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Processo n.º 313/05
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção
do Tribunal Constitucional:
1. A fls. 100, foi proferida a seguinte decisão sumária:
«1. A., arguida em processo crime pendente no 1º Juízo Criminal do
Tribunal Judicial da Comarca de Almada, veio arguir a nulidade das intercepções
e gravações telefónicas realizadas nos autos, alegando, em síntese, não estarem
documentadas nos autos a remessa ao juiz das fitas gravadas ou elementos
análogos, nem a efectiva audição das mesmas, devendo tais intercepção e gravação
ser consideradas nulas por via do disposto no n.º 3 do artigo 126º do Código de
Processo Penal.
Por despacho do fls. 23 e 24 foi desatendida a nulidade, tendo-se
afirmado o seguinte:
“Nos presentes autos, todas as escutas realizadas foram devidamente
autorizadas por despachos fundamentados.
Por outro lado, com indicação prévia do órgão de polícia criminal
relativamente às gravações relevantes para a prova, foi ordenado, pelo juiz de
instrução, que se procedesse às transcrições das gravações que foram
consideradas relevantes, nos termos do art. 188º, n.º 1 e n.º 3, do C.P.P.
Não se nos afigura, assim, salvo o devido respeito, verificar-se qualquer
nulidade.
É que, obviamente, a ordem de transcrição e destruição das gravações
pressupõe a remessa das fitas gravadas ou elementos análogos (no caso CD’s) ao
juiz e a sua audição, o que, naturalmente ocorreu no caso em apreço.
Com efeito, pelo facto de não estar documentado nos autos, por um lado, a
remessa dos CD’s e, por outro, a audição das escutas, não é legítimo concluir
que as referidas remessa e audição não ocorreram.
Na verdade, como bem refere o Ministério Público, não nos parece que a
lei imponha que o juiz escreva «foram-me apresentadas as gravações e ouvi» para
só assim se poder ter por cumprido o disposto no art. 188º, n.º 1 3 n.º 3, do
C.P.P.
Em suma, todas as escutas foram legalmente autorizadas e mostram-se
cumpridos os formalismos do art. 18º do C.P.P., não tendo sido posto em causa o
acompanhamento e controlo jurisdicional.”
Inconformada, a arguida veio interpor recurso para o Tribunal da Relação
de Lisboa, o qual, por acórdão de 1 de Março de 2005, de fls. 79, negou
provimento ao recurso.
Na parte que agora releva, afirmou-se no mencionado acórdão o seguinte:
“O objecto do presente recurso diz respeito ao cumprimento das
formalidades do art. 188º do CPP, que a recorrente diz não terem sido
respeitadas em concreto quanto à remessa das fitas/Cd à MM JIC e à sua audição.
Cremos que a recorrente não tem razão.
Em primeiro lugar como no despacho recorrido se diz «obviamente, a ordem
de transcrição e destruição das gravações pressupõe a remessa das fitas
gravadas... ao juiz e a sua audição, o que, naturalmente ocorreu no caso em
apreço». O requisito processual é a remessa das fitas e não a representação
escrita dessa realidade, nos termos do 188º, 1, do CPP.
Por outro lado, a prova da remessa e da audição ora posta em crise
resulta dos vários despachos do MM Juiz que ao ordenar a transcrição reconhece a
relevância para a prova das conversas assinaladas o que só seria possível se as
ouvisse. Mais uma vez, salvo melhor opinião, a recorrente parece confundir a
essência das operações do 188º com aspectos da sua representação semiológica.
Finalmente, toda a jurisprudência do Tribunal Constitucional e demais
Tribunais Superiores é no sentido de justamente preservar os direitos
constitucionais de reserva de intimidade da vida privada submetendo a um
controlo judicial as intercepções telefónicas o que é uma coisa, sendo outra o
aproveitamento dessa jurisprudência para anular tais intercepções só por motivos
formais de falta de indicação nos autos da remessa e audição que se realizaram.
O que a lei proíbe é a falta de controlo judicial e não a falta de fórmulas
sacramentais para a remessa e audição pelo juiz. O que a lei exige é que o juiz
ouça as gravações remetidas e não que as ouça e repita por escrito que as ouviu.
O que seria salvo o devido respeito trop de zèle.
Não há assim quaisquer nulidades ou violações legais ou constitucionais.
Quanto às interpretações inconstitucionais do despacho recorrido, este
não defende a conclusão 25 da motivação. No despacho só se diz que o facto de
não estar documentada a remessa e audição não é legítimo concluir que estas não
ocorreram. E quanto à questão levantada na conclusão 29 sobre interpretação
inconstitucional de nulidade absoluta ou relativa por incumprimento dos
formalismos, a mesma está prejudicada, dado considerarmos que não foi cometida
qualquer nulidade.”
2. Ainda inconformada, A. veio interpor recurso para o Tribunal
Constitucional “em conformidade com os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e n.º 2,
72º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, 75º e 75º-A, todos da Lei do Tribunal
Constitucional”.
No requerimento de interposição de recurso, a recorrente afirmou o
seguinte:
“1. O presente recurso visa a fiscalização concreta da constitucionalidade dos
artigos 187º, 188º, n.º 1 e n.º 3, e 189º do Código de Processo Penal;
(...)
4. A recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas
processuais penais constantes nos artigos 187º, 188º, n.º 1 e n.º 3, quando
interpretadas no sentido acolhido pelo acórdão recorrido que entendeu que a
falta de menção nos autos das formalidades respeitantes ao meio de obtenção de
prova – intercepções telefónicas – em concreto, a dispensa da menção de remessa
das fitas/Cd’s à MM JIC e a consignação, por escrito da sua audição (do que
ouviu e do que reputou determinante seleccionar) por parte do Juiz de Instrução
Criminal – não viola a lei constitucional, e consubstancia o verdadeiro e
efectivo controlo judicial exigido legalmente.
(...)
6. Ao defender que o n.º 1 e 3 do artigo 188º do C.P.P. não impõe a expressa
menção às fitas e à audição dos suportes que contenham as intercepções
realizadas, a decisão recorrida revela uma interpretação desses preceitos que
agride os princípios tutelados nos artigos 32º, n.º 8, 34º, n.º 4, 26º, n.º 1, e
18º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, sendo por isso
inconstitucional.
7. Acresce que, e em sentido diverso do atendimento acolhido na decisão
recorrida, estando em causa o cumprimento rigoroso de preceitos legais e
constitucionais, o seu cumprimento tem de estar expresso com clareza nos autos,
jamais podendo presumir-se!
(...)
11. Neste seguimento, a recorrente pretende ver ainda apreciada a
inconstitucionalidade da interpretação denunciada do artigo 189º do C.P.P., cujo
conhecimento ficou prejudicado na decisão recorrida, pelo não atendimento da 1ª
inconstitucionalidade que motiva o presente requerimento de interposição de
recurso, porquanto:
12. Uma interpretação do artigo 189º do C.P.P. que não reconheça como
consequência para tal preterição a Nulidade Insanável, por se traduzir em
utilização de prova proibida ao abrigo do n.º 3 do artigo 126º do C.P.P., é
inconstitucional por violação dos preceitos que, na nossa Lei Fundamental,
impõem a menor compressão possível do direito fundamental à inviolabilidade das
comunicações, tolerando a ingerência apenas nos moldes restritos previstos na
lei.
13. Tal interpretação viola os princípios constitucionais com expressão nos
artigos 32º, n.º 8, 26º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição da República
Portuguesa.”
O recurso foi admitido, por decisão que não vincula este Tribunal (nº 3 do
artigo 76º da Lei nº 28/82).
3. São duas as questões de constitucionalidade suscitadas no requerimento
de interposição de recurso: por um lado, a recorrente sustenta que os artigos
187º e 188º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Penal, interpretados no sentido
de que não impõem a expressa menção à remessa das fitas e à audição dos suportes
que contenham as intercepções realizadas violam os princípios tutelados nos
artigos 32º, n.º 8, 34º, n.º 4, 26º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição; por
outro lado, sustenta que uma interpretação do artigo 189º do Código de Processo
Penal que não reconheça como consequência para a preterição das mencionadas
formalidades, alegadamente exigidas pelo artigo 188º, a nulidade insanável, por
se traduzir em utilização de prova proibida ao abrigo do artigo 126º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, é inconstitucional por violação dos princípios com
expressão nos artigos 32º, n.º 8, 26º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição.
Na sequência do Acórdão n.º 407/97 (publicado no Diário da República, II
Série, de 18 de Julho de 1997), este Tribunal já, por diversas vezes, julgou
inconstitucional a norma do artigo 188º, n.º 1, do Código de Processo Penal,
quando interpretada em termos de não impor que o auto da intercepção e gravação
de conversações ou comunicações telefónicas seja, de imediato, lavrado e levado
ao conhecimento do juiz, de modo a este poder decidir atempadamente sobre a
junção ao processo ou a destruição dos elementos recolhidos, ou de alguns deles,
e, bem assim, também atempadamente, a decidir, antes da junção ao processo de
novo auto da mesma espécie, sobre a manutenção ou alteração da decisão que
ordenou as escutas.
No presente recurso, a recorrente não põe em causa que tenha sido
substancialmente assegurado um acompanhamento contínuo e próximo temporal e
materialmente da fonte, apto a possibilitar, em função do decurso da escuta, a
manutenção ou alteração da decisão que a determinou; a recorrente insurge-se
apenas quanto à circunstância de não ter sido observado o formalismo da expressa
menção nos autos da remessa das fitas contendo a gravação das conversas e da
consignação por escrito da sua audição.
Ora, não se vê em que medida a expressa menção da remessa das gravações
efectuadas e a consignação da sua efectiva audição podem acrescentar alguma
coisa, do ponto de vista de um efectivo controlo judicial, em relação aos
despachos do juiz que ordenam as transcrições das gravações consideradas
relevantes (cfr. fls. 3, 5, 7 e 9). Na verdade, como se afirma na decisão
recorrida, “a prova da remessa e da audição ora posta em crise resulta dos
vários despachos do MM Juiz que ao ordenar a transcrição reconhece a relevância
para a prova das conversas assinaladas o que só seria possível se as ouvisse”.
A recorrente sustenta que “estando em causa o cumprimento rigoroso de preceitos
legais e constitucionais, o seu cumprimento tem de estar expresso com clareza
nos autos, jamais podendo presumir-se!”. Simplesmente, com tal afirmação a
recorrente dá por demonstrado aquilo que lhe caberia demonstrar, ou seja, que a
menção expressa da remessa das fitas e da respectiva audição são uma exigência
dos “preceitos legais e constitucionais”.
Ora, não sendo posto em causa um controlo judicial efectivo das intercepções e
gravações efectuadas, carece manifestamente de fundamento a acusação de
inconstitucionalidade feita pela recorrente.
Note-se, aliás, que a recorrente invoca a violação dos artigos 32º, n.º 8, 34º,
n.º 4, 26º, n.º 1, e 18º, n.º 2, da Constituição, mas não demonstra quais os
princípios ou normas contidos em tais preceitos constitucionais que considera
atingidos.
4. Quanto à segunda questão de constitucionalidade, referida pela recorrente ao
artigo 189º do Código de Processo Penal, verifica-se que o Tribunal
Constitucional não a pode apreciar, por estar em causa uma norma que não foi
aplicada pela decisão recorrida (artigo 79º-C da Lei nº 28/82).
5. Estão, portanto, reunidas condições para que se proceda à emissão da
decisão sumária prevista no nº 1 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, de 15 de
Novembro.
Assim, decide-se:
a) Não conhecer do recurso, no que respeita à norma do artigo 189º do
Código de Processo Penal;
b) Quanto ao mais, negar provimento ao recurso, por ser manifestamente
infundado.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 8 ucs.»
2. Inconformada, recorrente reclamou para a conferência, ao abrigo do disposto
no nº 3 do artigo 78º-A da Lei nº 28/82, pretendendo a revogação da decisão
sumária, por entender, como conclui, por um lado, ter dado cumprimento a “todo o
formalismo que lhe permite o recurso excepcional para o Tribunal Constitucional”
e, por outro, não ser “a questão suscitada pela Recorrente manifestamente
infundada”.
Em particular, a ora reclamante sustenta que, ao afirmar não ter sido posta em
causa “a tempestividade do controle judicial”, a decisão sumária não conheceu da
questão de constitucionalidade que foi colocada, e que era antes a de “não terem
sido materializados os actos de onde se possa extrair que houve efectivamente
controlo judicial”; e aponta ainda que a decisão sumária acaba por aceitar que
se presuma que esse controlo existiu, ao dizer que a então recorrente dava como
pressuposto o que lhe cabia demonstrar; e considerou que as alegações são o
local próprio para desenvolver as infracções à Constituição que aponta.
Notificado para o efeito, o Ministério Público pronunciou-se no sentido da
improcedência da reclamação, acrescentando que, aliás, em rigor a questão
colocada ao Tribunal Constitucional, para além de carecer de qualquer
fundamento, não tem natureza normativa, “por ser puramente ‘fáctica’.
3. Cumpre começar por observar que, contrariamente ao afirmado genericamente na
reclamação, no ponto 4, não é exacto que a decisão reclamada “decidiu não
conhecer do objecto do recurso”.
Na realidade, tal decisão apenas excluiu o conhecimento do recurso quanto à
norma referida ao artigo 189º do Código de Processo Penal – ponto ao qual,
aliás, a reclamação se não refere, o que significa que está fora do âmbito da
reclamação.
Quanto ao mais, a decisão reclamada negou provimento ao recurso, por ser
manifestamente infundado.
E é esta decisão que se confirma, uma vez que a reclamação não acrescenta
qualquer fundamento que não tenha sido apreciado na decisão reclamada. A
afirmação de que “a consulta dos autos” revela “a ausência de controlo judicial
sobre as intercepções telefónicas” não pode ser considerada no âmbito do recurso
que interpôs.
4. Assim, indefere-se a reclamação, e confirma-se a decisão de negar provimento
ao recurso, por ser manifestamente infundado.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 ucs.
Lisboa, 8 de Junho de 2005
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
Vítor Gomes
Artur Maurício