que tal questão tinha
que ser apreciada por aquele Tribunal Superior e foi suscitada no recurso
interposto pelo ora recorrente do douto acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª
Instância.»
O recurso foi admitido por despacho do Desembargador Relator do Tribunal da
Relação de Coimbra, decisão que, como é sabido, não vincula o Tribunal
Constitucional (artigo 76.º, n.º 3, da LTC), e, de facto, entende‑se que, no
caso, o recurso é inadmissível, o que permite a prolação de decisão sumária,
ao abrigo do disposto no artigo 78.º‑A, n.º 1, da LTC.
2. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a
competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge‑se ao controlo da
inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade
constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas,
hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o
sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de
inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si
mesmas consideradas, ou a condutas ou omissões processuais. A distinção entre
os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa
daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na
primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério
normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter
de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações,
enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios
normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Por outro lado, tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua
admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão
de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2 do artigo
72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente. Aquele primeiro requisito (suscitação da questão de
inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, antes de proferida a
decisão impugnada) só se considera dispensável nas situações especiais em que,
por força de uma norma legal específica, o poder jurisdicional se não esgota
com a prolação da decisão recorrida, ou naquelas situações, de todo
excepcionais ou anómalas, em que o recorrente não dispôs de oportunidade
processual para suscitar a questão de constitucionalidade antes de proferida a
decisão recorrida ou em que, tendo essa oportunidade, não lhe era exigível que
suscitasse então a questão de constitucionalidade.
Constitui jurisprudência consolidada deste Tribunal Constitucional que o
apontado requisito só se pode considerar preenchido se a questão de
constitucionalidade tiver sido suscitada antes de o tribunal recorrido ter
proferido a decisão final, pois com a prolação desta decisão se esgota, em
princípio, o seu poder jurisdicional. Por isso, tem sido uniformemente
entendido que, proferida a decisão final, a arguição da sua nulidade ou o pedido
da sua aclaração, rectificação ou reforma não constituem já meio adequado de
suscitar a questão de constitucionalidade, pois a eventual aplicação de uma
norma inconstitucional não constitui erro material, não é causa de nulidade da
decisão judicial, não a torna obscura ou ambígua, nem envolve «lapso manifesto»
do juiz quer na determinação da norma aplicável, quer na qualificação jurídica
dos factos, nem desconsideração de elementos constantes do processo que
implicassem necessariamente, só por si, decisão diversa da proferida. E também,
por maioria de razão, não constitui meio adequado de suscitar a questão de
constitucionalidade a sua invocação, pela primeira vez, no requerimento de
interposição do recurso de constitucionalidade ou nas respectivas alegações.
3. Recordados estes critérios, torna‑se patente que o presente recurso é
inadmissível, desde logo por não ter sido adequadamente suscitada, pelo
recorrente, perante o tribunal recorrido, qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa.
Na verdade, as questões suscitadas na motivação do recurso penal interposto
pelo ora recorrente para o Tribunal da Relação de Coimbra encontram‑se
sintetizadas nas respectivas conclusões, do seguinte teor:
«1.ª – Por douto acórdão de fls. ..., foi o arguido A. condenado pela
prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos
203.°, n.° 1, e 204.°, n.°s 1, alínea e), e 2, alínea e), do Código Penal, na
pena de três (3) anos de prisão.
2.ª – Salvo o devido respeito, a matéria de facto dada como provada em sede
de audiência de julgamento e os princípios que norteiam o direito penal impõem
uma decisão distinta da que foi proferida pelo Tribunal a quo.
3.ª – Atendendo à produção da prova realizada em sede de audiência de
discussão e julgamento, o ora recorrente considera que os factos vertidos nos
pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 57 e 58 da matéria de facto provada, constantes do acórdão
recorrido, não podiam ser dados como provados pelo Tribunal recorrido.
4.ª – Efectivamente, perante a prova produzida em julgamento e sua análise, o
Tribunal recorrido não podia ter concluído pela responsabilização criminal do
ora recorrente.
5.ª – Os depoimentos das testemunhas B. e C. em caso algum demonstram que o
arguido A. tenha praticado o crime de furto qualificado pelo qual foi
condenado.
6.ª – O Tribunal recorrido não explicitou o raciocínio lógico que lhe permitiu
firmar a convicção de que o recorrente cometeu o crime de furto qualificado.
7.ª – Efectivamente, a fundamentação fáctica da matéria dada como assente pelo
Tribunal a quo é omissa relativamente à questão de saber como é que a partir dos
depoimentos das testemunhas acima referidas se veio a considerar como provado
que o arguido tenha praticado o ilícito penal imputado na acusação, desde logo o
arrombamento de porta e o corte do cofre.
8.ª – A demonstração do modo como estes meios de prova foram utilizados pelo
Tribunal recorrido para firmar a convicção da autoria pelo arguido dos factos
descritos na acusação é um requisito essencial à correcta fundamentação da
matéria fáctica dada como assente e, por conseguinte, ao cumprimento efectivo do
disposto no artigo 374.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.
9.ª – Perante uma prova débil, equívoca e insuficiente produzida na audiência
de julgamento, o Tribunal recorrido concluiu que o arguido praticou o alegado
crime de furto qualificado.
10.ª – Ao actuar da forma como fez, o Tribunal recorrido violou o princípio in
dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de
inocência, estabelecido no artigo 32.°, n.° 2, da Constituição da República
Portuguesa, e o princípio da fundamentação das decisões judiciais, consagrado no
artigo 205.°, n.° 1, da Lei Fundamental Portuguesa, bem como o disposto nos
artigos 97.°, n.º 4, e 374.°, n.° 2, do Código de Processo Penal.
11.ª – Pelo exposto, deve o recorrente ser absolvido do crime de furto
qualificado.
12.ª – Sem prescindir, entende o arguido e ora recorrente que a pena aplicada
pelo Tribunal a quo é inadequada e excessiva, face aos elementos de facto
apurados em sede de audiência de julgamento.
13.ª – Na verdade, o ora recorrente não tem antecedentes criminais.
14.ª – Tem 30 anos de idade.
15.ª – O ora recorrente tem a sua família na Roménia.
16.ª – O cumprimento de uma pena de três anos de prisão efectiva é brutal para
o recorrente.
17.ª – Todos estes elementos são essenciais na determinação da medida concreta
da pena a aplicar de acordo com o disposto no artigo 71.° do Código Penal.
18.ª – Salvo o devido respeito, perante a factualidade provada e face à
fundamentação da douto acórdão, verifica‑se que o Tribunal recorrido não
procedeu a uma criteriosa ponderação das circunstâncias provadas, em ordem à
determinação da pena a aplicar ao arguido A..
19.ª – Ao condenar o arguido da forma como o fez, o Tribunal a quo não teve em
consideração o papel que a pena de prisão tem no actual sistema sancionatório
penal português.
20.ª – Fazendo errada interpretação e aplicação dos artigos 71.°, 203.° e 204.°
do Código Penal.
21.ª – Violou o Tribunal recorrido os princípios político‑criminais da
necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da pena de prisão
consagrados na nossa lei substantiva.
22.ª – Entende o arguido e ora recorrente, sem prescindir, que a pena aplicada
deve situar‑se perto do limite mínimo da moldura penal, por se afigurar mais
correcta no caso em apreço e conforme o direito penal.
23.ª – Mais devendo ser suspensa na sua execução ao abrigo do disposto no
artigo 50.° do Código Penal.
24.ª – Na verdade, tendo em consideração os aspectos acima mencionados e dados
como provados em sede de julgamento, é lícito concluir que a simples censura
dos factos e a ameaça da pena serão suficientes para afastar o arguido da
criminalidade, ficando também satisfeitas as exigências de prevenção e reparação
dos crimes.
25.ª – Não podendo o Tribunal recorrido afirmar que o arguido revela uma
personalidade incapaz de assumir e interiorizar a sua culpa, uma vez que o
arguido exerceu o direito ao silêncio que lhe é consagrado, tendo sido julgado
num País que não é o seu.»
Como é patente, nesta peça não foi suscitada nenhuma questão de
inconstitucionalidade normativa, limitando‑se o recorrente, na conclusão 10.ª,
a imputar directamente à decisão judicial então impugnada a violação de normas
de direito ordinário (artigos 97.°, n.º 4, e 374.°, n.° 2, do Código de
Processo Penal) e princípios constitucionais («o princípio in dubio pro reo,
constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência,
estabelecido no artigo 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa, e
o princípio da fundamentação das decisões judiciais, consagrado no artigo
205.°, n.° 1, da Lei Fundamental Portuguesa»), e, na conclusão 21.ª, a imputar,
de novo à decisão judicial em causa, a violação dos «princípios
político‑criminais da necessidade, da proporcionalidade e da subsidiariedade da
pena de prisão consagrados na nossa lei substantiva».
4. Por seu turno, o acórdão ora recorrido, a propósito da impugnação da
matéria de facto, consignou:
«Questionam os dois primeiros recorrentes a matéria de facto fixada pelo
Tribunal e que motivou a respectiva condenação, mas fazendo‑o de uma forma
generalizada, dizendo o primeiro [D.] que apenas se baseou o Tribunal em
“provas indiciárias e circunstanciais” e o segundo [A.] afirmando que se
alicerçou, a decisão, numa “prova débil, equívoca e insuficiente”.
Ora o que se vê de manifestamente insuficiente é esta forma de argumentação
traduzida na diversa opinião sobre a fundamentação da prova que serviu de base
para alicerçar o acervo factual vertido no acórdão.
E assim que, sem complexidade de maior se nos apresenta esta questão aportada
que se reconduz unicamente a discordância sobre o julgamento efectuado pelo
tribunal e, assim, ao princípio da apreciação da prova com derivada e óbvia
invocação do erro notório na apreciação desta.
Com efeito, limitam‑se os recorrentes a dar uma versão dos factos diversa da
que apurada foi em tribunal, criticando, sem mais, a maneira como o tribunal
formou a sua convicção.
Ora, contrariamente ao invocado, cuidou o tribunal de esclarecer, de forma
quase exaustiva, o raciocínio lógico e crítico dos meios de prova conducentes
àquele acervo factual, fazendo, aliás, descrição pormenorizada dos depoimentos
e declarações prestadas em audiência.
E tanto assim é que o recorrente não ousa sequer questionar essa descrição
probatória, limitando‑se a daí retirar diferentes e muito próprias
(convenientes) conclusões.
A invocada absolvição estaria apenas dependente da ausência de prova, a qual,
porém, se mostra abundantemente fundamentada.
Ainda na análise desta questão, qual seja a da apreciação da prova feita em
julgamento, diremos que os recorrentes não contestaram os factos apurados, da
forma legalmente exigível.
De harmonia com o disposto no artigo 412.°, n.º 3, do CPP (como os que se
seguirem, sem menção de origem), quando o recorrente impugne matéria de facto
tem de cumprir os ónus de especificação referidos neste normativo, a saber:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida:
c) As provas que hão‑de ser renovadas.
Acrescentando o n.º 4 do mesmo artigo que, quando as provas tenham sido
gravadas, as especificações referidas nas alíneas b) e c) se fazem por
referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição.
Cotejando a motivação e conclusões dos recorrentes, verifica‑se que elas não
obedecem a tais imposições legais.
Assim, independentemente da posição que se tome acerca do ónus da transcrição,
no caso em apreço, não tendo sido cumpridos os demais ónus impostos aos
recorrentes pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.°, a consequência é ficar desde logo
vedada ao tribunal a apreciação da prova testemunhal, artigo 431.°, e, assim
sendo, tem de se considerar a mesma fixada, sem prejuízo de se poder conhecer
dela no estrito âmbito do artigo 410.°, n.º 2.»
Entrando de seguida na apreciação da eventual ocorrência de erro notório,
prossegue o acórdão recorrido:
«Apesar de os recorrente não invocarem qualquer dos vícios a que se reporta o
n.° 2 do artigo 410.º – aliás, ao longo das suas motivações e conclusões,
nunca se «dignaram» invocar qualquer norma onde se encontre arrimo para a tese
defendida –, a leitura das conclusões de recurso levam‑nos a concluir que o
vício que se quer apontar só pode consistir no erro notório da apreciação da
prova, que frequentemente é confundido com a valoração e apreciação das provas,
como é o caso.
Ora, como escrevem Simas Santos e Leal Henriques [Código de Processo Penal
Anotado, II vol., 2.ª edição, p. 740]: “Verifica‑se erro notório quando se
retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável,
quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter
acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um
facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou
notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando
determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório
com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto do decisão
recorrida”.
E continuam: “Mas quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente
admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro”.
Quanto ao vício do erro notório na apreciação da prova a que se reporta a alínea
c) do n.º 2 do artigo 410.º, escreve‑se, também, no Acórdão do Supremo Tribunal
de Justiça, de 15 de Abril de 1982 [Boletim do Ministério da Justiça, n.º 476,
p. 91; no mesmo sentido, cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de
Outubro de 1999, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de
Justiça, ano VII, tomo 3.º, p. 186], “como se vem reafirmando constantemente,
não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que
teria sido a do próprio recorrente... e só existe quando, do texto da decisão
recorrida por si só ou conjugada com as regras do experiência comum, resulta por
demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Erro tão
crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer
exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida
extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica
ou excluindo dela algum facto essencial.”
Pois bem, basta ler a fundamentação exaustiva plasmada na sentença e
confrontá‑la com os factos dados como provados e não provados para logo se ver
que a sentença recorrida não incorreu neste vício; aliás, da simples leitura das
conclusões de recurso a que nos estamos a reportar e da motivação onde elas se
apoiam resulta desde logo que o recorrente não aponta qualquer vício intrínseco
à sentença, mas antes quer é atacar a motivação e a valoração das provas que
determinaram que a sentença desse como provados e não provados os factos que
dela constam.»
No que concerne ao requisito da fundamentação da decisão então impugnada,
expendeu o acórdão ora recorrido:
«Quanto ao desiderato de uma decisão fundamentada, rege o artigo 374.º, n.º
2, que impõe que na motivação da sentença se faça “uma exposição tanto quanto
possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que
fundamentaram a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram
para formar a convicção do tribunal”.
No nosso sistema processual penal, em matéria de apreciação da prova, rege o
artigo 127.°, que estabelece o princípio da livre apreciação da prova, também
designado por sistema da íntima convicção ou de prova moral, que se contrapõe ao
sistema da prova legal, que implica a pré‑fixação pelo legislador da valoração
dos meios de prova.
Esta regra da livre apreciação da prova “não se confunde com a apreciação
arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova, de todo em todo imotivável. O
julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a
verdade material, deve observância a regras de experiência comum, utilizando
como método de avaliação e aquisição do conhecimento critérios objectivos,
genericamente susceptíveis de motivação e de controlo” [cf. Simas Santos e Leal
Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, p. 685].
Ou, como se escreve no Acórdão desta Relação, de 23 de Abril de 1998 [Colectânea
de Jurisprudência, ano XXIII, tomo 2.º, p. 60, que, por sua vez, remete para os
Profs. Figueiredo Dias e Castanheira Neves]: “O julgador é livre na apreciação
da prova, conquanto vinculado esteja aos princípios em que se consubstancia o
direito probatório (artigo 127.°), pelo que a liberdade concedida se trata de
uma liberdade de acordo com um dever, qual seja o de perseguir a chamado
verdade material, de tal sorte que a apreciação há‑de ser, em concreto,
recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de
motivação e de controle”.
E continua: “Deste modo, a liberdade do juiz, neste particular, mais não é que a
liberdade para a objectividade, aquela que se concede e se assume em ordem a
fazer triunfar a verdade objectiva, isto é, uma verdade que transcenda a pura
subjectividade e que se comunique e imponha aos outros”.
Citando o Prof. Germano Marques da Silva [Curso de Processo Penal, vol. II,
pp. 126/127]: “O juízo sobre a valoração do prova tem diferentes níveis. Num
primeiro aspecto, trata‑se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de
prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não
racionalmente explicáveis (v. g., a credibilidade que se concede a um certo meio
de prova). Num segundo nível, referente à valoração da prova, intervêm as
deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e
agora já as interferências não dependem substancialmente da imediação, mas
hão‑de basear‑se na correcção do raciocínio, que há‑de basear‑se nas regras da
lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo
englobar na expressão regras da experiência.”
Chamaram‑se estes ensinamentos à colação para dizer que os julgadores do
tribunal de recurso, a quem está vedada a imediação e a oralidade em toda a
extensão – mesmo quando se põe em causa a matéria de facto e se cumprem todos
os procedimentos dos n.°s 3 e 4 do artigo 412.°, [o que] de todo em todo não
aconteceu no caso dos autos – só podem afastar‑se do juízo feito pelo julgador
da primeira instância naquilo que não se tiver operado em consonância com a
fundamentação de que trata o artigo 374.°, n.º 2.
O que os recorrentes pretendem é substituir a convicção do tribunal, que é a
que releva, nos termos dos citados artigos 127.° e 374.°, n.º 2, pela sua
própria convicção.
O Código de Processo Penal consagra a obrigação de fundamentar a sentença nos
artigos 97.°, n.° 4, e 374.°, n.° 2, exigindo que sejam especificados os
motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame
crítico das provas que serviram para formar a convicção.
São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.° do
Código de Processo Penal).
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade:
o juiz lança‑se à procura do “realmente acontecido”, conhecendo, por um lado, os
limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por
outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca derivados da(s) finalidade(s)
do processo [Cristina Líbano Monteiro, Perigosidade de inimputáveis e “in dubio
pro reo”, Coimbra, 1997, p. 13].
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da
entidade competente, salvo quando a lei dispuser diferentemente (artigo 127.°
do Código de Processo Penal).
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova
nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de
prova: a prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a
critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem
jurídica [Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 4.ª edição, 1991,
p. 221, com citação de Alberto dos Reis, Cavaleiro de Ferreira, Eduardo Correia
e Marques Ferreira].
Daqui resulta, como salienta Marques Ferreira, um sistema que obriga a uma
correcta fundamentação fáctica das decisões que conheçam a final do objecto do
processo, de modo a permitir‑se um efectivo controlo da sua motivação [Jornadas
de Direito Processual Penal, p. 228].
Ora, a impugnada decisão obedece, rigorosamente, a estes ditames,
designadamente no aspecto da garantia dos direitos dos arguidos e ora
recorrentes, como supra se deixou explicitado, vendo‑se uma factualidade
harmónica, fundamentada e bastante para servir de suporte às condenações
prolatadas.»
Por último, após considerações sobre a correcção da medida das penas
aplicadas e ponderação do pedido de suspensão da sua execução, o acórdão ora
recorrido, a propósito da alegada violação do princípio in dubio pro reo,
consignou o seguinte:
«Todos os arguidos/recorrentes e na sequência da impugnação da matéria de facto
aqueles primeiros, aduzem a violação deste princípio.
Traduz, esta regra, o correspectivo da culpa em direito penal ou “a dimensão
jurídico‑procesual do princípio jurídico‑material da culpa concreta como
axiológico‑normativo da pena” [Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da
República Portuguesa Anotada].
“O princípio in dubio pro reo aplica‑se sem quaisquer limitações e portanto não
apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também
às causas da exclusão da ilicitude (v. g., legítima defesa) e de exclusão da
culpa. Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção
da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte,
conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da
circunstância favorável ao arguido” [Figueiredo Dias, Direito Processual Penal,
1974, p. 211].
Assim que, no que aos actos desfavoráveis ao arguido tange, a dúvida insanável
deve levar a dar como não provado o facto sobre o qual recai.
Já no que concerne aos factos favoráveis ao arguido, a solução não se afigura de
linearidade, havendo alguns autores (designadamente Frederico Isasca e Cristina
Líbano Monteiro) a sustentar que, neste casos, o tribunal, colocado perante uma
dúvida insanável, deverá dar como provados tais factos e daí (e só se daí)
retirar as devidas consequências (maxime, a absolvição).
Entende‑se que deve sempre, de qualquer modo, o tribunal consignar as dúvidas
na fundamentação de facto com a consequente aplicação deste princípio na
fundamentação de direito, assim se logrando obter o resultado ínsito naquele
princípio.
Aliás, o Supremo Tribunal de Justiça esclarece que “... não é exigível, de
resto, que, sendo a verdade processual irremediavelmente distinta da verdade
absoluta, pois não passa de uma verdade prático‑jurídica, se considerem
provados os factos duvidosos favoráveis ao arguido ou se arrolem os mesmos para,
na perspectiva de um ónus de prova material, sobre eles se decidir em desfavor
da acusação” [Boletim do Ministério da Justiça, n.º 409, p. 628].
O desrespeito por este princípio só se dá quando o tribunal, colocado em
situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir contra o
arguido [Proc. n.º 1543/97, de 18 de Março de 1998].
Não nos podemos esquecer, também, que ao julgador não é permitido formular um
juízo de non liquet sobre a prova produzida e só a ele é exigida objectividade,
podendo ser, e sendo‑o muitas vezes, diferente a perspectiva com que a prova é
entendida e avaliada, o que origina, a final, que se possam obter resultados
díspares ou pelo menos não coincidentes.
Por fim, é patente, da simples leitura da fundamentação da decisão recorrida,
ao contrário do que defende o recorrente, que o tribunal não teve qualquer
dúvida sobre os pontos de facto que deu como assentes, dúvidas que a nós
tribunal de recurso, mesmo sem acesso à oralidade e imediação, também não nos
assaltam, pois que só se a fundamentação revelasse que o tribunal, face a algum
ou alguns dos pontos de facto, tivesse ficado em estado de “dúvida patente e
insuperável”, “e, perante essa dúvida, tivesse optado pela tese que desfavorecia
o recorrente é que se podia dizer que havia postergado o princípio in dubio pro
reo” [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15 de Junho de 2000,
Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano
VIII, tomo 2.º, p. 228].
“Não adquirindo o tribunal a certeza (a convicção positiva ou negativa) da
verdade prática sobre os factos (...), a decisão tem de ser, por virtude do
princípio in dubio pro reo, a da absolvição. Neste sentido, não é o princípio
in dubio pro reo uma regra de ónus da prova, mas justamente o correlato
processual da exclusão desse ónus” [Castanheira Neves, Processo Criminal, 1968,
pp. 59/60].
Ora, o tribunal fez uma ponderada reflexão e análise crítica quanto à prova
recolhida, após o que obteve uma plena convicção, porque subtraída a qualquer
dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e ora
recorrente e que motivaram a sua condenação.»
5. Recordadas as questões colocadas pelo ora recorrente perante o tribunal
recorrido (supra, n.º 3), e a resposta que este deu àquelas que poderiam
ligar‑se a questões de constitucionalidade (supra, n.º 4), há que concluir pela
inadmissibilidade de conhecimento de qualquer das três questões de
constitucionalidade identificadas no requerimento de interposição de recurso
para o Tribunal Constitucional.
Quanto à primeira, reportada ao artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas b) e c), e 4,
do CPP (n.ºs 2 a 5, 9 e 10 do requerimento de interposição de recurso), cumpre,
desde logo, salientar que a interpretação dada a essas normas pelo acórdão
recorrido nada tem de anómalo ou de inesperado. Depois, nas transcritas
conclusões da motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra
nenhuma alusão é feita ao facto, invocado apenas no requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, de que «nada ficou
gravado no registo em suporte fonomagnético da sessão de audiência de julgamento
realizada em 8 de Julho de 2005». Facto que, aliás, nem sequer é mencionado no
teor da aludida motivação, onde apenas se refere, no n.º 14, que o recorrente
não teve acesso, até à data da apresentação dessa motivação, ao registo da
prova produzida nessa audiência, «pelo que está neste momento impedido de
proceder à transcrição dos referidos depoimentos», o que constitui realidade bem
distinta, sendo, aliás, de notar que não foi por o recorrente não ter procedido
à transcrição – ónus que até nem recai sobre ele – que o acórdão recorrido não
apreciou a impugnação da matéria de facto, mas antes por não ter sido cumprido
nenhum dos ónus elencados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP e só os do n.º
4 pressupunham o acesso às gravações. Isto é: mesmo que seja exacta a afirmação,
apenas feita no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade,
da falta de gravação da audiência de 8 de Julho de 2005, tal não obstava a que o
recorrente cumprisse as exigências contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 do
mesmo preceito. E, sobretudo, não o dispensava de colocar, perante o tribunal
recorrido, a questão de inconstitucionalidade normativa que a esse respeito
considerasse pertinente, o que ele, de todo em todo, não fez, contrariamente ao
que refere.
Quanto à segunda questão de inconstitucionalidade, reportada ao artigo 374.º,
n.º 2, do CPP (n.ºs 6 a 8 do requerimento de interposição de recurso), é patente
que ela não foi suscitada na motivação do recurso interposto para o tribunal
ora recorrido, em termos processualmente adequados, como resulta da leitura das
correspondentes conclusões, atrás transcritas.
Por último, quanto à terceira questão, reportada ao artigo 379.º, n.º 1,
alínea c), do CPP (n.º 11 do requerimento de interposição de recurso), o que
nela se suscita – pela primeira vez nos autos – é um pretenso incumprimento,
pelo Tribunal da Relação, do dever de conhecer nulidades da decisão perante ele
impugnada, sendo, assim, manifesto que aí não se coloca qualquer questão de
inconstitucionalidade normativa, sendo a pretensa violação do direito ao recurso
directamente imputada a hipotisada omissão processual e não a qualquer norma ou
interpretação normativa.
6. Em face do exposto, decide‑se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo
78.º‑A da LTC, não conhecer do objecto do presente recurso.”
1.2. A reclamação do recorrente apresenta a seguinte
fundamentação:
“1 – A decisão de rejeição do presente recurso tem por base a consideração de
que o ora recorrente não suscitou de forma adequada, perante o Tribunal
recorrido, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
2 – Porém, não assiste razão à Decisão ora reclamada.
3 – Efectivamente, o recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo
Venerando Tribunal da Relação de Coimbra foi interposto ao abrigo do disposto no
artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela
Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º
143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º
88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro.
4 – E no qual se pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do
artigo 412.º, n.°s 3, alíneas b) e c), e 4, do Código de Processo Penal, quando
aplicada com a interpretação e o alcance dados àquele normativo, pelo Venerando
Tribunal da Relação de Coimbra, ao considerar que o recorrente, no recurso que
interpôs para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra do douto Acórdão
proferido pelo Tribunal Judicial de Seia, não procedeu ao cumprimento dos ónus
impostos nas alíneas b) e c) dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de
Processo Penal, tendo como consequência a vedação ao Venerando Tribunal da
Relação de Coimbra da apreciação da prova testemunhal produzida em audiência de
discussão e julgamento, e a mesma fixada, uma vez que, em tal recurso, o
recorrente estava impossibilitado de especificar as provas que impunham decisão
diversa da recorrida e as provas que deveriam ser renovadas, bem como estava
impossibilitado de proceder a tais especificações por referência aos suportes
técnicos, e respectiva transcrição, conforme estabelece o artigo 412.º, n.ºs 3,
alíneas b) e c), e 4, do Código de Processo Penal, dado que nada ficou gravado
no registo em suporte fonomagnético da sessão de audiência de julgamento
realizada em 8 de Julho de 2005 e à qual se reporta a acta de fls. 1561 a 1566.
5 – Sendo certo que foi a ausência dessa documentação da prova que impediu o
recorrente de proceder às especificações acima mencionadas e atendendo a que
nessa sessão de audiência de julgamento foram produzidos os depoimentos das
testemunhas B. e C. e que, conforme resulta da fundamentação do douto Acórdão
proferido pelo Tribunal Judicial de Sela, contribuíram de forma relevante e
fundamental para a convicção daquele Tribunal de modo a considerar provados os
factos enumerados de 36 a 52 da matéria de facto provada e constante do Acórdão
proferido por aquele Tribunal.
6 – Cumpre evidenciar que tal realidade foi alegada pelo recorrente no seu
requerimento de interposição de recurso, bem como na sua motivação, conforme
resulta de fls. …, tendo determinado a sua impossibilidade de recorrer da
matéria de facto fixada pelo Tribunal de 1.ª Instância.
7 – A aplicação do artigo 412.º, n.º s 3, alíneas b) e c), e 4, do Código de
Processo Penal pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, com a
interpretação e o alcance que lhe foram conferidos pelo douto Acórdão
recorrido, violou as garantias de defesa do recorrente na vertente do seu
direito ao recurso, em sede de matéria de facto, consagrado no artigo 32.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa.
8 – A interpretação e aplicação dadas à norma do artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas
b) e c), e 4, do Código de Processo Penal pelo douto Acórdão proferido pelo
Venerando Tribunal da Relação de Coimbra verificou-se com a notificação ao ora
recorrente de tal Acórdão, pelo que o mesmo só nesse momento conheceu de tal
interpretação e aplicação, que reputa como inconstitucional. Por conseguinte, só
perante o Acórdão proferido pelo Tribunal Superior se viu o recorrente na
possibilidade de arguir a inconstitucionalidade em causa, fazendo-o no recurso
interposto do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de
Coimbra e no primeiro momento em que se lhe impõe fazer.
9 – Mais salienta o ora recorrente que efectivamente «nada ficou gravado no
registo em suporte fonomagnético da sessão de audiência de julgamento realizada
em 8 de Julho de 2005» e que tal facto está confirmado nos presentes autos.
10 – Contudo, no momento do requerimento de interposição de recurso do douto
Acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, o ora recorrente não tinha tal
informação.
11 – Pelo que no seu requerimento de interposição de recurso afirmou que «não
tinha tido acesso, por causa que não lhe é imputável, até à presente data, ao
registo da prova produzida na audiência de discussão e julgamento realizada em 8
de Julho de 2005».
12 – Releve-se que o ora recorrente solicitou ao Tribunal Judicial de Seia a
concessão de novo prazo para recurso, tendo em vista o exercício do direito de
recorrer de facto e de direito, tal como prevê o artigo 32.º da Constituição da
República Portuguesa, o que não se verificou, conforme resulta do presente
processo.
13 – Certo é que os elementos factuais e materiais que o ora recorrente dispunha
no momento do requerimento de interposição do recurso do douto Acórdão proferido
pelo Tribunal de 1.ª Instância determinaram a sua actuação processual.
14 – Tendo o ora recorrente, por mera cautela de patrocínio judiciário,
interposto recurso unicamente da matéria de direito.
15 – Ora, a boa fé e a confiança na melhor ordenação do processo são princípios
estruturantes do processo, não podendo um interessado ser onerado com
consequências desfavoráveis pela omissão de actos cuja prática, em
interpretação razoável de actos jurisdicionais e das respectivas sequências
processuais, lhe não seria exigível.
16 – Cumpre afirmar, mais uma vez, que não houve gravação da prova na sessão
realizada em 8 de Julho de 2005 no Tribunal Judicial de Seia e que tal realidade
impediu o ora recorrente de recorrer em sede de matéria de facto, conforme
estabelece o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa,
violando, dessa forma, as garantias de defesa do recorrente na vertente do seu
direito ao recurso.
17 – Por conseguinte, não deve o Tribunal Constitucional privilegiar a aplicação
de justiça formal em detrimento da justiça material.
18 – Nestes termos, deve considerar‑se tal suscitação de inconstitucionalidade
efectuada de modo processual e atempadamente adequado para os efeitos da alínea
b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei
n.º 28/82, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º
143/85, de 26 de Novembro, pela Lei n.º 85/89, de 7 de Setembro, pela Lei n.º
88/95, de 1 de Setembro, e pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro.
19 – Mais mantém, o ora recorrente, tudo o que alegou no seu requerimento de
interposição de recurso.
20 – Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência,
ser admitido o presente recurso.”
1.3. O representante do Ministério Público no Tribunal
Constitucional apresentou a seguinte resposta:
“1 – A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2 – Na verdade, a argumentação do reclamante em nada abala os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos de
admissibilidade do recurso interposto.”
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. A Decisão Sumária ora reclamada entendeu que não estavam
verificadas as condições de conhecimento do mérito do recurso relativamente às
três questões de inconstitucionalidade elencadas no requerimento de
interposição de recurso para o Tribunal Constitucional. O recorrente, na
presente reclamação, apenas argumenta contra tal Decisão Sumária no que respeita
ao não conhecimento da primeira questão de inconstitucionalidade (reportada ao
artigo 412.º, n.ºs 3, alíneas b) e c), e 4, do CPP), pelo que se pode considerar
como aceite pelo recorrente, ora reclamante, a decisão de não conhecimento das
segunda e terceira questões de inconstitucionalidade suscitadas, reportadas,
respectivamente, ao artigo 374.º, n.º 2, e ao artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do
mesmo Código.
Quanto à primeira questão de inconstitucionalidade, a decisão de
não conhecimento assentou na constatação de que, por um lado, o recorrente não
suscitara tal questão perante o tribunal recorrido antes de proferida a decisão
impugnada, e de que, por outro lado, a interpretação dada às normas do artigo
412.º, n.ºs 3, alíneas b) e c), e 4, do CPP pelo acórdão recorrido nada tinha
de anómalo ou de inesperado.
O reclamante, em rigor, não contesta essas constatações, antes
aduz que, no caso concreto, ocorreu uma anomalia, consistente na falha técnica
de gravação de uma sessão da audiência de julgamento. Simplesmente, como se
referiu na Decisão Sumária reclamada, esse facto, se poderia inviabilizar o
cumprimento do disposto no n.º 4 do artigo 412.º do CPP, não impedia o
recorrente de satisfazer os ónus referidos nas três alíneas do precedente n.º 3:
especificar os pontos de facto que considerava incorrectamente julgados, as
provas que impunham decisão diversa da recorrida e as provas que deviam ser
renovadas. E, além disso – e decisivamente –, se o recorrente entendia que a
falta de acesso à gravação da dita sessão inviabilizava ou tornava
excessivamente limitado o exercício do direito de recurso, era relativamente à
não concessão de novo prazo para interposição e motivação do recurso ou,
eventualmente com maior pertinência, relativamente à tese, defendida pelo
representante do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra, da
irrelevância dessa irregularidade, face ao disposto no artigo 123.º do CPP (em
discordância com a tese do representante da mesma magistratura junto do Tribunal
da Comarca de Seia, que, na resposta à motivação dos recursos dos arguidos,
admitiu que a ausência de documentação da prova oralmente produzida na segunda
sessão de julgamento constituía irregularidade processual que acarretava a
invalidade desse acto e dos actos subsequentes afectados), em parecer que foi
notificado ao recorrente, nos termos e para os efeitos do artigo 417.º, n.º 2,
do CPP, mas a que ele não respondeu, que o recorrente deveria ter suscitado,
perante o tribunal recorrido, a questão da inconstitucionalidade dessa
interpretação do artigo 123.º do CPP, o que ele não fez.
Neste contexto, não é adequado afirmar‑se que a interpretação
normativa acolhida no acórdão ora recorrido tenha sido inesperada, em termos de
dispensar o recorrente do ónus da suscitação da sua inconstitucionalidade.
Por falta do apontado requisito, também quanto à aludida primeira
questão de inconstitucionalidade o presente recurso surge como inadmissível.
3. Em face do exposto, acordam em indeferir a presente
reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando‑se a taxa de justiça em 20
(vinte) unidades de conta.
Lisboa, 21 de Fevereiro de 2006.
Mário José de Araújo Torres
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos