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Processo n.º 469/2005
2ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Fernanda Palma
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. A. instaurou, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, acção
declarativa de condenação sob a forma ordinária, contra a Câmara Municipal de
Vila Nova de Poiares e contra o IEP – Instituto de Estradas de Portugal, para
efectivação da responsabilidade civil extra-contratual decorrente de um acidente
de viação em consequência da ausência de sinalização de obras na via pública.
A Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares arguiu as excepções de incompetência
do tribunal em razão da matéria, bem como a de ilegitimidade, excepções que
foram julgadas improcedentes por despacho de 7 de Julho de 2003 (fls. 52 a 55).
2. A Câmara Municipal ré interpôs recurso do despacho de 7 de Julho de 2003
para o Supremo Tribunal Administrativo.
Concluiu as suas alegações do seguinte modo:
1 - O A. veio instaurar uma acção sobre a eventual responsabilidade civil do
Município de Vila Nova de Poiares perante o Tribunal de Círculo Administrativo
de Coimbra, demandando a sua Câmara:
2 - E esta responsabilidade aparece fundamentada no facto de o A. se ter
despistado na E.N. na 17, onde os Serviços do Município, andavam a efectuar
obras, não terem eventualmente sinalizado as mesmas devidamente:
3 - O Município através da sua Câmara alegou a incompetência do tribunal em
virtude de se tratar da responsabilidade de um ente público, tendo o Mm. Juiz a
quo indeferido esta incompetência e julgado o tribunal competente, face aos
comandos da alínea h) do n° 1 do art. 51 ° do ETAF conjugado com o art. 22° da
Constituição da República.
4 - O Município entende que se fez errada interpretação daqueles comandos,
levando em consideração o n° 1 do art. 18° e alínea a) do n° 1 do art. 77° ambos
da LOTJ.
5 - Só o Município é uma autarquia à qual se encontra atribuída personalidade
jurídica, sendo também uma pessoa moral de direito público ou seja, pessoa
colectiva pública de população e território, como determinam os arts. 235° e
236° da Constituição da República e art. 14° do Código Administrativo.
6 - Por sua vez a Câmara Municipal é por excelência o órgão executivo do
Município por força dos arts. 250° e 252° da Constituição da República.
7 - Portanto, sendo um órgão do Município só este podia ser parte em acção
administrativa e, por isso, a mesma devia ser instaurada contra o Município por
actos dos seus serviços.
8 - Ao instaurar-se uma acção contra um órgão do Município esta, num Estado de
Direito, devia ser recusado por não ter personalidade jurídica ou judiciária,
prevista, além do mais, nos arts. 6° a 9° do C PC, aplicados aos Tribunais
Administrativos, por força do art. 1 ° da LPTA.
9 - E o art. 270° do CPC, não pode oferecer respaldo legal à substituição
processual, por violação da estabilidade da instância prevista no art. 68° deste
mesmo diploma.
10 - Portanto o Despacho sub judice fez-se errada interpretação do artigo 53° da
Lei n° 169/99 de 18/9, art. 2° da CPA, art. 31-8 do CPC e art. 270° do mesmo
diploma legal.
11 - Mesmo que assim não se entendesse a interpretação efectuada sobre aquela
norma, não pode deixar de violar a Constituição, uma vez que, os arts. 22°, 110°
e 212° da Constituição da República não podem deixar de ferir de
inconstitucionalidade a referida alínea h) do n ° 1 do art. 51 ° do ETAF,
aprovado pelo Dec.-Lei n° 129/84, quando esta possa permitir que seja julgado
competente o Tribunal Administrativo, para julgar acções sobre a
responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos.
11 - E, por sua vez o art. 31º-B do Cód. Proc. Civil, assim como o art. 270° do
mesmo diploma, não podem permitir que uma acção ordinária em Direito
Administrativo seja instaurada contra a Câmara do Município.
12 - Uma tal interpretação não pode deixar de ofender além do mais os artigos
235°, 236°, 238°, 250° e 252° da Const. da República, o que torna as normas
referidas no item anterior inconstitucionais.
O Supremo Tribunal Administrativo, por acórdão de 19 de Abril de 2005,
considerou o seguinte:
2.2.2. O DIREITO:
São duas as questões suscitadas no presente recurso: i) - a da competência os
Tribunais Administrativos para conhecer da causa; ii) - a da substituição do
Município, como Réu, pela Câmara Municipal.
2.2.1. O despacho recorrido considerou o TAC de Coimbra o tribunal competente,
em razão da matéria.
Para o efeito, considerou que “os factos relatados na petição inicial em relação
a qualquer dos RR traduzem manifestamente o exercício das suas próprias
atribuições, ou seja, o IEP por ser o “dono” da via em causa cuja manutenção lhe
cabe assegurar, e a Câmara M. por realizar obras de colocação de colectores e se
ter comprometido a realizar as rotundas referidas na mesma P.I..
Assim sendo os factos relatados na p. i. traduzem um fenómeno de
responsabilidade extracontratual no âmbito da gestão pública dos RR, motivo por
que este TAC é competente em razão da matéria nos termos do art. 51.º n° 1- h)
do ETAF.”
Vejamos:
De acordo com o estabelecido no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e no artigo 3.º do
ETAF, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril, os tribunais
administrativos são os tribunais competentes para dirimir os litígios emergentes
das relações jurídicas administrativas.
Relações jurídicas administrativas são aquelas que são regidas por normas que
regulam as relações estabelecidas entre a Administração e os particulares no
desempenho da actividade administrativa de gestão pública, sendo esta, em
síntese, a actividade que compreende o exercício de um poder público,
integrando, ela mesma, a realização de uma função pública da pessoa colectiva,
independentemente de envolver ou não o exercício de meios de coerção e
independentemente, ainda, das regras, técnicas ou de outra natureza, que na
prática dos actos devam ser observadas (cfr., por todos, os acórdãos do Tribunal
de Conflitos de 28.11.2000 - Conflito 345, citado pelo Exm.º Magistrado do
Ministério Público, de 1.6.2004 - Conflito n.º 24/03, e de 8.7.2 003 - Conflito
n.º 10/02, bem como a jurisprudência e doutrina neles citados).
De acordo com pacífica jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a
competência dos tribunais em razão da matéria (ou jurisdição) afere-se em função
da relação material controvertida, ou seja, em função dos termos em que é
formulada a pretensão do Autor, incluindo os seus fundamentos (cfr., neste
sentido, por todos, o acórdão do STJ de 4/3/97, in Colectânea de
Jurisprudência/STJ, 1997, tomo V, pág. 125, do STA de 27/9/01, 28/II/02,
19/2/03, 27/2/02, 24/3/04 e 18/1/05, proferidos nos recursos n.ºs 47633,
1674/02, 47636, 470980, 112/03 e 555/04, respectivamente - os três últimos
citados pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público, e do Tribunal de Conflitos
de 2/7/02, 5/2/03 e de 8/7/03, proferidos nos Conflitos n.ºs 1, 6 e 10/02,
respectivamente).
O que há, assim, que apurar é se a relação jurídica relativamente à qual se
gerou o litígio cuja resolução foi apresentada em tribunal é uma relação
jurídica administrativa ou não, só na primeira hipótese sendo os tribunais
administrativos competentes para a sua resolução (artigo 18.º, n.º 1, alínea a)
da LOTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13/1).
De acordo com a matéria de facto alegada pelo Autor, que já foi enunciada, o
acidente ficou-se a dever a obras efectuadas pelo Réu município, que procedeu à
implantação de colectores junto à estrada nacional n.º 17, se encarregou de
efectuar obras em duas rotundas nela existentes (entre as quais terá ocorrido o
acidente em causa), bem como nos passeios dessa estrada, tendo deixado um buraco
no passeio e areia no pavimento, tudo sem qualquer sinalização. Terá sido a
existência da areia e do buraco, não sinalizados, buraco esse aberto pelo Réu
município, que estiveram na origem do despiste do Autor e consequente acidente.
Ora, de acordo com o estabelecido na Lei n.º 159/99, de 14/9, os municípios têm
atribuições no âmbito do ambiente e do saneamento básico (artigo 13.º, alínea
1), nas quais se compreendem as relativas à implementação e conservação de redes
de abastecimento e de drenagem de água, bem como de esgotos (artigo 26.º do
mesmo diploma), incumbindo às câmaras municipais construir e gerir, além do
mais, redes de abastecimento público de água e energia, bem como de saneamento
(cfr. artigo 64.º, n.º 2, alínea b) da Lei n.º 169/99, de 18/9).
Além disso, como entidade que realizou as obras que alegadamente estiveram na
origem do acidente, incumbia-lhe ainda a sua sinalização (artigo 5.º, n.º 2 do
CE (Decreto-Lei n.º 114/94, de 315, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 2198,
de 311, diploma em vigor à data do acidente).
Donde resulta que as acções (e omissões) que alegadamente estiveram na origem do
acidente em causa respeitavam a matéria das atribuições do Réu, pelo que se está
no âmbito de actos de gestão pública e, consequentemente, que as relações
jurídicas deles emergentes são relações jurídicas administrativas.
Os tribunais competentes para o seu conhecimento são, assim, os tribunais
administrativos, e dentro destes, os tribunais administrativos de círculo
(artigo 51.º, n.º 1, alínea f) do ETAF), como bem decidiu o despacho recorrido.
O recorrente invoca a inconstitucionalidade deste preceito, defendendo, em
síntese, que, se para a responsabilidade civil por actos jurisdicionais e por
actos legislativos (artigo 22.º da CRP) são, jurisprudencialmente, julgados
competentes os tribunais comuns, por maioria de razão, o deviam ser também estes
tribunais para as acções de responsabilidade civil extracontratual de entes
públicos, até para “evitar o entupimento dos tribunais administrativos”.
Mas também lhe não assiste razão.
Antes do mais, por que o artigo 212.º da CRP é absolutamente claro e inequívoco
relativamente aos tribunais competentes para o conhecimento dos litígios
emergentes das relações jurídicas administrativas, dando-lhe um tratamento
especial - considerando os tribunais administrativos os tribunais comuns para o
conhecimento dessa espécie de relações jurídicas -, o que impede qualquer
espécie de dúvidas.
Assinala-se, ainda, que como salienta o Exm.º Magistrado do Ministério Público,
no seu parecer, o recorrente já levantou esta questão no recurso n.º 48814, que
foi julgada improcedente, por acórdão de 6/3/2002, no qual se escreveu que “a
manifesta dissemelhança categorial entre tais tipos de responsabilidade (por
actos jurisidicionais, legislativos e administrativos) torna o argumento exangue
e imprestável.”
Não se vê, com efeito, em que medida é que possa ser utilizado o argumento da
maioria de razão, que, inserindo-se no domínio da analogia, não pode deixar de
ser utilizado com o máximo de cautela, sendo absolutamente insustentável a tese
do “entupimento dos tribunais administrativos com a competência para estas
acções”, na medida em que, sendo indiscutível que essa competência lhes foi
atribuída, até por imposição constitucional, que é clara (artigo 212.º, n.º 3)
os mesmos não podem ter deixado de ter sido pensados e dimensionados com base no
conhecimento dessas acções.
Improcede, assim, o recurso, no que respeita à incompetência do tribunal.
2.2.2. A outra questão suscitada pelo recorrente é a da substituição da Câmara
Municipal, como Ré, pelo Município do qual é o seu órgão executivo.
O despacho recorrido considerou que “Quanto à legitimidade das partes também ela
se verifica face ao disposto no art. 31°-B do CPC, tendo em conta os factos
relatados na p.i..
E não obsta a essa legitimidade o facto de ter sido demandada a Câmara Municipal
e não o respectivo Município, pois que se trata apenas de uma irregular
identificação desta autarquia, entidade pública personalizada, identificação
correspondente à forma habitual e corrente de identificação desta mesma entidade
pela referência ao seu órgão executivo.
Assim sendo entende-se que é realmente demandado o Município de V N de Poiares,
sendo pois co-réu nestes autos.”
O recorrente discorda, defendendo que a Câmara, como órgão do município, que é,
carece de personalidade e capacidade judiciária, devendo ter sido demandado o
próprio município, como pessoa colectiva, considerando ilegal a operada
substituição da Câmara pelo Município, com vista ao suprimento dessa falta de
capacidade e personalidade judiciária, que também caracteriza como
ilegitimidade. Mas não lhe assiste razão.
Na verdade, a sentença recorrida considerou que se tratava apenas de uma
irregular identificação do Réu, que era o município, fruto da forma habitual e
corrente de identificação desta mesma entidade pela referência ao seu órgão
executivo.
E assim é, de facto.
Na verdade, perante a frequência com que eram interpostas acções para
efectivação de responsabilidade civil dos municípios contra o respectivo órgão
executivo - face à apontada forma habitual de os identificar através da
referência ao seu órgão executivo - formou-se uma corrente jurisprudencial
praticamente uniforme neste STA que permite o prosseguimento dessas acções conta
as Câmaras, corrente essa que tem sido assim resumida (acórdão de 11/3/03,
recurso n.º 2055/02, citado pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público):
“«Não há interesses autónomos e diferenciados da Câmara municipal face ao
município.
Numa visão organicista os órgãos das pessoas colectivas são representantes da
pessoa, mas são também a própria pessoa colectiva agindo».
Daí que se possa concluir licitamente que no plano e para efeitos da defesa
judicial de direitos do ou contra o município se possa falar de personalização
judicial do órgão executivo. Neste sentido ver, inter alia, os Ac. de 6.2.96
Proc. 37876 e de 14.5.96, Proc. 39424 e de 25.9.2001, Proc. 46301.”
A razão de ser desta posição jurisprudencial assentou em razões de segurança e
uniformidade do direito, com o que se visou a concretização do princípio da
tutela judicial efectiva, evitando, através dos princípios anti formalista ou
pro actione e da celeridade processual - corolários daquele -, que a questão
substantiva deixasse de ser conhecida por razões meramente formais, que, no
caso, não assumiam significado, na medida em que quem representa o município é o
Presidente da Câmara (artigo 68.º, n.º 1, alínea a) da Lei n.º 169/99, de 18/9),
sendo ele também quem representa a própria Câmara, pelo que, sendo demandado o
município ou a câmara era sempre a ele que competia representá-los, não havendo
qualquer prejuízo para a pessoa colectiva que a acção prosseguisse contra ela ou
contra o seu órgão executivo.
Ora, as razões que levam a admitir o prosseguimento de uma acção da
responsabilidade do município contra o seu órgão executivo valem, do mesmo modo,
para que uma acção dessa natureza proposta contra o órgão executivo prossiga
contra a pessoa colectiva.
No caso sub judice, quem contestou a acção foi o município (cfr. fls 31 dos
autos), representado pelo presidente da sua Câmara (cfr. fls 43), pelo que, em
face dos referidos princípios, não é de censurar o prosseguimento da acção
contra ele, não sendo de falar, em rigor, de substituição de uma das partes,
pois que, conforme resulta do que foi referido, parte foi sempre o município, do
qual a câmara é mero órgão executivo.
De assinalar, finalmente, que se não vislumbra em que é que esta posição possa
violar o disposto nos artigos 235.º, 236.º, 238.º, 250.º e 252.º da CRP,
preceitos que o recorrente se limitou a enunciar, descrevendo a organização
municipal, sem extrair algo que, em substância, pusesse em causa a posição
sustentada.
Improcedem, por isso, também as conclusões das alegações do recurso relativas a
esta questão.
Em consequência, foi negado provimento ao recurso.
3. O Município de Vila Nova de Poiares interpôs recurso de constitucionalidade
nos seguintes termos:
O MUNICÍPIO DE VILA NOVA DE POIARES, através do Presidente da sua Câmara, nos
autos à margem referenciados que lhe move A., foi notificado do aliás douto
Acórdão de 19/04/2005, pelo qual se julgou improcedente a inconstitucionalidade
arguida, assim como a substituição processual, e não se podendo conformar com
esta decisão, vem da mesma interpor recurso, para o Tribunal Constitucional, nos
termos da al. b) do n° 1 do art. 70° da Lei n° 28/82, nas condições do art. 75°A
desta Lei, que se apontam:
Na verdade, no despacho saneador a Mm. Juiz a quo indeferiu a arguida excepção
da incompetência do Tribunal Administrativo, e apesar da acção ter sido proposta
contra o órgão do Município, que é a Câmara Municipal de Vila Nova de Poiares,
assim como sem qualquer pedido do A., substitui-se esta pelo Município, tendo,
por isso, vindo a ser impetrado o competente recurso, ao qual foi negado
provimento, pelo Acórdão de 15/04/2005.
Mas o Município ofereceu nas suas alegações e nas mesmas destacou uma rubrica “C
- INCONSTITUCIONALIDADE”, onde além do mais, se proclamou, o que uma vez mais
pedimos licença para transcrever:
«Ora, face até ao que consta da referida decisão, não se está perante uma
relação jurídica geral, e muito menos, administrativa, como ela é colocada pela
doutrina, mas sim uma responsabilidade civil extracontratual, consagrada, além
do mais, neste art. 22° da Const. República, face a um evento que aconteceu
naquela E.N. n.º 17.
Sendo assim, se aqueles comandos da alínea h) do n.º 1 do art. 51º do ETAF,
permite a competência do Tribunal Administrativo para julgar tal
responsabilidade esta norma tem de ser julgada inconstitucional, por força do nº
3 do art. 212º da Const. da República, que determina:
«3. Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e
recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das
relações jurídicas administrativas e fiscais.»
Portanto não se pode deixar de estar perante uma descarada inconstitucionalidade
entre os comandos constantes da al. h) do nº 1 do art. 51° do ETAF e o nº 3 do
art. 212° e n° 2 do art. 110° da Const. da República.
Por outro lado, não restam dúvidas que uma das pessoas jurídicas da
circunscrição local autárquica é o Município, por força do art. 236° da
Constituição da República, sendo a sua Câmara o órgão executivo, por excelência,
daquele, conforme determinam os arts. 250° e 252° da Const. da Rep.
E as autarquias locais são no Continente, as freguesias, os municípios e as
regiões administrativas, estas quando foram criadas, como determina o n ° 1 do
art. 236° da Const. Rep.
O nº 2 do art. 235° da C.R. determina que «as autarquias locais são pessoas
colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos...»»
Assim, o requerente entende que a norma da al. a) do n° 1 do art. 51° do ETAF,
assim como, actualmente, as normas das al. e) e f) do n° 2 do art. 2° da Lei n°
15/2002 de 22/02, que permitem instaurar acções relativas à responsabilidade
extra-contratual perante os Tribunais Administrativos, ofendem o n° 3 do art.
212°, e n° 2 do art. 110° ambos da Const. da República, sendo, por isso,
inconstitucionais.
Face ao exposto, e porque a inconstitucionalidade foi suscitada nos termos
referidos durante o processo, roga a V. Exa. que seja recebido o recurso nos
consabidos termos.
Junto do Tribunal Constitucional, o recorrente apresentou alegações que concluiu
do seguinte modo:
a) Contra a Câmara do Município de Vila Nova de Poiares foi instaurada uma acção
de condenação por responsabilidade civil extracontratual, nos termos do art. 51°
do ETAF, no Tribunal Administrativo do Círculo de Coimbra, tendo este
contestado, por impugnação e por excepção, arguindo a incompetência do Tribunal
e a ilegitimidade da Câmara.
b) No Despacho Saneador a Mm. Juiz a quo determinou o que para melhor
compreensão se transcreve:
«o tribunal é competente nomeadamente em razão da matéria.
Com efeito, os factos relatados na petição inicial em relação a qualquer dos RR
traduzem manifestamente o exercício das suas próprias atribuições, ou seja, o
IEP por ser o “dono” da via em causa cuja manutenção lhe cabe assegurar e a
Câmara M. por realizar obras de colocação de colectores e se ter comprometido a
realizar as rotundas referidas na mesma P.I.
Assim sendo os factos relatados na p.i. traduzem um fenómeno de responsabilidade
extracontratual no âmbito da gestão pública dos RR, motivo por que este TAC é
competente em razão da matéria nos termos do art. 51 ° n° 1-h) do ETAF.»
c) A Câmara através do seu Município, impetrou recurso para o Supremo Tribunal
Administrativo, onde nas suas alegações levantou, além do mais, as questões de
inconstitucionalidade que se transcreveram e se dão aqui por reproduzidas.
d) Mas, por Acórdão de 19/04/2005 foi negado provimento, na totalidade, ao
recurso, nomeadamente quanto à questão da inconstitucionalidade arguidas.
e) O Município entende e sempre entendeu que a acção não podia ser instaurada
contra o seu órgão executivo, que é a Câmara Municipal, levando em consideração,
além do mais, o conteúdo do art. 235°, 236°, 250° e 252° da Constituição da
República.
f) Logo, os referidos comandos enumeradas pela Mm. Juiz e, muito em especial, a
al. a) do nº 1 do art. 51° do ETAF, conjugado com o art. 24° da LPTA, na
interpretação que permite instaurar acções contra as Câmaras não pode deixar de
ser inconstitucional.
g) E a al. h) do nº 1 do art. 51° do mesmo ETAF, e agora o artigo 2°, als. e) e
f) do nº 1 do Cód. Proc. Trib. Adm., e al. g), h) e i) do nº 1 do art. 4° do
ETAF, quando interpretado no sentido de permitir acções de responsabilidade
civil extracontratual nos Tribunais Administrativos não pode deixar de ofender o
nº 3 do art. 212° e nº 2 do art. 110° da Constituição da República, que não pode
deixar de ferir aquelas normas de inconstitucionalidade.
O recorrido contra-alegou propugnando a improcedência do recurso.
Cumpre apreciar.
II
Fundamentação
4. O recorrente submete à apreciação do Tribunal Constitucional duas questões.
A primeira tem por objecto a norma “do artigo 51º, n° 1, alínea h), do Estatuto
dos Tribunais Administrativos e Fiscais” (a identificação da alínea não é feita
com rigor, mas o tribunal a quo apreciou a questão de inconstitucionalidade
suscitada), na medida em que atribui competência aos tribunais administrativos
para apreciar acções nas quais se pretende a efectivação de responsabilidade
civil extra-contratual dos Municípios.
O Tribunal Constitucional já apreciou questão substancialmente idêntica à agora
suscitada. Com efeito, no Acórdão n° 423/02 (www.tribunalconstitucional.pt) o
Tribunal Constitucional julgou mesmo “manifestamente infundado” um recurso no
qual foi suscitada a mesma questão de constitucionalidade normativa.
Está em causa, neste caso, como naquele outro, um problema de qualificação de
uma relação jurídica emergente de um litígio entre um particular e a
Administração autárquica como relação jurídica administrativa. A referida
qualificação é fundamentada com argumentos juridicamente consistentes e apoio
jurisprudencial, não cabendo ao Tribunal Constitucional controlar meramente o
acerto da interpretação e aplicação do Direito ordinário, se não forem
utilizados critérios que, pela sua natureza, violem a Constituição e sejam
directamente impugnados. Como esse não é manifestamente o caso, tratando‑se,
aliás, de uma relação entre um particular e um ente público, entende o Tribunal
Constitucional que não se verifica qualquer inconstitucionalidade.
5. O recorrente pretende, por outro lado, a apreciação da conformidade à
Constituição das normas dos artigos 51° do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais e 24° da Lei de Processo nos Tribunais
Administrativos, na medida em que permitem instaurar uma acção contra a Câmara
Municipal e não contra o Município do qual aquela é mero órgão executivo. O
recorrente invoca os artigos 235°, 236°, 250° e 252° da Constituição.
Os preceitos constitucionais invocados referem-se às autarquias locais (235°),
às categorias de autarquias locais (236°), aos órgãos do município (250°) e à
câmara municipal (252°).
Ora, o tribunal a quo considerou que ocorreu nos autos uma deficiente
identificação da entidade demandada na acção por responsabilidade civil, devendo
considerar-se que é parte nos autos o próprio Município cuja Câmara Municipal,
órgão executivo daquele, foi identificado pelo particular demandante.
Nenhuma inconstitucionalidade se verifica na dimensão normativa que subjaz a tal
entendimento. Com efeito, trata-se de uma questão meramente formal,
inconsequente, já que as instâncias anuíram que é o próprio Município a entidade
demandada, não obstante ter identificado o respectivo órgão executivo Câmara
Municipal. De resto, o presente recurso de constitucionalidade foi interposto
pelo Município de Vila Nova de Poiares, e o recorrente não apresenta um qualquer
argumento substancial que fundamente a sua pretensão.
Improcede, pois, a questão suscitada.
III
Decisão
6. Em face do exposto, o Tribunal Constitucional decide negar provimento ao
recurso, confirmando a decisão recorrida.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2006
Maria Fernanda Palma
Paulo Mota Pinto
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos