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Processo n.º 1099/2004
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal Administrativo, em que figura como recorrente a Fundação A.
e como recorrido o Director-Geral do Departamento para os Assuntos do Fundo
Social Europeu (DAFSE), foi proferido acórdão, de 12 de Outubro de 2004, que
concedeu provimento parcial a um recurso da Fundação, mantendo, contudo, a
decisão que havia considerado inelegíveis despesas anteriormente consideradas
elegíveis no quadro dos fundos para acções de formação.
2. A recorrente interpôs recurso de constitucionalidade nos seguintes termos:
FUNDAÇÃO A., recorrente nos autos de recurso em epígrafe, tendo sido notificada
do teor do Acórdão proferido por este douto Tribunal, mas não podendo concordar
com o mesmo, vem dele interpor recurso para o Tribunal Constitucional, o que faz
nos termos da alínea b), do n° 1, do artigo 70°, da Lei do Tribunal
Constitucional.
Com efeito, o sentido da interpretação que o douto acórdão faz dos artigos 9°,
10° e 23° do Decreto-Lei n° 37/91, de 18 de Janeiro, viola os princípios da
imparcialidade e da boa-fé, constantes do artigo 266° da CRP, e dos artigos 6° e
6°-A do Código do Procedimento Administrativo, os quais conformam a necessária
disciplina que dimana daqueles preceitos. Tal violação foi expressamente
suscitada pela recorrente nas alegações de recurso jurisdicional, a páginas 9 e
seguintes e nos números 24 a 28 das respectivas conclusões.
Requer, portanto, a V. Exas. se dignem admitir o recurso ora interposto.
Junto do Tribunal Constitucional a recorrente alegou, concluindo o seguinte:
a) A Fundação A. realizou durante várias anos cursos de formação profissional
no âmbito das acções financiadas pelo Fundo Social Europeu;
b) No caso sub iudice apresentou o pedido de financiamento relativo ao dossier
PO.2 (90 1002 P1) Pedido 1011, à Entidade Gestora do respectivo Programa
Operacional - o IEFP, no âmbito do I Quadro Comunitário de Apoio;
c) No âmbito das suas atribuições o IEFP analisou o pedido e aprovou-o por
despacho de 28 de Junho de 1993;
d) Iniciadas as acções de formação o IEFP ordenou e foi efectuado um primeiro
adiantamento à Recorrente no valor de Esc: 148.783.200$00;
e) As acções de formação foram realizadas nos exactos termos propostos e
aprovados e, em 5/5/94, concluídas tais acções de formação, a Recorrente
apresentou ao IEFP o pedido de pagamento de saldo no valor global de Esc:
173.726.754$00;
f) Este pedido de pagamento de saldo, depois de devidamente escrutinadas todas
as acções desenvolvidas pela Recorrente, veio a ser aprovado pelo IEFP em
20/7/94 no montante de Esc: 160.886.432$00;
g) Do montante apresentado (173.726.754$00) o IEFP apenas considerou não
elegíveis despesas no valor de Esc: 12.840.322$00;
h) Recebida a importância a Recorrente liquidou os encargos contraídos com as
acções de formação, e ainda não satisfeitos, a colaboradores e fornecedores;
i) Em 7/9/95, passados 14 meses após a notificação da decisão da aprovação do
saldo por parte da Entidade Gestora (o IEFP), o DAFSE promoveu uma inspecção
através da BDO e,
j) Em 1/10/97, veio considerar não elegíveis despesas cuja importância ascende
a Esc: 39.146.986$00, e ordenou o seu reembolso não com fundamento em que acções
não fossem previstas ou não tivessem sido realizadas, mas apenas com base na
inadequação de alguns procedimentos por alegadas razões de optimização de
recursos que qualificou de razoabilidade ou boa gestão financeira;
k) Foi este o acto objecto da impugnação da Recorrente para o Tribunal
Administrativo de Círculo de Lisboa;
l) O Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, por sentença de 16/7/2002,
deu provimento ao recurso por incompetência material da Autoridade Recorrida na
prática do acto impugnado, no que concerne à ponderação de factores de ordem
pedagógica, matéria da esfera de competências das entidades gestoras, in casu, o
IEFP;
m) O DAFSE interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo e, em
resultado, foi a sentença do TAC revogada, tendo os autos baixado para
conhecimento dos restantes vícios alegados;
n) Por sentença do TAC de 19/10/2003, foi mantido o acto recorrido. A Fundação
A. interpôs recurso para o STA com fundamento em incompetência, violação de lei
por revogação de acto constitutivo de direitos e ainda por violação de lei por
desrespeito dos princípios constitucionais da boa-fé e da imparcialidade;
o) O Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão a quo, veio dar razão parcial
à Recorrente, considerando que algumas despesas que a BDO tinham considerado
inadequadas eram afinal adequadas;
p) É deste acórdão que a Recorrente interpôs o presente recurso para o Tribunal
Constitucional, com fundamento em violação, precisamente, dos princípios da
boa-fé e da imparcialidade;
q) A Recorrente defende que existe uma clara violação do princípio da boa-fé
porquanto, no momento da análise pela Entidade Gestora – o IEFP - do pedido de
pagamento de saldo (apresentado pela Fundação aquando da conclusão das acções),
esta autoridade administrativa, aplicando os juízos de elegibilidade definidos
para essas acções, aprovou de entre as despesas apresentadas, aquelas que
considerou adequadas e elegíveis;
r) E nesse mesmo momento procedeu, então, ao corte daquelas despesas que,
segundo esses mesmos juízos de elegibilidade, considerou inadequadas;
s) A Recorrente confiou nessa análise e aprovação e procedeu em conformidade,
pagando a terceiros colaboradores e fornecedores os serviços que ainda não
estavam integralmente satisfeitos;
t) Quando, passados 14 meses, o DAFSE veio chegar a conclusões diferentes,
aplicando critérios novos e desconhecidos, frustrou as legítimas expectativas de
confiança da Recorrente;
u) Que ficou, assim, impossibilitada de recuperar as importâncias já pagas a
colaboradores e fornecedores, pois que as suas obrigações foram devidamente
cumpridas, não dando lugar a repetição do indevido;
v) Há, assim, claramente um enriquecimento sem causa de que é beneficiária a
Administração e uma quebra da confiança que legitimamente a Recorrente
depositava no comportamento da Administração;
w) Ainda por cima já tinham passado mais de três anos entre a decisão do IEFP
(tomada em 20/7/94) e a revisão do acto ora impugnado (decisão final da
Autoridade Recorrida de 1/10/97);
x) O acórdão recorrido defende que os critérios utilizados não são critérios
novos e até parece admitir que eles podiam ter sido utilizados em fase anterior
do procedimento (excluindo apenas essa possibilidade na fase da candidatura -
pedido de financiamento);
y) Ora, se os critérios não são novos e puderem ser usados em fases anteriores
do procedimento, eles deveriam ter sido tomados em consideração pelo IEFP e,
portanto, na decorrência da tese do acórdão, ter-se-ia necessariamente de
registar uma interpretação incorrecta/ilegal por parte daquela primeira
autoridade interveniente no procedimento;
z) Não se percebe, porém, que em matéria de auto controlo por parte da
Administração as violações da lei sancionadas com a anulabilidade tenham sérias
limitações para poderem ser corrigidas e assim repor a legalidade - veja-se,
nomeadamente, o que dispõe o art. 141°, n° 1, do Código de Procedimento
Administrativo - enquanto que no caso sub iudice, os actos do IEFP seriam, no
entender do Tribunal a quo, sempre revogáveis, revestindo em consequência dessa
permanente revogabilidade uma natureza precária;
aa) É sabido que a manutenção dos actos anuláveis decorrido que seja um certo
prazo é feita pelo legislador para protecção da confiança do destinatário do
acto e constitui, portanto, uma clara aplicação da teoria da boa-fé;
bb) O desrespeito pela definição formulada pelo acto anulável por parte da
Administração, através da sua revisão muito tempo depois é, consequentemente,
uma violação do princípio da boa-fé;
cc) Mas mesmo que aceitemos a tese do acórdão a quo de que os critérios
contabilísticos e financeiros só podem ser aplicados numa situação concreta e
consumada e não no caso de candidatura ou de acção meramente projectada, também
aqui é fácil retorquir criticamente que, quando o IEFP aprovou o saldo, as
acções já se encontravam realizadas, havendo portanto a possibilidade da
aplicação dos critérios referidos;
dd) A tese do acórdão a quo só poderia ter alguma verosimilhança se as
competências do DAFSE e do IEFP fossem, neste caso, de natureza diferente, mas
como foi decidido e transitou em julgado, o julgador entendeu que as
competências do DAFSE se estendiam também à competência pedagógica;
ee) E foi precisamente nesta base de adequação pedagógica que o DAFSE fez os
seus juízos de elegibilidade. Não houve regras contabilísticas invocadas, houve
sim, juízos sobre a adequação dos meios (constituição de equipas, número de
colaboradores, qualidade dos materiais pedagógicos, etc.) que são manifestamente
questões de natureza pedagógica e não contabilística;
ff) Os juízos de elegibilidade violaram as regras de confiança e o princípio da
boa-fé. Ora, este valor da boa-fé deve claramente avantajar-se sobre critérios
de adequação tão fluidos que o próprio Tribunal a quo, nalguns pontos, discorda
da aplicação feita pela Autoridade Administrativa Recorrida;
gg) O não atendimento à situação de confiança suscitada na Recorrente
conduzirá, aliás, não apenas ao enriquecimento sem causa da Administração pelos
serviços prestados por terceiros e que assim serão pagos pela Fundação sem
possibilidade de os fazer repercutir sobre a Administração, como ainda a uma
situação de gravíssimo défice financeiro, senão mesmo à extinção da instituição;
hh) As disposições do Decreto-Lei n° 37/91, de 18 de Janeiro (artigos 9°, 10°
e 23° citados) devem, assim, ser interpretadas no sentido de proteger a
confiança depositada nos promotores de acções de formação nas actuações e actos
das autoridades administrativas competentes, designadamente do IEFP;
ii) Se assim não se proceder correr-se-á o risco de a final comprometer o
objectivo das acções de formação empreendidas, pois que ninguém quererá
colaborar com o Estado no futuro, em semelhantes circunstâncias;
jj) O princípio da boa-fé, como aliás os restantes princípios consagrados no
art. 266, n° 2, da CRP, integra a legalidade do caso concreto. Constitui um
parâmetro normativo pelo qual deve ser aferida a legalidade do acto praticado. A
boa-fé aplica-se tanto no exercício de poderes discricionários, como no
exercício de poderes vinculados, pois que o preceito positivo concedendo certos
poderes ou certos deveres tem de ser acomodado ou até preterido para se cingir
em conformidade com outra positividade superior;
kk) Quando a Administração o esquece, o papel do Juiz é corrigi-la, sob pena de
desrespeitar a Constituição;
ll) Se se considerar que não é possível proceder a uma interpretação correctiva
conforme à Constituição daquelas disposições legais aplicadas no caso sub
iudice, ter-se-á de entender que aquelas são materialmente inconstitucionais;
mm) O eventual entendimento de que as normas referidas no Decreto-Lei n° 37/91
estariam cobertas pelo direito comunitário também não colhe, na medida em que
tais disposições comunitárias são ilegais se violarem disposições de direitos
fundamentais garantidos por uma Constituição nacional;
rm) E também porque a protecção dos direitos fundamentais é acolhida no direito
comunitário e na jurisprudência do Tribunal Europeu, nos termos que decorrem das
tradições constitucionais e das obrigações internacionais comuns aos
Estados-Membros e da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e
das Liberdades Fundamentais;
oo) Como ainda, porque a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, no
seu artigo 53°, prescreve que o nível de protecção dos direitos protegidos pela
legislação comunitária não deve ser inferior ao consignado nas Constituições dos
Estados-Membros;
pp) Tudo o que se disse quanto ao princípio da boa-fé é aplicável, mutatis
mutandis, ao princípio da imparcialidade que, aliás, representa uma
especificação daquele anterior princípio, designadamente quando se observa que
os critérios utilizados nas auditorias da B. relativos às acções de formação
sobre que incidiu o acto impugnado, não são os mesmos que foram usados noutros
procedimentos anteriores igualmente auditados, ou procedimentos contemporâneos
sobre os quais não recaiu qualquer auditoria.
Nestes termos, o Tribunal Constitucional deve conhecer o presente recurso,
atento o disposto no artigo 280°, n° 1, alínea b), da Constituição da República
Portuguesa e no artigo 70°, n° 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional,
com as consequências decorrentes do artigo 80° da mesma Lei.
A entidade recorrida contra-alegou tirando as seguintes conclusões:
I Das conclusões 24.ª a 28.ª da alegação apresentada junto do Tribunal a quo
decorre que os vícios de imparcialidade e de comportamento pautado pela não
observância da boa fé não foram imputados a qualquer norma jurídica mas, tão só,
à actuação da entidade recorrida na adopção do acto impugnado;
II Nos processos de fiscalização concreta da constitucionalidade o que está em
causa é a constitucionalidade das normas tais como elas foram interpretadas e
aplicadas nos casos submetidos a julgamento;
III A recorrente não suscitou durante o processo em termos processualmente
adequados perante o tribunal recorrido a questão de inconstitucionalidade
normativa, conforme impõe o n.º 2 do art. 72.º da Lei n.º 28/82, de 15.11 , na
redacção dada pela Lei n.º 13-A/98, de 26.02, pelo que, não se encontra
preenchido o pressuposto de admissibilidade do recurso constante da alínea b) do
art. 70.º da L TC;
IV Não basta, para efeitos de elegibilidade, que uma determinada despesa se
encontre aprovada em sede de candidatura e esteja suportada por documento
idóneo, é também necessário verificar se a despesa reúne os requisitos de
legalidade, conformidade, efectividade, razoabilidade e boa gestão financeira
(Neste sentido decidiram, nomeadamente, os acórdãos proferidos nos recursos n.ºs
44888 e 1108, de 24.10.01 e 08.10.03, respectivamente);
V A decisão de aprovação de um pedido de constituição-financiamento não
consubstancia um acto constitutivo de direitos, mas uma mera autorização para a
realização de despesas, cuja execução, no respeito pelos seus próprios termos,
pela legislação em vigor e por princípios de boa gestão financeira, está sujeita
a justificação e decisão em sede de prestação de contas finais, só então se
fixando os montantes efectivos das contribuições a atribuir (Neste sentido foi
proferido, designadamente, o acórdão de 15.05.03, no recurso n.º 264/04);
VI A auditoria contabilístico-financeira realizada à acção de formação
desenvolvida pela recorrente fundou-se em juízos técnicos conclusivos,
formulados de acordo com as regras próprias comuns a qualquer análise
contabilística e financeira e na obediência dos critérios de legalidade,
conformidade, efectividade, razoabilidade e boa gestão financeira.
VII A interpretação feita pelo acórdão a quo dos artigos 9.º, 10.º e 23.º do
Decreto-Lei n.º 37/91 , de 18 de Janeiro, não viola os princípios da
imparcialidade e da boa-fé, constantes do artigo 266.º da CRP.
Termos em que, ao abrigo do disposto no n.º 2 in fine e n.º 3 do art. 76.º da
LTC não deve ser conhecido o presente recurso ou, caso assim não seja entendido,
deve ser negado provimento ao mesmo, confirmando-se o acórdão recorrido, fazendo
V.Exas, Venerandos Conselheiros, a habitual e esperada
JUSTIÇA!
À questão prévia suscitada pela entidade recorrida, a recorrente respondeu o
seguinte:
a) Os princípios da imparcialidade e da boa-fé, consagrados no artigo 266° da
Constituição da República Portuguesa, devem, do ponto de vista da sua aplicação
ser interpretados como normas verticais que integram a inteira hierarquia das
fontes de direito, designadamente de Direito Administrativo;
b) Estes princípios conformam e fazem parte, como unidade incindível, dos
parâmetros normativos que regulam a actividade da Administração no caso
concreto, designadamente dos artigos 9°, 10° e 23° do Decreto Lei n° 37/91;
c) Por isso, ao interpretar esses citados preceitos com desrespeito da acção
conformadora dos princípios constitucionais da imparcialidade e da boa-fé, isto
é, dando-lhes uma interpretação que contraria esses princípios, a Administração
violou, simultaneamente, essas normas legais e esses mesmos princípios
constitucionais;
d) No recurso sub iudice, ao indicar-se o modus operandi dos princípios e os
preceitos violados, indicaram-se infracções normativas concretas à Constituição
cumprindo-se, por isso, as exigências da Lei do Tribunal Constitucional.
Do exposto resulta que a excepção suscitada pelo Recorrido não merece
atendimento devendo, assim, o recurso sub iudice prosseguir os seus termos até
final.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
Questão prévia
3. A entidade recorrida suscita a questão prévia consistente na invocação
durante o processo da questão de constitucionalidade normativa, sustentando que
a recorrente apenas impugnou a decisão judicial e não uma norma jurídica.
A recorrente afirma, no requerimento de interposição do recurso de
constitucionalidade, que suscitou as questões de constitucionalidade que
pretende ver apreciadas na p. 9 e ss. das alegações e nos nºs 24 a 28 das
respectivas conclusões.
O teor da p. 9 e ss. é o seguinte:
IV – VIOLAÇÃO DA LEI POR DESRESPEITO DE IMPARCIALIDADE E INOBSERVÂNCIA DA BOA-FÉ
O DAFSE não respeitou, ainda, o princípio de imparcialidade ao utilizar
critérios de razoabilidade diferentes do que o IEFP e o próprio DAFSE aplicaram
em casos rigorosamente análogos. Deu-se, aliás, o exemplo de uma acção de
formação realizada na Região Autónoma dos Açores, o dossier PO 1001 (901008 P1)
- Pedido 366, que obedeceu aos mesmos critérios do caso sub iudice na fixação
das diversas alíneas e verbas que a Recorrente usou e a Direcção Regional de
Emprego e Formação Profissional – DREFP (entidade gestora dos programas
operacionais de emprego dos Açores) aprovou. Houve até, também, auditoria do
DAFSE (Doc. n° 20 junto à p.i.). Daí a similitude ser perfeita, só divergindo a
decisão do DAFSE. Mas, para além de um caso concreto em que a mesma entidade, o
DAFSE, usa critérios diversos, há que referir a questão verdadeiramente
essencial e decisiva da introdução pelo DAFSE de novos critérios de
razoabilidade diferentes dos praticados pelo IEFP e que os procedimentos
auditados e os não auditados vão ter critérios de decisão diferentes. Em suma, o
esquema adoptado pelo DAFSE conduz a que a situações análogas ou similares se dê
tratamento diferenciado consoante tenham sido sujeitas ou não a auditoria. O
próprio esquema procedimental adoptado pelo DAFSE com a adopção de critérios de
razoabilidade novos usados pela primeira vez pelas auditorias não respeita o
princípio da imparcialidade, nem o da igualdade entre os administrados.
Tudo isto resulta, insista-se, da auditoria ser usada não como instrumento de
verificação da legalidade ou correcção do comportamento - como instrumento
controlo/sanção - mas como ocasião para introduzir novos critérios desconhecidos
nas fases anteriores do procedimento, pretendendo o DAFSE substituir-se à gestão
e aos conhecimentos técnicos de entidades gestoras, in casu do IEFP.
É claro que a prática do DAFSE viola também a boa-fé dos destinatários dos actos
da Administração nos procedimentos de formação a que nos vimos referindo, tal
como aconteceu no caso concreto sub iudice. A Recorrente tinha a legítima e
legal expectativa de que, tendo sido considerados os seus comportamentos
correctos e cumpridas as suas obrigações, os seus direitos não fossem
desrespeitados por actos revogatórios ilegítimos. A prestação do cumprimento das
obrigações da Administração, pela forma como é praticada, viola claramente a
boa-fé. Se o Estado se conduzisse sempre assim não seria uma pessoa de bem!
A competência do DAFSE tem de ser olhada em abstracto e não pode, no caso
concreto, legitimar a violação dos direitos constituídos nem os princípios da
boa-fé e da imparcialidade, sob pena de se sacrificarem princípios básicos do
Estado de Direito constitucionalmente garantidos.
Deve, ainda, formalmente dizer-se que a interpretação das normas de competência
em termos de permitir arredar na sua aplicação concretos princípios da
imparcialidade e da boa-fé, conduziria a uma inconstitucionalidade daquelas
referidas normas que, para as devidos efeitos, expressamente aqui se alega.
As conclusões 24 a 28 são as seguintes:
24° A Autoridade Recorrida violou ainda o princípio da imparcialidade -
violação da lei - ao tratar casos absolutamente análogos e em que também se
registaram auditorias, por forma diferente - infringindo, assim, o art. 266°,
n° 2 da CRP e o art. 6° do CPA;
25º Mais grave ainda ao introduzir critérios novos nas auditorias, que não
puderam ser tomados em conta nas fases anteriores do procedimento, provocou uma
parcialidade estrutural - a diferença entre os procedimentos em que houve
auditoria e aqueles em que não houve;
26º A Autoridade Recorrida, ao frustrar a legítima expectativa de que a
Recorrente cumprisse as obrigações assumidas e do modo como o fez, violou também
a boa-fé da Recorrente - CRP , art. 266°, n° 2 e CP A, art. 6°-A;
27º A competência do DAFSE tem de ser olhada em abstracto e não pode, no caso
concreto, legitimar a violação dos direitos constituídos nem os princípios da
boa-fé e da imparcialidade, sob pena de se sacrificarem princípios básicos do
Estado de Direito constitucionalmente garantidos;
28° Deve, ainda, formalmente dizer-se que a interpretação das
normas de competência em termos de permitir arredar na sua aplicação concretos
princípios da imparcialidade e da boa-fé, conduziria a uma inconstitucionalidade
daquelas referidas normas que, para os devidos efeitos, expressamente aqui se
alega;
4. Sendo o presente recurso interposto ao abrigo dos artigos 280º, nº 1, alínea
b), da Constituição e 70º, nº 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, é
necessário, para que se possa tomar conhecimento do seu objecto, que a questão
de constitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.
O Tribunal Constitucional tem entendido este requisito num sentido funcional. De
acordo com tal entendimento, uma questão de constitucionalidade normativa só se
pode considerar suscitada de modo processualmente adequado quando o recorrente
identifica a norma que considera inconstitucional, indica o princípio ou a norma
constitucional que considera violados e apresenta uma fundamentação, ainda que
sucinta, da inconstitucionalidade arguida. Não se considera assim suscitada uma
questão de constitucionalidade normativa quando o recorrente se limita a
afirmar, em abstracto, que uma dada interpretação é inconstitucional, sem
indicar a norma que enferma desse vício, ou quando imputa a
inconstitucionalidade a uma decisão ou a um acto administrativo.
Por outro lado, o Tribunal Constitucional tem igualmente entendido que a questão
de constitucionalidade tem de ser suscitada antes da prolação da decisão
recorrida, de modo a permitir ao juiz a quo pronunciar-se sobre ela. Não se
considera assim suscitada durante o processo a questão de constitucionalidade
normativa invocada somente no requerimento de aclaração, na arguição de nulidade
ou no requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade (cf., entre
muitos outros, o Acórdão nº 155/95, D.R., II Série, de 20 de Junho de 1995).
Verifica-se das transcrições realizadas das peças processuais indicadas pela
recorrente que o vício de inconstitucionalidade é imputado a uma actuação da
“autoridade recorrida” e não a uma norma jurídica.
É verdade que na conclusão 28 é referida a “interpretação das normas de
competência em termos de permitir arredar na sua aplicação concretos princípios
da imparcialidade e da boa fé”.
No entanto, esta dimensão normativa, enquanto tal, não foi aplicada nos autos –
cf. o ponto 2.2.4. do acórdão recorrido (fls. 718 a 720 dos autos), cujo teor é
o seguinte:
2. 2. 4. Violação dos princípios da boa fé e da imparcialidade:
A sentença recorrida considerou que não foi violado o princípio da boa fé, pois
que cabia na competência do DAFSE verificar a exactidão dos valores apresentados
e da sua razoabilidade, sendo-lhe legítimo propor cortes, o que a recorrente
devia saber à partida, pelo que não era legítima a sua expectativa de vir a
receber o valor declarado no saldo final.
A recorrente discorda, considerando que lhe foi frustrada uma legítima
expectativa.
Mas não lhe assiste razão, porquanto, conforme se salientou em 2.2.3., o
eventual convencimento da recorrente de que seriam reembolsadas todas as
despesas efectuadas desde que não excedesse o limite do financiamento, não tem
suporte legal, pelo que, não podem considerar-se legítimas as expectativas que a
recorrente possa ter formulado nesse sentido.
No que respeita à violação do princípio da imparcialidade, considerou a sentença
recorrida que também não ocorreu essa violação, na medida em que se impunha à
autoridade recorrida verificar a adequação dos custos apresentados à realidade
da acção desenvolvida, aos preços dos bens e serviços no mercado nacional, à
razoabilidade de imputação na estrutura empresarial em concreto, não se
verificando qualquer parcialidade nas auditorias realizadas nem nos métodos
empregues, matéria em que goza de discricionaridade técnica e em cuja apreciação
não se detecta qualquer erro grosseiro.
A recorrente discorda, mais uma vez, considerando que houve casos análogos em
que também se registaram auditorias que foram tratados de forma diferente e que,
ao introduzir critérios novos nas auditorias, que não puderam ser levados em
conta nas fases anteriores do procedimento, provocou uma parcialidade
estrutural, que foi a diferença entre os procedimentos em que houve auditorias e
aqueles em que as não houve. Considerou ainda que a interpretação das normas de
competência em termos de arredar a aplicação concreta dos princípios da boa fé e
da imparcialidade implicaria a sua inconstitucionalidade material.
Também nesta parte lhe não assiste razão, em nosso entender.
Na verdade, e antes do mais, a recorrente não provou, como se lhe impunha, que
houvesse outros casos análogos em que as auditorias foram tratadas de forma
diferente, pois que, no caso concreto que indica, não se vislumbra que o
tratamento dado às questões ora colocadas tenha sido objecto de tratamento
diferente (vd. fls 159 e fls 161 dos autos, donde parece de extrair que apenas
houve um coordenador , sendo certo que o montante imputado numa e noutra acção –
39 762 958$00 na acção em análise (fls 73 dos autos) e 7 522 000$00 na outra
(fls 159) - evidencia não se estar perante equipas semelhantes).
Com efeito, esse caso considerado análogo está documentado no relatório de
auditoria de fls 150-171 dos autos, resultando dele, conclusivamente, que foi
considerado inelegível determinado montante na rubrica pessoal não docente (fls
160 dos autos), aquela em relação à qual a recorrente invoca concretamente essa
violação, sem serem apontadas as razões dessa diferença, que, por isso, se
desconhecem.
E a recorrente nem em relação a esta rubrica concretizou a similitude das
situações, tal qual como relativamente às restantes, em relação às quais se
limitou a invocar genericamente tratamento diferente, sem qualquer concretização
da diferença, tratamento esse que, como foi referido, se não alcança.
Por outro lado, também não se vislumbra que na auditoria que serviu de suporte
ao acto impugnado tivessem sido introduzidos critérios novos que não puderam ser
utilizados em fases anteriores do procedimento. Os critérios utilizados foram os
próprios das regras comuns a qualquer análise contabilística e financeira, com
vista a permitir apurar da razoabilidade das despesas e da boa gestão financeira
das mesmas. Estes critérios só podem, por natureza, ser aplicados nesta fase do
procedimento, perante uma situação de facto concreta e consumada e não perante
uma situação de mero projecto, como é o caso da candidatura. Portanto e em
conclusão, os critérios não são novos, mas critérios que apenas podendo ser
aplicados nesta fase, já se sabia que podiam, e deviam, ser aplicados, como
resulta do estabelecido nos artigos 9.º, 10.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 37/91.
De assinalar, finalmente, que a interpretação feita dos preceitos supra
referidos não permite, pelas razões expendidas, considerar que os mesmos violem
os princípios da boa fé e da imparcialidade, o que afasta a sua arguida
inconstitucionalidade material.
Improcedem, assim, as conclusões 24.º a 28.º das alegações da recorrente.
Daqui resulta, portanto, que o tribunal recorrido não formulou qualquer dimensão
normativa de que arredasse aqueles princípios. Tê-lo feito, efectivamente, ou
não é já, apenas, uma questão de aplicação do Direito. Daí não resulta qualquer
critério normativo que tenha dispensado aqueles princípios. Só invocando
critérios normativos efectivamente colidentes com a Constituição, que a decisão
recorrida tivesse aplicado, é que subsistiria uma verdadeira questão de
constitucionalidade normativa.
5. Mas tendo o Supremo Tribunal Administrativo formulado uma apreciação geral
da conformidade à Constituição dos artigos 9º, 10º e 23º do Decreto-Lei nº
37/91, de 18 de Janeiro, a recorrente foi notificada para produzir alegações.
Contudo, das alegações apresentadas resulta, mais uma vez, que o objecto da
impugnação é a decisão recorrida, a actuação da autoridade administrativa, e
nunca uma norma jurídica. Com efeito, em momento algum é identificado um
critério normativo que a recorrente repute de inconstitucional, apenas se
afirmando que as disposições referidas devem ser interpretadas no sentido de
proteger a confiança, e que os princípios da boa fé e da imparcialidade devem
conformar a interpretação desses preceitos. Não se identifica o sentido com que
os mesmos foram interpretados nem o sentido com que deviam ter sido
interpretados.
A recorrente apenas se insurge, pois, contra a actuação da entidade
administrativa e contra a decisão recorrida.
Na resposta à questão prévia, a recorrente procura sustentar que os princípios
da boa fé, da justiça e da imparcialidade têm dignidade constitucional. No
entanto, a questão prévia suscitada não assenta na falta de dignidade
constitucional dos princípios alegadamente violados, mas sim na não suscitação
durante o processo de uma questão de constitucionalidade normativa, como foi
referido. De resto, na resposta à questão prévia a recorrente continua a não
identificar uma qualquer dimensão normativa que considere inconstitucional (o
que, a acontecer, aliás, teria de ser considerado intempestivo).
6. Procede, pois, a questão prévia suscitada, pelo que não se tomará
conhecimento do objecto do presente recurso, já que não foi suscitada durante o
processo uma questão de constitucionalidade normativa, tendo a recorrente apenas
impugnado, na perspectiva da constitucionalidade, a actuação concreta da
entidade administrativa.
III
Decisão
7. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide não tomar conhecimento
do objecto do presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 15 UCs.
Lisboa, 25 de Maio de 2005
Maria Fernanda Palma
Mário José de Araújo Torres
Benjamim Rodrigues
Paulo Mota Pinto
Rui Manuel Moura Ramos