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Processo n.º 365/04
3.ª Secção
Relator Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, na 3.ª secção, do Tribunal Constitucional
1. A. interpõe recurso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de
27 de Janeiro de 2004 (fls. 221), que considerou que a obrigação de o Estado
assegurar subsidiariamente o pagamento das pensões alimentares, nos termos do
Decreto-Lei n.º 164/99, de 3 de Maio, nos casos de impossibilidade de haver do
progenitor obrigado a alimentos as quantias devidas, apenas se aplica quando for
menor o alimentando, não sendo tal regime aplicável quando o beneficiário dos
alimentos incobráveis do progenitor insolvente ou ausente for um filho maior,
que se encontre na situação prevista nos artigos 1880.º do Código Civil e 1412.º
do Código de Processo Civil.
A recorrente quer ver julgada inconstitucional a norma do artigo 1.º
da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, quando interpretada no sentido de que a
garantia das prestações alimentares a cargo do Fundo de Garantia de Alimentos
Devidos a Menores cessa com a maioridade, não tendo o âmbito do artigo 1880.º do
Código Civil, por violação do disposto nos artigos 70.º, n.º 1 alínea a) e n.º
2, 68.º n.º 1, 67.º n.ºs. 1 e 2 alíneas c) e f), 18.º n.ºs. 1 e 2 e artigo 9.º
alíneas d) e f) da Constituição da República Portuguesa.
2. O recurso foi admitido e prosseguiu, com produção de alegações
por parte da recorrente e do Ministério Público.
O relator proferiu, depois, o seguinte despacho (fls 259):
“O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC). Este preceito, em conjugação com
o n.º 2 do artigo 72.º do mesmo diploma, exige que o recorrente tenha suscitado
a questão de constitucionalidade que quer ver apreciada pelo Tribunal
Constitucional, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
No caso, após várias vicissitudes, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
foi mandado seguir como de agravo simples (tinha sido interposto ao abrigo do
n.º 4 do artigo 678.º do Código de Processo Civil), sendo decidido valer como
alegação da recorrente a peça de fls. 65 a 70 dos autos, que contém também o
requerimento de interposição do recurso do acórdão do Tribunal da Relação (Cf.
despacho de fls. 202-203). Portanto, em princípio, seria aí que a recorrente
deveria ter chamado expressamente o Supremo Tribunal de Justiça a desaplicar a
norma em causa com fundamento em inconstitucionalidade, não parecendo que possam
aproveitar-se para o efeito as alegações de recurso para o Tribunal da Relação
de Guimarães, como a recorrente pretende no requerimento de interposição do
recurso de constitucionalidade ( fls. 229).
Ora, não se vislumbra naquela peça (nem, aliás, em qualquer outra intervenção da
recorrente perante o Supremo Tribunal de Justiça que seja anterior ao acórdão
recorrido) a colocação de qualquer questão de constitucionalidade normativa.
Por outro lado, não aparenta desenhar-se um caso enquadrável no tipo daquelas
situações excepcionais ou anómalas em que, num entendimento funcional do
referido ónus, a jurisprudência do Tribunal tem considerado não ser exigível que
o recorrente colocasse a questão ao tribunal a quo antes de este ter proferido a
decisão recorrida. Além do mais, porque foi o recorrente quem, para obstar a que
o recurso fosse julgado deserto, fez valer essa peça como incorporando as
alegações do agravo (Cf. acórdão de fls. 189, que recaiu sobre a reclamação para
a conferência).
Deste modo, afigurando-se plausível que venha a decidir-se não conhecer do
objecto do recurso, notifique as partes para dizerem o que tiverem por
conveniente, no prazo de 10 dias.”
Apenas respondeu a recorrente, sustentando que deve conhecer-se do
recurso de constitucionalidade, nos seguintes termos:
“Aquando da produção de alegações no agravo interposto do despacho do Tribunal
Judicial da Comarca de Braga, que fixou a cessação da prestação de alimentos
pelo Fundo de Garantia de Alimentos a Menores, foi levantada a questão da
inconstitucionalidade desta decisão, nomeadamente, na sua conclusão 4 e a fls. 5
e 6.
O sentido do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães foi o mesmo do deste
despacho.
Ora, o único recurso possível do acórdão do Tribunal de Guimarães é o recurso de
agravo, ao abrigo do art.º 678.º, n.º 4 do Cód. Proc. Civil, com fundamento na
contradição com outro acórdão sobre a mesma questão de direito. E foi este o
recurso interposto e admitido.
Acontece que, na alegação deste recurso, que segue os trâmites dos arts. 732.º-A
e 732.º-B do Cód. Proc. Civil, cabe apenas a demonstração da oposição de
julgados, o que foi feito.
A posição da ora Requerente quanto á desconformidade com a Constituição da
República Portuguesa da interpretação feita das normas constantes dos arts. 3º
n.º 4 da Lei 75/98 de 19 de Novembro e do art.º 9º do DL 164/99 de 13 de Maio,
e, no geral, da interpretação feita destes diplomas, com o sentido de que as
prestações que o Fundo de Garantia de Alimentos a Menores presta, cessam com a
maioridade destes, foi determinada nas já referidas alegações de recurso para o
Tribunal da Relação de Guimarães, entradas a 02 de Maio de 2002.
O Supremo Tribunal de Justiça não fixou jurisprudência, tendo-se limitado a
confirmar o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães e a negar provimento ao
recurso da ora Recorrente para fixação daquela.
Contudo, pronunciou-se claramente sobre a questão da (in)constitucionalidade que
havia sido levantada nas alegações já referidas, no sentido de que o seu
entendimento seria perfeitamente conforme a Constituição.
Ora, significa esta pronúncia que a questão da inconstitucionalidade foi
colocada na altura devida (a única possível), e, para mais, foi tida em
consideração por quem devia considerá-la.
Por tudo o exposto, e ainda porque se trata de uma questão de justiça social,
deverá o Tribunal Constitucional conhecer do objecto do recurso em questão.”
3. Para apreciação da referida questão prévia importa ter presentes
as ocorrências processuais seguintes:
a) A recorrente interpôs recurso, para o Tribunal da Relação de Guimarães,
da decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Braga (2º Juízo Cível) que
determinou a cessação da prestação do Fundo de Garantia dos Alimentos Devidos a
Menores a partir da data em que o filho da recorrente, de cujo pai não é
possível obter a cobrança da prestação alimentar, atingisse a maioridade;
b) Nas respectivas alegações, além do mais, afirmou que “a interpretação da
Lei 75/98 neste sentido, que a decisão de que se recorre lhe dá, viola
claramente a Constituição da República Portuguesa, nos seus art.ºs 9.º alíneas
d) e f), 18º, n.ºs 1 e 2, 36.º n.º 3, 67.º n.ºs 1 e 2 alíneas c) e f), 68.º n.º
1 e 70.º n.º 1 alínea a) e n.º 2” e concluiu que “esta decisão, na interpretação
que faz da lei 75/98 de 19 de Novembro e do DL 164/99 de 13 de Maio, viola
vários normativos da Constituição da República Portuguesa (arts. 9.º alíneas d)
e f), 18.º, n.º 1 e 2, 36.º, n.º 3, 67.º n.º 1 e 2 alínea c) e f), 68.º n.º 1 e
70.º n.º 1 alínea a) e n.º 2), na medida em que desonera o Estado da tarefa de
proteger e assegurar o desenvolvimento dos seus cidadãos, especialmente dos
jovens, assegurando a igualdade de circunstâncias no acesso à formação
profissional e desenvolvimento pessoa, de proteger e cooperar com a família na
prossecução das tarefas, tal como é obrigado pelos normativos constitucionais
citados”;
c) Pelo acórdão de 2 de Outubro de 2002 (fls. 55), o Tribunal da Relação de
Guimarães negou provimento ao recurso;
d) A recorrente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (fls.
65), dizendo fazê-lo “com base no disposto no n.º 4 do art. 678.º do Cód. Proc.
Civil, a processar-se nos termos dos art. 732.º-A e 732.º-B do mesmo diploma
legal”, por oposição com outros acórdãos que identifica.
e) O recurso não foi admitido, tendo a recorrente reclamado para o
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;
f) A reclamação foi deferida, determinando-se que o recurso fosse admitido
ao abrigo do artigo 678.º, n.º 4, do Código de Processo Civil (fls.161);
g) Admitido o recurso em obediência à decisão da reclamação, foi depois
proferido despacho, ainda no Tribunal da Relação de Guimarães, a julgá-lo
deserto por falta de alegações (fls. 187);
h) A recorrente reclamou deste despacho para a conferência que, por acórdão
de 25 de Julho de 2003 (fls. 189), a deferiu, revogando o despacho reclamado,
com fundamento em que as alegações da recorrente estavam contidas no
requerimento de interposição do recurso, a fls. 65-70 dos autos [supra al. d)];
i) No Supremo Tribunal de Justiça foi decidido que o recurso seguia como
agravo simples, nos termos gerais (agravo continuado), com notificação apenas
dos recorridos para contra-alegarem, por se considerar haver caso julgado formal
sobre o acórdão da conferência na Relação que decidira constituir alegação da
recorrente o contido no requerimento de fls. 65-70;
j) Por acórdão de 27 de Janeiro de 2004 (fls. 221), foi negado
provimento ao recurso.
4. O n.º 2 do artigo 72.º da LTC, na redacção da Lei n.º 13-A/98, de 26 de
Fevereiro, ao incluir o inciso “perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida”, tornou claro, pondo termo à divergência jurisprudencial sobre a
matéria, que o interessado que tenha suscitado numa instância, sem sucesso, uma
questão de inconstitucionalidade, tem de renovar a questão perante o tribunal
superior para que da decisão deste se abra a via de recurso para o Tribunal
Constitucional a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (cf.
acórdão n.º 222/02, www.tribunalconstitucional.pt).
A recorrente reconhece que apenas colocou a questão de constitucionalidade nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Guimarães. Mas afirma que
cumpriu o referido ónus porque, atendendo ao tipo de recurso interposto, essa
era a altura devida e a única possível e, para mais, a questão foi tida em
consideração pelo acórdão recorrido.
A recorrente não tem razão, confirmando-se, no essencial, as razões adiantadas
no despacho de fls.254.
Com efeito, não é exacto que a recorrente não dispusesse, segundo a normal
tramitação do recurso de agravo, tal como ele, aliás em seu benefício, veio a
ser configurado, de oportunidade para colocar a questão de constitucionalidade
em alegações para o Supremo Tribunal de Justiça. Ora, na peça que apresentou e
que valeu como alegação do agravo [cf. supra n. 2 – als. h) e i)] apenas produz
considerações sobre a (divergência de) interpretação de direito ordinário, nada
referindo em matéria de inconstitucionalidade da decisão que prevaleceu.
Aliás, se a recorrente entendia, como parece continuar a entender,
que na tramitação do recurso que interpôs só havia lugar à apresentação da peça
processual tendente a demonstrar a oposição de julgados, e se pretendia que no
afastamento da interpretação adoptada pelo acórdão da Relação de que recorria
interviesse a consideração da inconstitucionalidade da norma nessa
interpretação, seria essa, necessariamente, a única oportunidade de colocar a
questão perante o Supremo Tribunal de Justiça.
Nem é, nesta sede e para este efeito, relevante o “modo anómalo como o recurso
se processou e vem minutado”, para usar as palavras do “Parecer” do Ex.mo
Magistrado do Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça, porque tais
vicissitudes não ficaram a dever-se à configuração legal do processo ou à
actuação anómala ou surpreendente dos órgãos judiciais, mas a opções processuais
da recorrente.
Tanto basta para que se decida não tomar conhecimento do objecto do
recurso.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se não conhecer do objecto do recurso e
condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 10 (dez) UC.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Vítor Gomes
Gil Galvão
Bravo Serra
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Artur Maurício