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Processo n.º 767/04
3.ª Secção
Relator: Conselheiro Gil Galvão
(Conselheira Maria dos Prazeres Beleza)
Acordam, na 3.ª Secção, do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A., ora
recorrido, no Tribunal de Trabalho de Lisboa, acção declarativa de condenação,
emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma ordinária, contra a
B., ora recorrente, pedindo a condenação desta última a restituir-lhe o trabalho
e as funções de repórter e redactor, a reconhecer o carácter remuneratório de
determinadas prestações, bem como a insusceptibilidade de ser reduzido o
respectivo montante, e ainda a pagar-lhe certas quantias a título de sanção
pecuniária compulsória, diferenças salariais, retribuições e danos patrimoniais,
tudo acrescido de juros de mora. Por sentença do 1º Juízo do Tribunal de
Trabalho de Lisboa, de 16 de Julho de 2001, foi a acção foi julgada parcialmente
procedente, tendo a ré sido condenada nos termos constantes de fls. 418 e 419.
2. Inconformada, a ré, ora recorrente, interpôs recurso de apelação para o
Tribunal da Relação de Lisboa, que lhe negou provimento por acórdão de 9 de
Outubro de 2002.
3. Ainda inconformada, a Recorrente interpôs recurso de revista para o Supremo
Tribunal de Justiça, o qual, por acórdão de 16 de Junho de 2004, constante de
fls. 1359 e seguintes, decidiu “conceder parcial provimento ao recurso,
revogando-se o acórdão recorrido na parte relativa à condenação dos juros de
mora, os quais são devidos em relação às remunerações em dívida desde o
vencimento de cada uma das prestações, e em relação à indemnização por danos não
patrimoniais desde a sentença da 1ª instância”. O Supremo Tribunal de Justiça
sustentou assim, para o que agora releva, a sua decisão:
“2. Da admissibilidade, ou não da gravação da audiência
[...] E não se diga, como a recorrente, que a interpretação jurisprudencial no
sentido da inadmissibilidade da gravação da prova, no domínio do CPT/81 é
inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da igualdade e de
acesso aos tribunais, podendo mesmo afectar a garantia constitucional da
utilização de um processo equitativo.
Em relação ao primeiro dos princípios invocados, importa ter presente que a
interpretação normativa acolhida trata de igual modo todas as partes que estejam
na mesma situação: isto é, em processo laboral, ao qual seja aplicável o CPT/81,
independentemente das partes, não é admissível a gravação da prova, ou, ainda
que se tenha procedido à mesma, tal constitui um acto inútil, não vinculando o
tribunal superior a reapreciar a prova com base nessa gravação.
Daí que não se possa falar em tratamento discriminatório, ou até arbitrário, por
parte do tribunal, sendo certo que a violação do princípio da igualdade não pode
resultar «... da comparação entre os resultados de uma interpretação normativa
tida por correcta pelo interessado, mas tão só da comparação, relativamente a
cada uma dessas interpretações, do tratamento dado às diversas categorias de
destinatários, postergando diferenciações de tratamento não materialmente
fundadas».
De igual modo, não se pode ter por violado o princípio de acesso aos tribunais,
ou de utilização de um processo equitativo, uma vez que de tais princípios não
pode decorrer o direito das partes a recorrerem de toda e qualquer decisão
judicial.
Ademais, o facto de nas situações jurídicas em causa, não ser admissível a
gravação da audiência, não impede, como já se deixou implícito supra, que a
decisão da matéria de facto possa vir a ser alterada (cfr. artigos 712º, 722º,
n.º 2, e 729º, n.º 3, do CPC).
De resto, no domínio do diploma em causa (CPT/81), sempre que as partes têm a
faculdade de requerer que a matéria de facto seja julgada por três juízes, ou
seja, com intervenção do tribunal colectivo (cfr. artigo 63º, do CPT).
Improcede, por consequência, a alegada inconstitucionalidade, na interpretação
que considera inadmissível a gravação da prova no domínio do CPT de 1981.[...]
3. Da categoria profissional do autor/recorrido
[...] Concluindo nós, como concluímos, que a ré retirou ilegitimamente ao autor
as funções de redactor e repórter que ele vinha exercendo, daí decorre, como
consequência, a reconstituição da situação que existiria caso esse acto
ilegítimo não fosse praticado, ou seja, o autor colocado novamente nas funções
de redactor e repórter e, referente ao período em que foi retirado das funções,
a reposição da situação como se tivesse exercido as mesmas funções.
Ao fim e ao cabo, trata-se de colocar o autor na mesma situação que existiria se
não houvesse o acto ilegítimo da ré, em equiparação com os outros trabalhadores
da ré que tinham isenção de horário de trabalho (cfr. artigo 562º, do CC).
Por isso, a comparação do autor, a fazer-se, deverá ser com aqueles outros
trabalhadores que se encontravam em regime de isenção de horário de trabalho, e
não, como faz a recorrente, com a daqueles trabalhadores sem isenção de horário
de trabalho em que ao autor foi ilegitimamente colocado.
De outro modo, estar-se-ia a «premiar» o comportamento ilegítimo de uma entidade
patronal, que não sofreria as consequências dos seus actos.
O que se deixa afirmado vale por dizer, mutatis mutandis, em relação às
restantes remunerações acessórias que a ré retirou ao autor, por virtude de o
colocar na «Secção de agenda».”
4. Novamente inconformada, veio a ora recorrente, “ao abrigo do artigo 70º, n.º
1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional”, interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das
seguintes normas:
“a) A norma extraída da conjugação do artigo 63º, n.º 1, do Código de Processo
de Trabalho de 1981, com a do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de
Dezembro, aditado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, na
interpretação que é inadmissível a gravação da prova no domínio daquele Código
de Processo de Trabalho de 1981, por o regime do mesmo Código rejeitar tal
gravação; esse conjunto normativo, na interpretação acolhida no Douto Acórdão
recorrido, viola os princípios constitucionais da igualdade e de acesso aos
tribunais (artigos 13º e 20º, n.º 1, da Constituição), podendo ainda afectar a
garantia constitucional de utilização de um processo equitativo;
b) O artigo 39º, n.º 1, da Lei de Regime do Contrato de trabalho (LCT de 1969),
bem como artigos 11º, n.º 1, e 14º da mesma Lei, na interpretação acolhida no
Acórdão recorrido e que postula que o Recorrido tem direito aos valores que este
receberia a título de isenção de horário de trabalho, como se tivesse
efectivamente assim desempenhado o trabalho, considerando que esses artigos, com
a interpretação referida, violam o princípio constitucional «a trabalho igual,
salário igual» consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição;
c) O artigo 21º, n.º 1, alínea c), da mesma LCT, conjugado com o disposto nos
artigos 39º e 82º, n.º 1, do mesmo diploma, bem como o artigo 11º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 409/71, normas repetidas na cláusula 36ª, n.º 2, alínea a), do
Contrato Colectivo de Trabalho celebrado em 1993 entre a Associação de Imprensa
Diária e o Sindicato dos Jornalistas de 1993, na interpretação que postula que a
entidade patronal não podia baixar ao A. recorrido a «retribuição» paga a título
de trabalho nocturno; tal interpretação viola não só o disposto na alínea a) do
n.º 1 do artigo 56º da Constituição, como o princípio constitucional «a trabalho
igual, salário igual» consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da
Constituição;
d) O artigo 21º, n.º 1, conjugado com o disposto nos artigos 82º, n.º 1, 39º,
n.º 1, da Lei do Regime do Contrato de Trabalho (LCT), lidas à luz da cláusula
36ª, n.º 2, alínea b), do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado em 1993, com
a interpretação dada pelo Acórdão recorrido, no sentido da impossibilidade de a
R. diminuir a retribuição do A. no montante atribuído a subsídio de deslocação.
Tal conjunto normativo, na interpretação acolhida, viola o princípio
constitucional «a trabalho igual, salário igual» consignado no artigo 59º, n.º
1, alínea a), da Constituição;
e) A norma do artigo 21º, n.º 1, alínea c), da Lei do Regime do Contrato
Individual de Trabalho, em conjugação com os artigos 39º e 82º, n.º 1, do mesmo
LTC, lida à luz da cláusula 36ª, n.º 2, alínea a), do CCT de 1993, no que toca
ao subsídio de «fecho de edição». A norma em causa nessa referida interpretação
viola o princípio constitucional «a trabalho igual, salário igual» consignado no
artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição;
f) O artigo 21º, n.º 1, alínea c), da Lei do Regime do Contrato de Trabalho
(LCT), conjugado com os artigos 39º e 82º, n.º 1, do mesmo diploma, lida à luz
da cláusula 36ª, n.º 2, alínea a), do CCT de 1993, com a interpretação de que a
Recorrente não podia baixar a «retribuição ao A., pagar a «título de pagamento
extra recibo»; as normas em causa, na interpretação acolhida, violam não só o
disposto no artigo 56º, n.º 1, alínea a), da Constituição, como o princípio
constitucional «a trabalho igual, salário igual» consignado no artigo 59º, n.º
1, alínea a), da Constituição;”.
5. Notificada para o efeito, a recorrente apresentou as respectivas alegações,
que concluiu, para o que agora importa, da seguinte forma:
“[...] XXII. A norma extraída da conjugação do artigo 63º, n.º 1, do Código de
Processo de Trabalho de 1981, com a do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 329-A/95,
de 12 de Dezembro, aditado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, na
interpretação acolhida no douto Acórdão recorrido de que é inadmissível a
gravação da prova no domínio daquele Código de Processo de Trabalho, por o
regime do mesmo Código rejeitar tal gravação, viola os princípios
constitucionais da igualdade e de acesso aos tribunais (artigos 13º e 20º, n.º
1, da Constituição), podendo ainda afectar a garantia constitucional de
utilização de um processo equitativo e, implicitamente, o princípio da
prevalência da interpretação da leis segundo a constituição, o princípio da
proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade, o princípio da igualdade
e o princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica. [...]
XXXI. Consequentemente, o artigo 39º, n.º 1, da Lei de Regime do Contrato de
trabalho (LCT de 1969), bem como artigos 11º, n.º 1, e 14º do Decreto-Lei n.º
409/71 – Lei de Duração do Trabalho (LDT) – implementado pelo 24º do Contrato
Colectivo de Trabalho celebrado em 1993 entre a Associação de Imprensa Diária e
o Sindicato dos Jornalistas de 1993 (CCT), na interpretação acolhida no Acórdão
recorrido, que postula que o A. tem direito aos valores que este receberia a
título de isenção de horário de trabalho, como se tivesse efectivamente assim
desempenhado o trabalho, não estando efectivamente sujeito àquele regime e
beneficiando de um horário normal de trabalho, viola o princípio constitucional
da igualdade e, em particular, o princípio «a trabalho igual, salário igual»
consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição. [...]
XXXVII. O artigo 21º, n.º 1, alínea c), da mesma LCT, conjugado com o disposto
nos artigos 39º e 82º, n.º 1, do mesmo diploma, bem como o artigo 11º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 409/71 (LDT), normas repetidas na cláusula 36ª, n.º 2, alínea
a), do CCT, na interpretação do douto acórdão recorrido, que postula que a
entidade patronal não podia baixar ao A. recorrido a «retribuição» paga a título
de trabalho nocturno, viola o princípio constitucional da igualdade e, em
particular, o princípio «a trabalho igual, salário igual» consignado no artigo
59º, n.º 1, alínea a), da Constituição. [...]
XL. O artigo 21º, n.º 1, conjugado com os artigos 82º, n.º 1, 39º, n.º 1, da Lei
do Regime do Contrato de Trabalho (LCT), lidas à luz da cláusula 36ª, n.º 2,
alínea b), do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado em 1993, com a
interpretação dada pelo Acórdão recorrido, no sentido da impossibilidade de a R.
«diminuir» a retribuição do A. no montante atribuído a subsídio de deslocação,
viola o princípio constitucional da igualdade e, em particular, o princípio «a
trabalho igual, salário igual» consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da
Constituição. [...]
XLV. A norma do artigo 21º, n.º 1, alínea c), da Lei do Regime do Contrato
Individual de Trabalho (LCT), em conjugação com os artigos 39º e 82º, n.º 1, do
mesmo diploma, lida à luz da cláusula 36ª, n.º 2, alínea a), do CCT de 1993, no
sentido da impossibilidade de a R. «diminuir a retribuição» do A. no montante
atribuído a subsídio de fecho de edição viola o princípio constitucional da
igualdade e, em particular, o princípio «a trabalho igual, salário igual»
consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição. [...]
XLIX. O artigo 21º, n.º 1, alínea c), da Lei do Regime do Contrato de Trabalho
(LCT), conjugado com os artigos 39º e 82º, n.º 1, do mesmo diploma, lido à luz
da cláusula 36ª, n.º 2, alínea a), do CCT de 1993, com a interpretação dada pelo
douto Acórdão recorrido, no sentido da impossibilidade de a R. «diminuir a
retribuição» do A. no montante pago a «título de pagamento extra recibo», viola
o princípio constitucional da igualdade e, em particular, o princípio «a
trabalho igual, salário igual» consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da
Constituição.
L. Como consequência necessária e implícita das inconstitucionalidades atrás
enunciadas, o artigo 70º, n.º 1, do CCT de 1982 conjugado com o artigo 63º, n.º
2, do CCT de 1993, na interpretação dada pelo douto acórdão recorrido no sentido
de que o A. tem direito às retribuições com base nos valores pagos antes de
entrar em baixa prolongada (1/10/93) é inconstitucional por violação do
princípio constitucional da igualdade e, em particular, do princípio «a trabalho
igual, salário igual» consignado no artigo 59º, n.º 1, alínea a) da
Constituição.”
6. O recorrido apresentou igualmente alegações, pugnando pela improcedência do
recurso no que respeita às questões a que se referem as alíneas b) a f) do
requerimento de interposição de recurso, mas reconhecendo razão à recorrente
quanto à que consta da alínea a) do mesmo.
7. Admitindo a hipótese de não poder conhecer de parte do recurso, a Relatora
inicial do presente processo fez notificar o seguinte despacho:
“[...] 2. O recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade de normas
interposto ao abrigo do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, como é o caso, destina-se a que este Tribunal aprecie
a conformidade constitucional de normas, ou de interpretações normativas, que
foram efectivamente aplicadas na decisão recorrida, não obstante ter sido
suscitada a sua inconstitucionalidade «durante o processo» (al. b) citada), e
não das próprias decisões que as apliquem. Assim resulta da Constituição e da
lei, e assim tem sido repetidamente afirmado pelo Tribunal (cfr. a título de
exemplo, os acórdãos nºs 612/94, 634/94 e 20/96, publicados no Diário da
República, II Série, respectivamente, de 11 de Janeiro de 1995, 31 de Janeiro de
1995 e 16 de Maio de 1996).
É, ainda, necessário que tal norma tenha sido aplicada com o sentido acusado de
ser inconstitucional, como ratio decidendi (cfr., nomeadamente, os acórdãos nºs
313/94, 187/95 e 366/96, publicados no Diário da República, II Série,
respectivamente, de 1 de Agosto de 1994, 22 de Junho de 1995 e de 10 de Maio de
1996); e que a inconstitucionalidade haja sido «suscitada durante o processo»
(citada al. b) do nº 1 do artigo 70º), como se disse, o que significa que há-de
ter sido colocada «de modo processualmente adequado perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer»
(nº 2 do artigo 72º da Lei nº 28/82).
3. Ora é plausível que o Tribunal Constitucional não possa conhecer do recurso
interposto, relativamente às questões colocadas nas alíneas b) a f) do
requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, atrás
transcrito, pelas seguintes razões:
– Em primeiro lugar, porque da leitura dessas alíneas resulta que a recorrente
está a questionar a constitucionalidade do resultado da aplicação dos preceitos
que indica, ou seja a constitucionalidade da decisão que os aplicou, e não das
próprias normas aplicadas;
– Em segundo lugar, porque, ainda que assim não fosse, a verdade é que a
descrição feita nas referidas alíneas não traduz o sentido com que o Supremo
Tribunal de Justiça aplicou os referidos preceitos, o que sempre impediria o
conhecimento do recurso.
Com efeito, quando a recorrente se refere ao reconhecimento de que o autor da
acção tinha direito a determinados valores «a título de isenção de horário de
trabalho» – al. b) –, ou à conclusão de que lhe não poderiam ser retiradas as
retribuições pagas a título de trabalho nocturno – al. c) – , subsídio de
deslocação – al. d) –, subsídio de «fecho de edição» – al. e) –, ou de
«pagamento extra recibo» – al. f) –, está a omitir que o Supremo Tribunal de
Justiça justificou tais decisões por ter considerado que «a ré/recorrente
t[inha] colocado ilegitimamente o autor a desempenhar as funções na ‘secção de
agenda», assim não respeitando o seu «direito ao lugar», nos termos constantes
do acórdão recorrido.
Não pode, pois, dizer-se que o acórdão recorrido tenha simplesmente decidido que
a ora recorrente estava impossibilitada de diminuir a retribuição do ora
recorrido nos montantes em causa, não obstante ele não prestar o trabalho
correspondente; o que o Supremo Tribunal de Justiça afirmou foi, antes, a
impossibilidade de retirar tais quantias na sequência de um acto ilícito da
recorrente.
Note-se, aliás, que a recorrente não incluiu no objecto do recurso de
constitucionalidade as normas com base nas quais o acórdão recorrido concluiu
que o trabalhador tinha sido «colocado ilegitimamente a desempenhar» funções
diversas das que se deviam considerar compreendidas no seu contrato de trabalho.
4. Relativamente às alíneas c) a f) do requerimento de interposição de recurso,
acresce que a recorrente inclui nos «conjuntos normativos» cláusulas de
instrumentos de regulamentação colectiva do trabalho, para cujo conhecimento o
Tribunal Constitucional não é competente, pelas razões constantes dos seus
acórdãos n.º 172/93 (Diário da República, II série, de 18 de Junho de 1993), ou,
mais recentemente, n.ºs 637/98 e 284/99 (disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt).
5. Finalmente, a recorrente aponta, nas conclusões das suas alegações, o «24º do
Contrato Colectivo de Trabalho celebrado em 1993 entre a Associação de Imprensa
Diária e o sindicato dos Jornalistas de 1993 (CCT)» (cfr. conclusão XXXI) e «o
artigo 70º, n.º 1, do CCT de 1982 conjugado com o artigo 63º, n.º 2, do CCT de
1993» (cfr. conclusão L).
Ora, conforme vem sendo afirmado por este Tribunal, o requerimento de
interposição de recurso limita o seu objecto às normas nele indicadas (cfr.
artigo 684º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável nos termos do artigo
69º da Lei n.º 28/82, conjugado com o nº 1 do artigo 75º-A desta última), sem
prejuízo de esse objecto, assim delimitado, vir a ser restringido nas conclusões
das alegações (cfr. citado artigo 684º, nº 3). O que a recorrente não pode fazer
é, nas alegações, ampliar o objecto do recurso antes definido (neste sentido,
cfr., por exemplo, os acórdãos n.ºs 366/96 e 589/99 (Diário da República, II
Série, respectivamente, de 10 de Maio de 1996 e de 20 de Março de 2000).
Assim, ainda que não ocorresse o obstáculo referido no n.º anterior, sempre não
poderia conhecer-se do recurso nesta parte.
6. Assim, notifique as partes, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 704º do
Código de Processo Civil, para se pronunciarem, querendo, sobre os obstáculos ao
conhecimento de parte do objecto do recurso que foram apontados.”
8. A recorrente veio então tomar posição sobre os obstáculos ao conhecimento de
parte do objecto do recurso nele apontados. Em síntese, esclareceu não se ter
nunca conformado com a decisão de ter sido ilícita a colocação do autor, ora
recorrido, no desempenho de funções diferentes daquelas que, como foi julgado,
lhe deveriam ter sido atribuídas; e que só não tinha incluído tal questão no
recurso que interpôs para o Tribunal Constitucional por este não abranger a
apreciação de inconstitucionalidades atribuídas às próprias decisões judiciais,
como era o caso. E disse ainda manter a posição de que estão reunidas as
condições necessárias para que o Tribunal Constitucional conheça da totalidade
do objecto do recurso, mas reconhecer que a questão mais relevante é a que
colocou na alínea a) do requerimento de interposição.
O recorrido não se pronunciou.
9. Tendo havido mudança de relator, por vencimento, cumpre formular a decisão do
Tribunal Constitucional.
II – Fundamentação.
10. Em primeiro lugar há que considerar que, pelas razões constantes do despacho
da Relatora inicial supra transcrito no ponto 7, não postas em causa pela
resposta da recorrente, não se conhece do recurso relativamente às questões
definidas nas alíneas b) a f) do requerimento de interposição do recurso. Fica
assim o objecto limitado à questão referida às normas dos artigos 63º, n.º 1, do
Código de Processo do Trabalho de 1981 e 24º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º329-A/95,
aditado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, cujo teor é o seguinte:
“Artigo 63º
(Instrução, discussão e julgamento da causa pelo juiz singular)
1. A instrução, discussão e julgamento são feitos perante o juiz singular e a
este pertence, exclusivamente, o julgamento da matéria de facto, excepto quando
as partes requeiram, no prazo estabelecido para oferecer a prova, a intervenção
do tribunal colectivo.”
“Artigo 24º
(Registo das audiências)
É imediatamente aplicável aos processos de natureza civil, pendentes em
quaisquer tribunais na data da entrada em vigor do presente diploma, o disposto
no Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, no que respeita ao registo de
audiências.”
A recorrente entende que a “interpretação acolhida no douto Acórdão recorrido de
que é inadmissível a gravação da prova no domínio daquele Código de Processo de
Trabalho, por o regime do mesmo Código rejeitar tal gravação, viola os
princípios constitucionais da igualdade e de acesso aos tribunais (artigos 13º e
20º, n.º 1, da Constituição), podendo ainda afectar a garantia constitucional de
utilização de um processo equitativo e, implicitamente, o princípio da
prevalência da interpretação da leis segundo a constituição, o princípio da
proibição do excesso, o princípio da proporcionalidade, o princípio da igualdade
e o princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica” (itálico
aditado). Ou seja, a recorrente questiona, unicamente, a constitucionalidade da
inadmissibilidade da gravação da prova no domínio do Código de Processo de
Trabalho de 1981. E, sendo assim delimitado o âmbito do recurso por quem tem
obrigação de o fazer, apenas a esta questão tem o Tribunal Constitucional de
responder, não lhe sendo legítimo ampliar o objecto do pedido.
Aliás, de outro modo, construir um diverso objecto do recurso por referência às
vicissitudes do presente processo não deixaria de suscitar a dúvida sobre se
dele se poderia conhecer. Na verdade, é discutível, desde logo, que uma questão
cujo pressuposto seja exclusivamente a interpretação do direito ordinário quanto
ao âmbito temporal de vigência do novo Código de Processo do Trabalho, nos
termos do artigo 24º do Decreto-Lei nº 329‑A/95 e 63º do Código de Processo do
Trabalho, possa ser considerada de constitucionalidade normativa. Mas, ainda que
assim não fosse, se se questionasse uma determinada dimensão material relativa
ao impedimento da gravação da prova apenas porque, tendo essa gravação sido
admitida na 1ª instância, houve uma alteração da posição do tribunal de recurso,
o que ofenderia o princípio da confiança, então sempre seria de considerar que
um tal modo de colocar a questão conduziria ao não conhecimento do objecto do
recurso. É que, nesse caso, excluída do âmbito do recurso qualquer referência
aos preceitos legais relativos a um eventual caso julgado, estaríamos, quando
muito, perante uma violação da Constituição pela decisão judicial, o que, não
sendo uma questão de constitucionalidade normativa, conduziria ao não
conhecimento do objecto do recurso.
11. Delimitado, porém, nos termos supra referidos, o objecto do recurso, há que
começar por excluir uma possível objecção ao seu conhecimento. Com efeito, a
utilidade do julgamento deste recurso de constitucionalidade poderia, à partida,
ser questionada, uma vez que, embora o Supremo Tribunal de Justiça tenha julgado
irrelevante - por entender não ter cabimento a gravação da prova - o facto,
mencionado no Acórdão da Relação, de “a Recorrente não [ter] proced[ido] a
qualquer transcrição mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação
em que se funda”, tal facto, a verificar-se uma decisão no sentido da
inconstitucionalidade da interpretação contestada, poderia colocar a questão de
saber se a improcedência do recurso nas instâncias não teria tido um fundamento
alternativo – impossibilidade de gravação da prova e, em qualquer caso, falta de
cumprimento de determinado ónus processual.
A questão da gravação da prova e da sua transcrição sofreu uma evolução
legislativa na última década, Assim, a versão inicial do artigo 690º-A do Código
de Processo Civil, preceito aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de
Fevereiro, impunha ao recorrente que pretendesse utilizar a gravação da prova
para impugnar a decisão de facto perante a 2ª instância, que procedesse à
transcrição das passagens que entendesse relevantes para o efeito. Este ónus foi
mantido pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, mas eliminado pelo
Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, passando então o recorrente apenas a
ter que assinalar, pela forma ali indicada, os depoimentos gravados que lhe
interessem. Este último diploma entrou em vigor antes de ser proferida a
sentença da primeira instância e, portanto, antes de ser interposto o recurso
para o Tribunal da Relação, contendo regras relativas à aplicação no tempo das
alterações que introduziu.
Não cabendo, todavia, ao Tribunal Constitucional, interpretando tais regras,
determinar o regime aplicável ao modo de utilização da gravação da prova para
impugnação da decisão de facto (na eventualidade de vir a existir um juízo de
inconstitucionalidade sobre a interpretação que considerava ser inadmissível a
gravação da prova), a possibilidade de tal transcrição poder ser considerada
desnecessária nas instâncias justifica que o Tribunal Constitucional conheça do
objecto do recurso.
Vejamos, então.
12. Como o Tribunal Constitucional já observou, em termos que aqui se reiteram,
não viola por si só nenhum preceito constitucional – e nomeadamente o n.º 1 do
artigo 20º da Constituição – um regime processual que não determine a gravação
da prova realizada na audiência final. Nomeadamente, já fez essa apreciação
confrontando as hipóteses de intervenção do tribunal colectivo para apreciar a
prova com a alternativa da sua gravação, justamente do ponto de vista do recurso
relativo à decisão de facto (cfr., por exemplo, o acórdão n.º 233/2001, Diário
da República, II série, de 4 de Julho de 2001). E essa apreciação tanto vale em
si mesma, como quando confrontada com um regime que o venha substituir por outro
que comporte aquela gravação, nomeadamente por uma alegada infracção do
princípio da igualdade (cfr., a este propósito, acórdão 86/2004, Diário da
República, II série, de 19 de Março de 2004) decorrente da comparação de regimes
sucessivos.
O Tribunal Constitucional também já frisou em inúmeras ocasiões que, salvo em
matéria penal (n.º 1 do artigo 32º da Constituição), não resulta da Constituição
a imposição de um duplo grau de jurisdição, nomeadamente quanto à decisão sobre
a matéria de facto (cfr., por exemplo, além do já citado acórdão 233/2001, o
acórdão n.º 415/20001, Diário da República, II série, de 30 de Novembro de 2001,
e a jurisprudência nele referida). Como se escreveu no acórdão n.º 261/2002
(Diário da República, II série, de 24 de Julho de 2002), sendo certo que
“impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais [...], terá de
admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais
de recurso e os próprios recursos» (cfr., a este propósito, os acórdãos n.º
31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e n.º 340/90, id.,
vol. 17º, pág. 349). Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de
recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e
simplesmente a faculdade de recorrer em todo o qualquer caso, ou de a
inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga
margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões
[...]”.
O reconhecimento da ampla liberdade de conformação da liberdade do legislador
ordinário no que toca à definição das condições de admissibilidade de recurso
sempre foi acompanhado, todavia, com a advertência de que isso “não significa
que o legislador possa estabelecer arbitrariamente limitações ao direito ao
recurso em determinados processos ou situações, impondo um regime de desfavor
não legitimado por justificação objectiva plausível”, como escreve Lopes do
Rego, a propósito da jurisprudência constitucional nesta matéria (O Direito
fundamental do acesso aos Tribunais e a reforma do Processo Civil, sep.,
Coimbra, 2001, pág. 765).
Não merece, assim, em princípio, censura constitucional, como aliás já decorre
do que atrás se observou, uma norma que, ao não permitir o registo da prova
produzida em audiência, indirectamente restrinja o âmbito do recurso em matéria
de facto, tal como não viola a Constituição, igualmente em princípio, uma norma
que venha pura e simplesmente vedar o recurso.
Assim sendo, configurado o recurso como foi, nesta parte, delimitado pelo
respectivo requerimento de interposição, há que considerar não violar qualquer
princípio constitucional “a norma extraída da conjugação do artigo 63º, n.º 1,
do Código de Processo de Trabalho de 1981, com a do artigo 24º do Decreto-Lei
n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, aditado pelo Decreto-Lei n.º 180/96, de 25 de
Setembro, na interpretação que é inadmissível a gravação da prova no domínio
daquele Código de Processo de Trabalho de 1981, por o regime do mesmo Código
rejeitar tal gravação”
III. Decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso, na parte em que dele se
conhece.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 16 de Novembro de 2005
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Vencida, nos termos da declaração junta)
Vítor Gomes (Vencido, nos termos da declaração
de voto da Ex.ma Cons.ª Maria dos Prazeres Beleza, para que remeto).
Artur Maurício
Declaração de voto
Na qualidade de primitiva relatora, pronunciei-me no sentido de ser
concedido provimento ao recurso, na parte em que dele se conheceu, pelas
seguintes razões:
1 – Entendi que a definição do objecto do recurso deveria ter em
conta a interpretação que, em concreto, foi dada pelo tribunal recorrido às
normas dos artigos 63º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de 1981 e 24º,
n.º 1 do Decreto-Lei n.º329-A/95, aditado pelo Decreto-Lei n.º 180/96.
Sucedeu, no caso presente, que a intervenção do tribunal colectivo
tinha sido requerida pelo autor (a fls. 125) e deferida pelo tribunal de
primeira instância, pelo despacho de fls. 127; verificando-se, todavia, que o
mesmo autor prescindiu dessa intervenção (cfr. requerimento de fls. 147), foi o
tribunal que determinou, oficiosamente, que se procedesse a gravação da
audiência (cfr. acta de julgamento de 8 de Março de 2000, a fls. 148), gravação
essa que veio a ser realizada.
O tribunal de primeira instância considerou, assim, que valia para o
processo de trabalho o regime então definido pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95,
sendo, portanto, admissível a gravação da audiência final e cabendo o julgamento
da matéria de facto ao tribunal singular.
Quando o Tribunal da Relação de Lisboa veio afastar a utilização da
gravação, é óbvio que era irreversível a não intervenção do colectivo para
julgamento da matéria de facto – a não ser que o julgamento viesse a ser
anulado, naturalmente.
Ao confirmar tal afastamento, o Supremo Tribunal de Justiça veio
assim a considerar que a circunstância de já ter ocorrido o julgamento da
matéria de facto e de já não ser possível requerer a intervenção do colectivo
não impedia a recusa de utilização da gravação da audiência, porque dos
preceitos em apreciação decorria que, no domínio do Código de Processo do
Trabalho de 1981, era inadmissível a gravação da prova.
Nestes termos, a questão de constitucionalidade que está em causa
neste recurso consiste em saber se viola ou não a Constituição interpretar as
normas constantes dos artigos 63º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho de
1981 em conjunto com o n.º 1 do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, apenas
na medida em que impedem a utilização da gravação da audiência em primeira
instância, oficiosamente determinada e realizada, simultaneamente excluindo a
possibilidade de requerer a intervenção do tribunal colectivo.
2 – Justamente porque o objecto do recurso deveria ser definido
desta forma, considerei que se tornava necessário recordar o significado que tem
para as partes a decisão de determinar a gravação da audiência.
É indiscutível que o regime previsto no Código de Processo do
Trabalho de 1981 não previa a gravação da prova produzida em audiência de
julgamento. Diferentemente, estabelecia que as partes pudessem requerer, “no
prazo estabelecido para oferecer a prova”, que o julgamento da matéria de facto
fosse feito por um tribunal colectivo, como se viu (n.º 1 do artigo 63º, atrás
transcrito). Esse prazo vinha previsto no artigo 60º, e estava ligado ao prazo
para apresentação de reclamação contra a especificação e o questionário, ou para
a correspondente decisão.
Como se sabe, as questões da gravação da prova ou da intervenção do
tribunal colectivo para apreciação da mesma andaram (e andam) sempre ligadas na
legislação de processo civil.
Com efeito, e embora não se excluam, sempre foram apresentadas
(nomeadamente por razões de exequibilidade prática e de limitação de meios) como
compensação uma da outra. Assim, desde que a gravação da prova foi introduzida
nas acções em que o julgamento de facto era ou podia ser feito por tribunal
colectivo, que o legislador as colocou em alternativa: cfr. artigo 646º, n.º 2,
c), do Código de Processo Civil nas redacções que lhe foram sendo dadas pelo
Decreto-Lei n.º 39/95, 329-A/95 ou 183/2000, ou, sem agora tomar posição quanto
a saber quando tal possibilidade foi introduzida no processo de trabalho, o
artigo 68º, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho de 1999.
Ao determinar a gravação da audiência, o tribunal de primeira
instância considerou, manifestamente, que valia para o processo de trabalho o
regime então definido pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, sendo, portanto, admissível
tal gravação e cabendo o julgamento da matéria de facto ao tribunal singular.
Na sequência do processamento seguido – em particular, do julgamento
de facto por tribunal singular e da gravação da prova produzida em audiência –,
ao alegar no recurso que interpôs para o Tribunal da Relação de Lisboa, a fls.
427, a ré remeteu para os locais próprios da gravação para sustentar a
impugnação da decisão sobre vários pontos da matéria de facto.
Contou, assim, naturalmente apoiado na decisão de determinar a
gravação, que o Tribunal de 2ª instância podia rever a decisão de facto
utilizando o registo da prova efectuada. Ora sabe-se que a amplitude dos poderes
do Tribunal da Relação ao apreciar e eventualmente alterar a decisão de facto da
primeira instância é muito diferente consoante os depoimentos produzidos em
audiência forem ou não gravados (a gravação é a forma de registo que agora
releva). Para o verificar, basta confrontar as sucessivas redacções que foram
sendo dadas ao artigo 712º do Código de Processo Civil desde que entrou em vigor
o citado Decreto-Lei n.º 39/95 com a que tinha imediatamente antes desse
momento.
Era, pois, legítimo que a recorrente, quando decidiu recorrer da
sentença da primeira instância e quando definiu o objecto do recurso, contasse
com a possibilidade de ampla revisão da decisão de facto pelo Tribunal da
Relação.
3 – É indiscutível que o Tribunal Constitucional já julgou, por
diversas vezes, que não viola por si só nenhum preceito constitucional – e
nomeadamente o n.º 1 do artigo 20º da Constituição – um regime processual que
não determine a gravação da prova realizada na audiência final; e que o fez,
também para avaliar da efectividade do recurso relativo à decisão de facto,
comparando as hipóteses de intervenção do tribunal colectivo para apreciar a
prova com a alternativa da sua gravação, nomeadamente considerando a sucessão de
regimes diferentes (cfr., por exemplo, os acórdão n.º 233/2001 86/2004, citados
no acórdão).
Note-se, aliás, que, quer o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, quer o
acórdão recorrido, referem que o Código de Processo do Trabalho de 1981 não
previa a possibilidade de gravação da prova mas reconhecia às partes o direito
de requerer que o julgamento de facto fosse feito com intervenção do tribunal
colectivo.
4 – É igualmente indiscutível a existência de uma grande margem de
liberdade de conformação do regime dos recursos, e a não exigência
constitucional de um duplo grau de jurisdição, salvo em matéria penal, nos
termos igualmente constantes do acórdão e da jurisprudência nele citada.
Aceita-se, portanto, que, em princípio, e considerada em si mesma,
não viole a Constituição uma norma que restrinja o âmbito do recurso da decisão
sobre a matéria de facto, ou que até o impeça.
Pode é suceder que, num caso concreto, tal norma venha a ser
interpretada e aplicada de forma a lesar de forma inaceitável a confiança que as
partes justificadamente depositaram na aplicação de um outro regime, à luz do
qual conformaram a sua actuação processual, e, por essa via, a defesa dos seus
interesses substanciais em jogo na acção.
5 – No fundo, foi essa a razão determinante do julgamento de
inconstitucionalidade, por violação do princípio da confiança, inerente ao
princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2º da Constituição), da norma
que mandava aplicar às acções pendentes os novos valores que fixava para as
alçadas, retirando a possibilidade de recurso em casos em que, tendo em conta a
lei vigente à data da respectiva propositura, seria possível recorrer (acórdão
n.º 287/90, Diário da República, II série, de 20 de Fevereiro de 1991).
O Tribunal, considerando, nomeadamente, a tradição legislativa de ser relevante,
para o efeito, o valor das alçadas que vigorava nesse momento da propositura da
acção, entendeu então que era inaceitável, do ponto de vista constitucional, que
o legislador procedesse a uma “afectação de expectativas com que se não possa
razoavelmente contar – por ser extraordinariamente onerosa e excessiva” e
“arbitrária – isto é, (...) não (...) ditada pela necessidade de salvaguardar
direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (...)”
E considerou também constitucionalmente tutelada a posição da parte
que confia na “estabilidade de uma decisão judicial não impugnada” cujo objecto
tinha sido o de definir determinada regra de tramitação – no caso, fora deferido
pela primeira instância a prorrogação do prazo para recorrer, vindo o tribunal
de 2ª instância a julgar intempestivo o recurso interposto dentro da
prorrogação, que considerou ilegal (acórdãos n.ºs 39/2004 e 44/2004, ambos
publicados no Diário da República, II série, de 20 de Fevereiro de 2004).
Com efeito, escreveu-se no citado acórdão n.º 44/2004 que “não é
legítimo que uma decisão ao abrigo da qual se constitua um direito de
intervenção processual, ainda que baseada numa eventual interpretação errónea do
direito, mas não arbitrária ou ela mesma flagrantemente violadora de direitos
(...), venha a ser destruída pondo em causa o prosseguimento com boa fé da
actividade processual do arguido (...)”.
É certo que se tratava, então, de um recurso interposto em processo de natureza
penal; mas essa diferença apenas impede que se faça também apelo ao n.º 1 do
artigo 32º da Constituição. Não obsta a que se considere valer para o caso
presente a justificação que então conduziu a que, pela razão apontada, se tenha
concluído pela violação dos “princípios da segurança jurídica e da confiança”,
consagrados no artigo 2º da Constituição.
Para além disso, no acórdão 559/98 (Diário da República, II série, de 12 de
Novembro de 1998), também se julgou inconstitucional a norma (constante do
artigo 27º do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) segundo a qual se
aplicava às acções pendentes a eliminação da moratória forçada em caso de
execução que incidisse sobre bens comuns do casal, mas por dívidas da exclusiva
responsabilidade de um dos cônjuges, decorrente da nova redacção do artigo 1696º
do Código Civil, quando aplicada num momento processual em que ao cônjuge do
executado já não era processualmente possível requerer a separação de bens;
note-se, aliás, que a mesma norma foi julgada não inconstitucional no acórdão
n.º 508/99 (Diário da República, II série, de 17 de Março de 2000) justamente
porque esse momento ainda não tinha sido ultrapassado.
Destes julgamentos conclui-se que o Tribunal Constitucional julgou por diversas
vezes ser constitucionalmente inadmissível a lesão de expectativas que as partes
em processo pendente justificadamente depositaram na aplicação de um determinado
regime que as beneficiava, por infracção do princípio da confiança, inerente ao
princípio do Estado de Direito (artigo 2º da Constituição).
6 – Ora entende-se que o mesmo julgamento se devia proferir no presente recurso.
Com efeito, as normas que constituem o seu objecto foram aplicadas numa
interpretação inadmissivelmente lesiva da expectativa que a recorrente, baseada
em decisão – não impugnada – da primeira instância, adquiriu no sentido de que,
se viesse a ficar vencida e a recorrer para a Relação, poderia ser amplamente
revista a decisão sobre a matéria de facto, por ter sido registada a prova
produzida em audiência.
Tal expectativa assentou, aliás, numa decisão judicial que optou por uma
determinada interpretação do artigo 24º do Decreto-Lei n.º 329-A/95 no contexto
de uma controvérsia sobre a sua aplicabilidade ao processos laborais regulados
pelo Código de Processo do Trabalho de 1981. O acórdão recorrido dá conta dessa
mesma controvérsia, deixando bem claro que a 1ª instância escolheu uma das duas
soluções então discutidas nos tribunais.
Era, pois, absolutamente justificada a confiança depositada nas implicações
dessa escolha, ou seja, na possibilidade de a gravação da prova efectuada em 1ª
instância vir a ser usada em recurso.
Para além disso, repete-se, a decisão de determinar a gravação, não só não foi
impugnada (é, aliás, pelo menos discutível que a ora recorrente sequer pudesse
pô-la em causa), como também implicou o afastamento da possibilidade de requerer
a intervenção do tribunal colectivo para julgar a matéria de facto. A
interpretação que veio a prevalecer das normas que constituem o objecto deste
recurso de constitucionalidade lesou, assim, duplamente as legítimas
expectativas da recorrente.
E, finalmente, não se vê que valor constitucionalmente superior ao interesse da
recorrente poderá determinar a irrelevância da sua expectativa.
7 – Considero, finalmente, que as normas impugnadas, do mesmo passo e pelas
mesmas razões que lesam o princípio da confiança, põem igualmente em causa a
garantia do “processo equitativo” que, desde a revisão constitucional de 1997
figura expressamente no artigo 20º da Constituição, no seu n.º 4.
8 – Nestes termos, teria julgado inconstitucional, por violação conjugada dos
princípios da confiança, inerente ao princípio do Estado de Direito, e do
direito a um processo equitativo, consagrados nos artigos 2º e 20º, n.º 4, da
Constituição, a norma resultante da interpretação conjugada do n.º 1 do artigo
63º do Código de Processo do Trabalho de 1981 e do n.º 1 do artigo 24º do
Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, na medida em que impede a
utilização da gravação da prova produzida em audiência, em primeira instância,
oficiosamente determinada, simultaneamente excluindo a possibilidade de requerer
a intervenção do tribunal colectivo para o julgamento da matéria de facto,
assim, concedendo provimento ao recurso.
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza