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Processo n.º 58/05
2.ª Secção Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1.Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24 de Junho de 2004, foi negado provimento ao recurso de revista interposto por A. e mulher, B., do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que, em confirmação da sentença da 1ª Secção da Vara Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, decretou a resolução do contrato de arrendamento e o consequente despejo do prédio sito no n.º --- da Rua --------------------, em Coimbra, que aqueles tinham tomado de arrendamento a C.. Pode ler-se no referido aresto:
«[...]
3. Cessa por caducidade o direito à resolução do contrato de locação por falta de pagamento da renda ou do aluguer se o locatário, até à contestação da acção destinada a fazer valer aquele direito de resolução, pagar ou depositar as rendas devidas e o acréscimo de 50%, a título de indemnização (art.º 1048.° e
1041.°, n.º 1, do CC, e 22.° do RAU). O devido, embora a lei o não diga de forma expressa, é, só pode ser, o que o for na data da própria contestação. Esse é o entendimento jurisprudencial há muito consolidado, e que se não vê razões para contrariar. O devido, pois, é o somatório das rendas vencidas entre a data do último pagamento em forma e o momento da contestação. E a indemnização liberatória é de 50% sobre esse somatório, tendo em conta, ainda, o disposto no n.º 3, do art.°1041.°, de acordo com o qual, enquanto houver uma renda indevidamente por pagar, e a respectiva falta não estiver sanada pelo pagamento ou depósito da indemnização legal, a situação de incumprimento propaga-se aos meses seguintes. Quiçá esquecidos desta generalizada e correcta maneira de encarar e interpretar o regime legal pertinente, os recorrentes fizeram acompanhar a contestação
(entregue em 10 de Maio de 2002) com a guia de depósito, na mesma data, das rendas que estavam em dívida no momento da propositura da acção (21 de Março de
2002) e da correspondente indemnização legal (50%), omitindo as rendas vencidas em 1 de Abril e 1 de Maio. E, apesar de a autora, impugnando o depósito com esse fundamento, se ter mostrado disponível para aceitar a correcção (cfr. art.° 11.º, da réplica), os recorrentes insistiram no erro, usando uma tréplica que foi considerada ilegal. Mais tarde, quando já havia sido proferido o saneador-sentença que decretou o despejo, os recorrentes juntaram cópia de um depósito, efectuado em 08.05.02, de uma quantia que afirmaram ser a da renda vencida nesse mês, e que o acórdão recorrido, perante o silêncio da autora, aceitou como tal e como feito (o depósito) na conta da mesma autora. Acontece que, a essa data, como se disse, estavam, ainda, por regularizar os atrasos alegados na petição inicial, e que, portanto, nada obrigava a autora a aceitar aquele pagamento, muito menos em singelo. Acontece, ainda, que foi de todo esquecida a renda vencida em 1 de Abril. Portanto, ao contrário do que os recorrentes afirmam, à data da contestação não estavam regularizados todos os débitos de rendas e correspondentes indemnizações. A caducidade do direito de resolução respeitante às faltas com antiguidade superior a um ano só seria de considerar se essa excepção peremptória tivesse sido invocada no local próprio, a contestação, visto que, por um lado, se não trata de excepção de conhecimento oficioso (e não o é porque a relação não é indisponível- cfr. art.° 333.°, n.º 2, do CC, que remete para o art.°303.°), e que, por outro lado, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, nos termos do art.°489.°, n.º 1, do CPC, ressalvadas as excepções previstas no n.º 2, que se não verificam, no caso. Em todo o caso, são os próprios recorrentes que, na contestação, o afirmam, o depósito respeita às rendas referidas na petição inicial (cfr. art.º 14° da contestação), a elas devendo, pois, ser imputadas, e, desse modo, nunca poderia ser aproveitado para remediar as faltas relativas aos meses de Abril e Maio. Toda a defesa deveria ter sido deduzida na contestação (art.°489°, n.º 1, do CPC), era até à contestação que os recorrentes deveriam ter demonstrado o pagamento das rendas e correspondentes indemnizações (art.°1048° do CC), e assim não existe qualquer razão para se considerarem os réus impedidos de provar, no decurso da acção, o pagamento do que, por eles, era devido, não tendo havido, portanto, a alegada violação do disposto no art.°202.°, n.º 2, da Const..
4. Por todo o exposto, negam a revista.» Notificados do teor do referido acórdão, os recorrentes solicitaram o seguinte esclarecimento:
«1. No § 1º de fls. 5 do acórdão proferido diz-se textualmente o seguinte - ... a autora... mostrou-se disponível para aceitar a correcção (cfr. artigo 11.º da Réplica)...
2. Ora, esta correcção resume-se a uma renda mensal, acrescida dos respectivos
50%.
3. Do texto do acórdão proferido depreende-se a eventual possibilidade processual de correcção destes valores em falta.
4. Uma vez que toda a restante factualidade se encontra esclarecida e assente.
5. Uma vez que o valor em falta é apenas aquele que fica referido supra.
6. Solicita-se o seguinte esclarecimento: a) uma vez que o processo em epígrafe ainda não transitou em julgado; b) existe ainda a possibilidade de se efectuar o pagamento por depósito dos valores em falta; c) nesta conformidade, e efectuando o pagamento em falta, d) os efeitos liberatórios pretendidos, ainda poderão ser obtidos?» Por acórdão tirado em conferência, em 7 de Outubro de 2004, o Supremo Tribunal de Justiça indeferiu o pedido de esclarecimento, nos termos seguintes:
«Foi negada a revista da decisão impugnada, a qual havia decretado a resolução do contrato de arrendamento, por falta de pagamento de rendas e da insuficiência do depósito liberatório, referindo-se expressamente que toda a defesa se deve concentrar na contestação e que o depósito liberatório apenas podia ter sido feito até essa fase processual.
É certo que a lei permite a qualquer das partes requerer ao tribunal que proferiu a sentença “o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha”, ou seja “a superação de dúvidas relativas a eventuais imperfeições que se reportam ao texto da sentença, mas que não a afectem enquanto acto jurídico”. Ora, a pergunta gizada pelo reclamante não visa um esclarecimento mas uma alteração do decidido no Acórdão e de toda a filosofia dos recursos que visam apenas a decisão impugnada e não criar decisões sobre questões novas. Por isso, não sendo nenhum pedido de esclarecimento a pergunta feita, evidente se torna o seu indeferimento. Indefere-se, pois, o mencionado “esclarecimento”.»
2.Os demandados interpuseram, então, recurso para o Tribunal Constitucional da decisão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 2004, ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei do Tribunal Constitucional), dizendo:
“A. e outro interpõem recurso de inconstitucionalidade, o que fazem nos termos constantes das Alegações que se anexam. Nos termos e de acordo com o disposto no artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e f), da Constituição da República.” [sic] O recurso de constitucionalidade não foi admitido no Supremo Tribunal de Justiça, por despacho de 18 de Novembro de 2004, com o seguinte teor:
“ O recurso não é admissível pelo que se indefere: Não se indica qualquer norma cuja constitucionalidade seja suscitada; Nunca se invocou qualquer inconstitucionalidade no decurso do processo – art.º
70.º e art.º 76.º, n.º 2, da Lei 28/82, de 15-11.”
3.Vêm agora os recorrentes reclamar deste despacho para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4, da Lei do Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
«1 – O teor e conteúdo daquele recurso são aqueles que constam do recurso interposto.
2 – Como tal, não compete, processualmente, à presente reclamação analisar e/ou dissecar o acervo do recurso interposto.
3 – Quer isto dizer que não vamos, nesta reclamação, debruçarmo-nos sobre as questões aduzidas ao longo daquele recurso já interposto e (já) indeferido.
4 – Processualmente, à presente reclamação compete, apenas e tão somente, expender argumentos que tentem fazer subir aquele recurso ao Tribunal Constitucional.
5 – Ora, o douto despacho proferido “a quo” é, com o devido respeito, claramente incipiente.
6 – Na verdade, este despacho de indeferimento limita-se a dizer que indefere o recurso interposto porquanto este – diz-se – não está em conformidade com o disposto nos artigos 70.º e 76.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro.
7 – Ora, esta afirmação de indeferimento além de insipiente é infundada e errónea.
8 – Basta analisar com alguma atenção o corpo destes artigos mobilizados para concluirmos com certeza e segurança que o despacho de indeferimento é incorrecto, erróneo e sem qualquer fundamento.
9 – Não se vislumbra no artigo 70.º nenhuma disposição normativa que possa consistentemente fundamentar o indeferimento da subida daquele recurso.
10 – Mas – e sem transigir – sempre se dirá que esta fundamentação (?) deveria tê-lo sido de forma mais literal, mais clara e sobretudo de forma especificada. O que não sucedeu, de facto.
11 – E se a inconsistência acontece relativamente ao citado artigo 70.º da Lei
28/82, de 15 de Novembro esta mesma inconsistência ainda é mais evidente no que concerne ao também mobilizado artigo 76.º, n.º 2, da mesma Lei.
12 – Com efeito, lido e relido o texto deste n.º 2 do artigo 76.º, nada
(absolutamente nada) se descortina que permita perceber sequer a citação deste normativo.
13 – Em suma, nada justifica – a nosso ver – o indeferimento do recurso interposto; já que o mesmo é justo, justificado, legal, fundado e oportuno. Nestes termos, deve ser atendida a presente reclamação e, em consequência, ser admitido o recurso interposto; com as consequências legais decorrentes.» Já no Tribunal Constitucional, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da manifesta falta de fundamento da reclamação, dizendo:
“A presente reclamação carece manifestamente de fundamento. Na verdade, não se mostra suscitada pelos reclamantes qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, idónea para servir de base ao recurso de fiscalização concreta interposto.” Cumpre apreciar e decidir. II. Fundamentos
4.Pode adiantar-se desde já que a presente reclamação não pode obter provimento, mesmo abstraindo das patentes insuficiências do requerimento de recurso, pois não se justificava sequer que fosse proferido qualquer despacho de convite para o aperfeiçoar, já que, em qualquer caso, não poderia o Tribunal Constitucional tomar conhecimento dos recursos interpostos pelos recorrentes, por falta dos requisitos legais necessários para tanto. Com efeito, os recorrentes tentaram interpor recurso de constitucionalidade ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, sem, porém, identificarem no respectivo requerimento de recurso qualquer norma, ou dimensão normativa, que pretendessem ver apreciada, na sua conformidade com a Constituição ou com lei de valor reforçado (por não poder estar em causa qualquer norma de diploma regional ou a contrariedade ao estatuto das regiões autónomas, e, portanto, apenas poder relevar o recurso da citada alínea f) na medida em que remete para o fundamento previsto na alínea c), ambas do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional). Como resulta do artigo 72.º, n.º 2, da referida Lei do Tribunal Constitucional, os recursos previstos nas alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º “só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.” Como se sabe, e constitui jurisprudência constante deste Tribunal (veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 352/94, in Diário da República, II série, de 6 de Setembro de
1994), este requisito deve ser entendido, “não num sentido meramente formal (tal que a inconstitucionalidade pudesse ser suscitada até à extinção da instância)”, mas “num sentido funcional”, de tal modo “que essa invocação haverá de ter sido feita em momento em que o tribunal a quo ainda pudesse conhecer da questão”,
“antes de esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre a matéria a que (a mesma questão de constitucionalidade) respeita”, por ser este o sentido que é exigido pelo facto de a intervenção do Tribunal Constitucional se efectuar em via de recurso, para reapreciação ou reexame, portanto, de uma questão que o tribunal recorrido pudesse e devesse ter apreciado (ver ainda, por exemplo, o Acórdão n.º
560/94, Diário da República, II, de 10 de Janeiro de 1995 e ainda o Acórdão n.º
155/95, in Diário da República, II, de 20 de Junho de 1995). E recorde-se, por outro lado, que no direito constitucional português vigente, apenas as normas são objecto de fiscalização de constitucionalidade concentrada em via de recurso
(cfr., por exemplo, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 18/96, publicado no Diário da República, II Série, de 15 de Maio de 1996), com exclusão dos actos de outra natureza, designadamente, das decisões judiciais em si mesmas. Ora, consultando as alegações de recurso produzidas perante o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 169 e segs. dos autos) verifica-se que não é nelas suscitada a questão da violação da Constituição ou de lei de valor reforçado por qualquer norma ou interpretação normativa. Com efeito, apenas se fazem nessas alegações as seguintes referências a violação da Constituição:
“(…)
41.º A forma processual proferida pelo Tribunal Judicial de Coimbra coarctou a plenitude da prova.
42.º Os R.R. viram os seus direitos probatórios limitados.
43.º Como facilmente se prova.
44.º Esta limitação é grave.
45.º Esta limitação processual é inconstitucional.
46.º Veja-se o teor do disposto nos artigos 202.º da Constituição da República Portuguesa.
47.º Os R.R. continuam disponíveis para provar que todas as rendas estão pagas.
48.º Todas sem excepção.
49.º Só que – processualmente – não o podem fazer.
50.º Tal prova não lhes é permitida.
51.º Tal prova foi-lhes proibida fazer.
52.º Tal limitação é inconstitucional.
53.º É esta inconstitucionalidade que os R.R. vêm por ora invocar.
54.º Como tal, deve a decisão proferida ser revogada.
(…)” E nas conclusões:
“(…) p) Foi coarctada a possibilidade probatória dos ora recorrentes. q) Não lhes foi dada a possibilidade de esgotar os seus direitos probatórios jurisdicionais. r) Foi violado o direito constitucional consagrado nos artigos 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (ex vi artigo 204.º da C.R.P.)” Como se vê, os recorrentes não indicam sequer – como também o não fizeram no requerimento de recurso – qualquer preceito ou norma a que imputassem a desconformidade com a Constituição, apenas se referindo à inconstitucionalidade da actuação ou da decisão judicial – ou de um resultado dessa decisão. Manifestamente, tal não é, porém, bastante para satisfazer o ónus, previsto na lei, de suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa de forma clara e perceptível – isto é, de suscitação da inconstitucionalidade de norma(s) “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.” Pelo que, não se podendo verificar os requisitos indispensáveis para se tomar conhecimento dos recursos, não se justificava sequer um aperfeiçoamento do respectivo requerimento, antes devendo os recursos interpostos ser logo indeferidos. Por conseguinte, a presente reclamação tem também de ser indeferida. III Decisão Pelo fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e condenar os reclamantes em custas, com 20 (vinte) unidades de conta de taxa de justiça.
Lisboa, 1 de Março de 2005 Paulo Mota Pinto Mário José de Araújo Torres Rui Manuel Moura Ramos